Lobos Orientais

História e Cultura
Por |WereWolf|

 As duas espécies de lobo que habitavam o arquipélago japonês, Canis lupus hodophylax (lobo de Honshu) e o Canis lupus hattai (lobo de Ezo, N. da ilha de Hokkaido), são consideradas oficialmente extintas desde o início do século XX, vítimas tanto de doenças contagiosas como de novas formas de aproveitamento das terras, o que fez com que esses animais passassem a ser considerados ameaças à sociedade humana - uma apreciação bastante diferente do papel que os antigos japoneses lhes atribuíam, como veremos.
Contudo, em muitas aldeias japonesas, ainda hoje há pessoas que crêem ter visto lobos e/ou ouvido seus uivos. O autor deste artigo acha que a quantidade e a distribuição desses depoimentos, independentemente do fato de serem verdadeiros ou falsos, sugere algo mais profundo sobre as testemunhas do que simples superstição. Acha que esses encontros de lobos nos dias de hoje podem ser reflexos tanto das relações dos montanheses japoneses com as florestas, como das mudanças no ambiente que ali ocorreram no curso deste século.
 

As montanhas
No Japão, as montanhas (yama) são lugares perigosos, incognoscíveis e assustadores, moradas dos mortos; um mundo totalmente oposto ao dos vilarejos seguros. As regras e a ética das montanhas são totalmente próprias, e os humanos, intrusos, têm que tomar uma série de precauções rituais para não aborrecerem o yama no kami (espírito da montanha).
Além dos perigos sobrenaturais, estão os de ordem física: abismos, animais como ursos, cachorros selvagens, víboras, etc.
Muitos nomes de lugares atestam a associação do lobo com as montanhas: Okamitaira (Platô do Lobo), Okamizawa (Pântano do Lobo), Okami'iwa (Pedra do Lobo) e Kobirotoge (Passo do Lobo Uivante), por exemplo. Todos esses locais estão na península de Kii.

O Lobo Japonês
O Lobo de Honshu (okami) tinha pêlo cinzento e era um dos menores de todos os lobos. Popularmente era conhecido como yamainu (cão da montanha), termo que curiosamente tem um análogo, satoinu (cão da aldeia), que mostra-nos semanticamente o status do lobo como protetor do gênero humano (assim como o cão da aldeia a protegia). O lobo é um banken, um cão de guarda. Vejamos isso com maiores detalhes.
Existem estórias locais onde esse papel de guarda desempenhado pelo lobo se manifesta, conhecidas como okuri-okami (acho que a tradução é "acompanhado pelo lobo"). Essas estórias folclóricas dizem mais ou menos o seguinte:
"Quando alguém está andando por uma estrada na montanha, à noite, nalgumas vezes aparece um lobo, que o segue sem fazer nada. Aproximando-se o viajante da sua casa, o lobo desaparece"
O perigo da floresta noturna é neutralizado pela presença do lobo. Esse reconhecimento popular inclusive foi preservado no nome científico do lobo de Honshu: hodophylax vem do grego hodo (caminho, trilha) e phylax (guarda).
O autor do artigo não examina exaustivamente todo o volumoso folclore japonês sobre os lobos, mas chama a atenção para três pontos:
1) Ao contrário de outros animais da floresta, o lobo não teme o homem ("Na montanha do lobo fique em silêncio; na montanha do urso faça barulho", diz um ditado japonês);
2) Os lobos são rápidos e sutis (subashikoi) ("Um lobo pode se esconder até mesmo detrás de um junco" - ditado de Honshu);
3) São discretos observadores dos seres humanos. O folclore japonês mostra outros animais, como a raposa e a cobra, que têm uma capacidade de se ocultarem/disfarçarem, assumindo uma forma humana (geralmente feminina). Porém, no caso do lobo, não há nada no folclore japonês semelhante a licantropia ou lobisomens, ao contrário do folclore europeu. O lobo japonês é ocultado pelo próprio entorno natural. Se porventura ainda existir, o lobo na yama é invisível, ao mesmo tempo que mantém o homem sob sua mira.


Um animal benigno?
O folclore japonês trata o lobo como um animal bom. O caractere chinês para okami consiste de duas partes: kemono hen, radical para animal selvagem, e ryo, caractere para "bom".
Estórias como as okuri-okami, que mostram de um modo geral o caráter protetor do lobo, existem aos montes: crianças que foram criadas por lobos (à la Remo e Rômulo ou Mowgli), ou de pessoas que alcançaram longevidade graças a terem bebido leite de loba quando eram crianças. Mães camponesas usam amuletos com forma de lobos para invocar proteção para o espírito dos filhos pequenos falecidos, e para que o lobo preserve seus restos mortais da curiosidade dos animais da floresta.
O lobo protege os pobres: na lenda Okami no mayuge ("A sobrancelha do lobo) conta-se de um homem faminto que, desesperado, decide morrer e vai à floresta oferecer-se ao lobo. Mas o lobo, em vez de devorá-lo, oferece-lhe um pelo da sua sobrancelha, que traria posteriormente saúde e felicidade para aquele pobre homem.
O lobo também manifesta seu caráter protetor ao alertar o homem dos perigos da Natureza. Conta-se que há uma árvore gigante nas montanhas Tamaki, conhecida como "o cipreste dos uivos" (inuhoe no hinoki), onde um grupo de lobos teria uivado sem cessar na véspera de uma famosa enchente em 1889, que provocou a morte de muitas pessoas em Hongu. O lobo seria um equivalente silvestre do banken, o cão de guarda da vila.
Ocasionalmente caçaram-se lobos no Japão, em resposta à predação de gado doméstico. Mas ao fazerem isso, os caçadores expunham-se, a si e aos seus, a todos os riscos de retribuição espiritual: mortes súbitas na família, perda de bens e desventuras em geral. Até hoje, a morte do último lobo japonês registrado, em Yoshino (1905), é recordada com uma cerimônia de réquiem. Isso reforça o status cultural do lobo no Japão, como animal que não deveria ser morto.
Uma razão óbvia para essa reputação é o fato, hoje ecologicamente claro, que o lobo controla populações de outros animais da floresta potencialmente daninhos às colheitas, como o wild boar, os veados e as lebres. Quando um lobo era avistado, seu auxílio era invocado com uma prece:
"Senhor Lobo (oinu tono), por favor nos proteja e detenha os assaltos do veado e do wild boar"
Ou, quando não havia lobos à vista, seu poder "anti-boar"podia ser invocado através de amuletos. O lobo era um animal benigno devido à relação simbiótica percebida com o gênero humano.
E esse caráter benigno estava também relacionado à sua identidade com um espírito: o lobo seria o próprio yama no kami (espírito da montanha). Aliás, note-se que okami é uma mistura da preposição honorífica o- com o termo de "espírito" (kami).
O lobo não apenas livra os camponeses das pragas, como muitas vezes deixa parte da sua própria caça para os homens, como um presente: é a inu'otoshi ou inutaoshi (presa do cachorro). O lobo é girigatai, alguém com forte senso do dever. Sempre que o lobo faz isso, espera-se que o camponês deixe também algo para o lobo como agradecimento. A índole "boa" do lobo não é inamovível; quase como num relacionamento humano, a "bondade" ou "maldade" das suas ações vão depender de como a relação homem-lobo é levada. Se as regras de reciprocidade forem observadas, a relação será amigável; porém, se a inu'otoshi é levada e nada deixado em troca, a relação positiva se rompe e surge a ada, a inimizade para com os humanos. De modo que lobos perigosos são antes um sinal de infidelidade humana do que de uma má natureza do animal.

Animal maligno
Os poucos casos documentados de ataques de lobos às pessoas no Japão normalmente têm sido explicados como decorrentes da raiva (hidrofobia), desflorestamento e alterações nas práticas agrícolas.
As novas fazendas avançaram pelas florestas e acabaram sendo cercadas por aldeias e cidades, o que limitou o acesso dos lobos às suas presas naturais. Na nova ordem, os serviços protetores do lobo já não eram mais necessários.
Isso tudo, acrescentado à introdução da mentalidade ocidental, de que o lobo é antes de mais nada uma ameaça às pessoas e ao gado, foram os fatores primordiais que conduziram o lobo japonês à sua extinção. Há pessoas ainda hoje que acreditam que os lobos existam nas montanhas, mas com pouco respaldo científico autorizado, além de pouca confiabilidade: muitos dos que crêem ter visto lobos na realidade não conseguem diferenciar um lobo dentre outros animais. O curioso é ver como o assunto ainda hoje é candente no Japão.

Conclusões
O autor tira três conclusões do seu ensaio:
1) O lobo é uma metáfora da sociedade: todo o folclore relacionado ao lobo traz no seu bojo uma instrução ou edificação social, ensinando os homens as regras fundamentais para um convívio harmonioso (isso é patente no caso da reciprocidade à inu'otoshi);
2) O lobo é uma metonímia da natureza: por trás de toda a preocupação com a extinção ou não do lobo, está a preocupação nostálgica pela "extinção" ou não de uma forma de vida que desapareceu do Japão deste século:
"A relação entre o homem e o lobo simboliza a relação entre o homem e a natureza, porque o lobo pode ser encarado como o símbolo dos espíritos animais, o símbolo da natureza (daishizen). A natureza traz toda a sorte de bênçãos. Quando, em retribuição a essas bênçãos e a essa proteção, o homem mantém suas promessas e obrigações, a relação será de harmonia. Mas quando tais promessas são quebradas e as obrigações esquecidas, então emerge apenas a selvageria animal (mojusei). Seria bom que os japoneses vissem nas várias lendas do lobo, com sua ênfase nas trocas entre o homem e a natureza, o modo pelo qual a relação entre eles próprios e a natureza deveria ser conduzida"
NOMOTO Kan'ichi, Kumono sankai minzokuko
("Um tratado sobre os costumes populares montanheses e costeiros de Kumano");
Kyoto, 1990
3) Sendo o lobo uma peça-chave do equilíbrio ecológico, atualmente por motivos práticos está-se tentando retornar à uma situação medieval, na qual (por motivos espirituais) o lobo não só não era perseguido como invocado.
"É como se o homem tivesse aprendido que a yama, mesmo no seu estado atual de dominação nominal, só possa ser realmente governada com a assistência do poder selvagem da própria natureza. A recuperação do controle humano requer o retorno do yama no banken, o cão de guarda das montanhas. O lobo é um símbolo tanto da selvagem yama como do seu controle. Talvez seja por isso que um animal formalmente inexistente continue a preocupar tanto os habitantes das montanhas. Se o lobo está extinto, não está obsoleto."

Hosted by www.Geocities.ws

1