A Cabanagem
Brasil Indígena - 500 anos de Resistência
A Amazônia rebelada
Altos e baixos de uma revolução
A violenta repressão
O povo caboclo
Os indígenas na Cabanagem
Líderes indígenas da Cabanagem
O genocídio ocultado

A Amazônia rebelada


Fonte: Atlas Histórico - Brasil 500 anos - Isto É, Editora Três, 1998 (adaptado)

Na década de 1830, a província do Grão-Pará, que compreendia os estados do Pará e do Amazonas, tinha um pouco mais de 80 mil habitantes (sem incluir a população indígena não-aldeada). De cada cem pessoas, quarenta eram escravos indígenas, negros, mestiços ou tapuios, isto é, indígenas que moravam nas vilas.

Belém, nessa época, não passava de uma pequena cidade com 24 mil habitantes, apesar de importante centro comercial por onde era exportado cravo, salsa, fumo, cacau e algodão.

A independência do Brasil despertou grande expectativa no povo da região. Os indígenas e tapuios esperavam ter seus direitos reconhecidos e não serem mais obrigados a trabalhar como escravos nas roças e manufaturas dos aldeamentos; os escravos negros queriam a abolição da escravatura; profissionais liberais nacionalistas e parte do clero lutavam por uma independência mais efetiva que afastasse os portugueses e ingleses do controle político e econômico. O resto da população – constituída de mestiços e homens livres -, entusiasmada com as idéias libertárias, participou do movimento, imprimindo-lhe um conteúdo mais amplo e mais radical.

A grande rebelião popular, que aconteceu em 1833, teve origem num movimento de contestação, ocorrido dez anos antes e que havia sido sufocado com muita violência, conhecido como “rebelião do navio Palhaço”.

O descontentamento que dominava não só Belém, mas igualmente o interior do Pará, aumentou com a nomeação do novo presidente da província, Lobo de Souza. O cônego João Batista Campos, importante líder das revoltas ocorridas em 1823 e duramente reprimidas, tornou-se novamente porta-voz dos descontentes, principalmente da igreja e dos profissionais liberais.

A Guarda Municipal, pró-brasileira, era conscientizada por um de seus membros, Eduardo Angelim, que denunciava sobretudo os agentes infiltrados em toda parte.

A partir de 1834, as manifestações de rua se multiplicaram e o governo reagiu prendendo as lideranças. Batista Campos, Angelim e outros líderes refugiaram-se na fazenda de Félix Clemente Malcher, onde já se encontravam os irmãos Vinagre. Ali foi planejada a resistência armada.

Iniciava-se a Cabanagem, a mais importante revolta popular da Regência. Esse nome indicava a origem social de seus integrantes, os cabanos, moradores de casas de palha. Foi “o mais notável movimento popular do Brasil, o único em que as camadas pobres da população conseguiram ocupar o poder de toda uma província com certa estabilidade”, segundo o historiador Caio Prado Júnior.

As forças militares foram extremamente violentas, incendiando a fazenda de Malcher e prendendo-o juntamente com outros líderes. Revoltado, o povo de Belém acompanhava os acontecimentos. O destacamento militar de Abaeté se rebelou em protesto contra a perseguição feita a Eduardo Angelim. Após a morte de Batista Campos, o grupo se rearticulou em quatro frentes e atacou Belém. Com a adesão de guarnições da cidade, a vitória foi total. O presidente da província, Lobo de Souza, e o comandante das tropas portuguesas foram mortos, e os revoltosos, soltos. Malcher foi aclamado presidente da província.

Iniciava-se o primeiro governo cabano. Sem muitas lideranças, o povo escolheu Clemente Malcher, por ser um homem respeitado por todos. Porém, ele continuava com “cabeça” de fazendeiro e começou a tomar atitudes que os cabanos consideraram traição. Os desentendimentos levaram à primeira importante ruptura das lideranças: de um lado, Malcher e as elites dominantes, e, de outro, os Vinagre e Angelim, juntamente com os cabanos e boa parte da tropa. Malcher foi preso, mas, a caminho da cadeia onde ficaria por algum tempo, foi morto por um popular.

Altos e baixos de uma revolução
Breves, às margens do rio Pará,
é atualmente o mais importante
porto na ilha de Marajó. Em
1842 era apenas um amontoado
de casebres, moradias típicas da
população pobre da província,
cujos habitantes engrossaram
as fileiras dos revoltosos da
Cabanagem.
Com a morte de Clemente Malcher firmaram-se as lideranças mais combativas, como os irmãos Antônio e Francisco Vinagre e Eduardo Angelim. A 20 de fevereiro de 1835 foi aclamado presidente da província Francisco Vinagre, que tentou organizar a revolução. Procurou colocar ordem na capital, ao reestruturar a guarda municipal e prometer eleições.

A Cabanagem, espalhada por quase todos os rios amazônicos, contava com a participação de muitos indígenas, principalmente com os Mawé e os Mura. Em toda parte o povo invadiu armazéns, expulsou os portugueses e tomou as suas armas. Um dos grandes líderes cabanos da região do baixo Madeira foi o cacique Mawé Leão Crispim.

Infelizmente Francisco Vinagre não conseguiu levar adiante os anseios dos cabanos. Traindo seus comandados, concordou em negociar com o governo central, que havia mandado a Belém uma esquadra com cerca de seiscentos homens, e aceitou o novo presidente da província, Manuel Jorge Rodrigues.

Iniciava-se a terceira etapa da revolução. Antônio Vinagre e Angelim refugiaram-se no interior. Reorganizaram suas forças – tropas de tapuios, índios, caboclos e negros – e voltaram a atacar Belém à frente de 3 mil homens. Após nove dias de lutas, Belém voltou a ficar sob o controle dos cabanos. Com o desaparecimento de Francisco Vinagre, morto em combate, assumiu o governo provincial Eduardo Angelim, com apenas 21 anos de idade.

Uma das reivindicações dos cabanos era a libertação dos escravos. Por ser casado com uma fazendeira, Angelim não teve a coragem de dar esse passo. Muitos resolveram então fazê-lo à sua maneira, o que provocou mortes e saques. Por três dias comemoraram esta etapa de luta com danças e discursos pelas ruas.

Livres dos opressores e dos legalistas, isto é, dos que apoiavam o imperador, os cabanos tiveram de enfrentar um novo inimigo: a fome. Durante este tempo de guerra as plantações foram abandonadas e a carne que vinha da ilha de Marajó foi bloqueada pelos navios da Marinha. A fome em Belém era tanta que, segundo um escritor da época, o povo só tinha para comer “ervas agrestes dos quintais abandonados, raízes e couro seco, reduzido a uma espécie de cola dura e indigesta”.

A violenta repressão

Sem muita estrutura e organização, os problemas do novo governo aumentaram. A falta de comida estimulava as intrigas e as divergências. Em abril de 1836, chegava a Belém um novo governador, acompanhado de um grande número de soldados, mercenários estrangeiros e criminosos soltos das prisões do Sul e do Nordeste.

Sem condições de enfrentar este novo ataque, Angelim e os cabanos fugiram para o interior, onde a resistência continuou.

A repressão desencadeada pelo governador foi terrível. De uma população de 80 mil pessoas que viviam em toda a província, foram mortas quase 30 mil, isto é, cerca de 40% da população. Qualquer denúncia bastava para alguém ser considerado cabano e, em seguida, morto. Os mais atingidos foram os indígenas e os tapuios. Na região de Tapajós, onde, em 1820, havia 30 mil indígenas, quarenta anos depois só restavam 3 mil.

Em 1839, o governo do Rio de Janeiro, diante da insistência dos cabanos em continuar a luta, resolveu anistiar os líderes revolucionários, exceto os que cometeram homicídio e os dois chefes, Antônio Vinagre e Eduardo Angelim, que foram deportados.

Ainda hoje, 150 anos depois, o povo se lembra dessa luta e chega a dizer: “a Cabanagem não acabou: veja o povo na rua”. A Cabanagem continua sendo a maior revolta popular do Brasil.

O povo caboclo

Foi na Amazônia que o Brasil indígena reagiu por mais tempo contra a invasão européia. Ainda hoje, apesar das leis de Pombal, muitas nações falam o nheengatu, a língua usada para o comércio e a comunicação.

Dessa resistência cultural e da miscigenação de vários povos com o invasor originou-se o caboclo, palavra de origem tupi que significa “mestiço”. E esse mestiço, sobretudo depois da Cabanagem, apresentava-se como um povo que havia renegado suas raízes indígenas e perdido sua própria identidade.

Desde o tempo em que esses povos foram usados pelos portugueses para fazer a coleta do cacau, do cravo, da canela, da salsa e de diversos óleos – todos os produtos da Amazônia muito apreciados na Europa -, eles foram perdendo o contato com suas aldeias de origem para entrar no mundo “civilizado”. Também nas aldeias dirigidas por missionários ou por funcionários, as pessoas esqueciam seus parentes e amigos das aldeias de origem para se tornarem cristãs, aceitando o novo mundo criado pelos invasores portugueses.

A história da chamada "aculturação" dos Apiaká é uma triste
repetição do que ocorreu com outros grupos indígenas.
No início da colonização, os Apiaká eram um povo guerreiro
e muito temido que vivia na bacia do Tapajós. Em menos de
duzentos anos, a sociedade nacional quase exterminou esse
povo. Hoje vivem nas cidades da região do Tapajós e na área
indígena do rio dos Peixes, perdendo a língua e parte de seus
costumes. Aqui vemos dois momentos da história desse povo.
No alto, um desenho de Hercules Florence, de 1828, que
resgata a beleza física, a rica pintura corporal desse povo;
Embaixo, gravura de 1895, mostrando os Apiaká nesse
doloroso processo de aculturação.
Ao mesmo tempo, os caboclos conservavam muita coisa de sua cultura de origem. Viviam em pequenas posses, que eram propriedades não-legalizadas, onde cultivavam alimentos para o consumo próprio e para a troca com outros produtos. Isto durou até surgir a exploração da borracha, iniciada na segunda metade do século XIX.

A chegada dos nordestinos na região, em 1870, que fugiam da seca, provocou outra invasão na Amazônia. Muitos povos indígenas foram mortos ou tiveram de se submeter a esses novos “patrões”, que faziam deles o que queriam. Era uma nova escravidão que surgia.

Os indígenas na Cabanagem
 
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Homem Mura (à esquerda) e homem Mawé (à direita).
Alexandre Rodrigues Ferreira, em Viagem Philosophica.

As lideranças da Cabanagem idealizaram o indígena e fixaram-no empunhando o arco e a flecha em sua bandeira. Contudo, qual foi a sua participação nesta luta que durou mais de oito anos?

Numa relação de presos, levados para o navio-prisão Defensora, em 1837, pode-se ter uma amostra dessa participação. Dos 299 presos, 91 eram tapuios (indígenas não aldeados) e treze eram indígenas; os mestiços com sangue indígena (cafusos e mamelucos) eram 63. Esses dados demonstram que 73% dos revolucionários presos eram índios ou descendentes de índios. Os outros segmentos eram bem menos expressivos: 36 mulatos, dez negros e dezesseis brancos.

Quanto aos indígenas aldeados, destacaram-se dois grupos: os Mura e os Mawé.
Os Mura, que viviam no médio Amazonas, sempre foram discriminados e perseguidos pelo poder colonial, que os acusava de viver de pirataria nos rios. Eles participaram ativamente ao lado dos cabanos e foram responsáveis pela morte de Ambrósio Ayres, o Bararoá, um dos líderes mais violentos das forças oficiais.

Pagaram um preço alto por esta ousadia. De 50 mil que eram em 1826, quinze anos depois estavam reduzidos a 6 mil. Hoje são em torno de 1.400 pessoas.

Os Mawé foram os que lideraram a revolução em Parintins e em Tupinambarana. Sob o comando do cacique Manoel Marques atacaram Luzéa, matando os trinta soldados do destacamento militar e os moradores portugueses do lugarejo, transformando a vila em reduto cabano.

Em Tupinambarana e Andirá os revoltosos foram liderados pelo cacique Crispim Leão. Incendiaram esta última vila, obrigando os moradores a se refugiaram em Óbidos. No combate, o cacique foi morto a bala.

Em 1840, quando 980 cabanos se renderam em Luzéa, todos portavam apenas arcos e flechas.

Convém destacar que o povo Karipuna que vive na região do Oiapoque, ao norte do Amapá, é remanescente cabano, vindo do baixo Amazonas, de Bragança e Abaetuba. Provavelmente eram tapuios que para lá fugiram, pois falavam o nheengatu, a língua geral tupi. Hoje são cerca de setecentas pessoas que falam o creol, língua que agrega elementos do francês, de línguas indígenas e africanas.

Líderes indígenas da Cabanagem

Manoel Marques: da nação Mawé, que liderou o ataque a Luzéa.
Crispim de Leão: Cacique Mawé da Missão de Vila Nova da Rainha, morto em Andirá (AM), em 1836.

O genocídio ocultado

Os martírios aplicados aos cabanos chegaram a chocar o frio bacharel Souza Franco e o prevenido historiógrafo Raiol: “Ninguém imagina os martírios de que foram vítimas os infelizes que caíram em poder das chamadas expedições! Falam somente da selvageria dos cabanos, e esquecem a brutalidade dos apregoados legais! Destes referem atos cruéis que não depõem menos contra a natureza humana!”.

O quadro de torturas que se instalou na Amazônia foi sem precedentes pela ferocidade e pela extensão: “Os rebeldes, verdadeiros ou supostos, eram procurados por toda parte e perseguidos como animais ferozes! Metidos em troncos e amarrados, sofriam suplícios bárbaros que muitas vezes lhes ocasionavam a morte! Houve até quem considerasse como padrão de glória trazer rosários de orelhas secas de cabanos! Conhecemos um célebre comandante dessas expedições, que desvanecia-se em descrever com ostentação os seus feitos de atrocidade e equiparando os rebeldes a cobras venenosas, dizia que não deviam em caso algum ser perdoados! Muitos dos entroncados nas viagens por canoas lançou ele nos rios, e outros muitos mandou espingardear nos calabouços a pretexto de quererem arrombar as prisões! Nos dias de pior humor fazia dependurar, em cordas presas ao teto da casa de sua moradia, os que lhe inspirava maior antipatia, e comprazia-se em arremessá-los com violência de encontro às paredes, de mãos e pés atados, sem nenhum meio de poderem eles evitar os terríveis choques que lhes fraturavam os ossos!”.

(...) O número de mortos nos martírios e torturas tornou-se incalculável: “Consta aproximadamente a mortandade dos rebeldes que pereceram nos navios de guerra, nas prisões, nos hospitais e nos conflitos; mas é inteiramente desconhecida a que teve lugar em maior escala pelo centro da província, nas correrias das expedições e longe das vistas do governo”.

DI PAOLO, Pasquale. Cabanagem, a revolução popular da Amazônia. Belém, Cejup, 1990. p.350-1.

Os monstros da tirania
cortaram cabeças e alimentaram-se de sangue!
Tiveram forças para matar o corpo,
mas... com suas baionetas e torturas
não puderam matar a idéia,
porque esta é sagrada e tão grande como o mundo!
... A idéia não morre.
Eduardo Nogueira Angelim – 14 de agosto de 1881

Brasil Indígena: 500 anos de resistência / Benedito Prezia, Eduardo Hoomaert. - São Paulo: FTD, 2000.
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