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O Visionário De
Taubaté
Quando
nos deparamos com algum evento insólito na sociedade ou na
área da tecnologia, logo saímos à busca de precursores
ou anunciadores. Em geral os buscamos entre os ficcionistas anglo-saxões
ou germânicos, afinal toda literatura de antecipação
tem suas raízes nos Estados Unidos ou Europa. No entanto, nestas
terras de Pindorama, já em 1926, um visionário de Taubaté
antevia nada menos que a radicalização da questão
negra nos Estados Unidos, a discussão separatista no Brasil,
o voto eletrônico, o teletrabalho, a Internet e suas conseqüências.
Falamos de Monteiro Lobato, é claro, e de sua obra mais premonitória,
O Presidente Negro ou O Choque das Raças.
Como este livro hoje só pode ser encontrado em sebos ou bibliotecas,
não seremos mesquinhos em citações.<
Estamos no ano 2.228. Nos Estados Unidos, a elite governante está
alarmada: as estatísticas apontam uma população
de 108 milhões de negros para 206 milhões de brancos.
Como o coeficiente de natalidade negra continua subindo, o instinto
de preservação dos brancos se eriça em legítima
defesa. Fala-se em uma “solução branca”
e uma “solução negra”. A solução
branca é, obviamente, expatriar os negros. Quem propõe
este panorama é Miss Jane, personagem de Lobato na ficção
já citada.
Na mesma época, o antigo Brasil está cindido em dois
países, um centralizador de toda a grandeza sul-americana,
filho que era do imenso foco industrial surgido às margens
do rio Paraná e o outro, uma república tropical, agitando-se
ainda em velhas convulsões políticas e filológicas,
discutindo sistemas de voto e a colocação dos pronomes
da semimorta língua portuguesa. De clima temperado, o Brasil
branco fundia no mesmo bloco a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.
Os portugueses, aclimatados na zona quente, haviam-se mesclado com
o negro, formando um povo de mentalidade incompatível com a
do sul.
Miss Jane é filha de um cientista de origem americana radicado
no Brasil, o professor Benson, que pode obter um corte anatômico
do futuro através de uma espécie de globo cristalino
chamado porviroscópio. (Esta idéia será
retomada por Jorge Luís Borges, como veremos adiante). Através
deste aparelho Jane perscruta o mundo do século 23. A ação
do romance transcorre em 1926. O Sr. Ayrton, seu interlocutor brasileiro,
manifesta tristeza ante o futuro do país. Jane, pelo contrário,
considera um erro inicial a mistura de raças e acha que a divisão
do país constituí uma solução ótima,
a melhor possível. Pois “a muita terra não é
o que faz a grandeza de um povo e sim a qualidade de seus habitantes”.
Esta idéia de um fracionamento territorial do Brasil não
é nova nos dias de Lobato. Em Cartas Inéditas
de Fradique Mendes, escritas nos estertores do século
passado, Eça de Queiroz já antecipava esta possibilidade,
em texto intitulado “A Revolução no Brasil”.
Para o escritor português, com o Império acaba também
o Brasil, que ficaria fragmentado em Repúblicas independentes,
em virtude da divisão histórica das províncias,
das rivalidades entre elas, da diversidade do clima, do carácter
e dos interesses e a força das ambições locais.
Uma vez separados, os estados não poderão manter paz
entre si, em função das delimitações de
fronteira, questões hidrográficas e alfândegas.
“Cada estado, abandonado a si, desenvolverá uma história
própria, sob uma bandeira própria, segundo o seu clima,
a especialidade de sua zona agrícola, os seus interesses, os
seus homens, a sua educação e a sua imigração.
Uns prosperarão, outros deperecerão. Haverá talvez
Chiles ricos e haverá certamente Nicaráguas grotescos.
A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum
grande Império!”
Se o Brasil ainda não se dividiu – apesar de todos os
anos surgirem “nações” indígenas,
com pretensões de autonomia –, aí estão
os Chiles ricos e os Nicaráguas grotescos, confirmando a aguda
intuição de Eça. Mas voltemos a O Presidente
Negro.
A inflação do pigmento – Para
Miss Jane, a América seria a privilegiada zona que havia atraído
os elementos mais eugênicos das melhores raças européias.
O Mayflower trouxera homens de uma têmpera superior
que não hesitaram um segundo “entre abjurar das convicções
e emigrar para o deserto”. As leis de imigração
se tornam seletivas e as massas que procuravam a América, já
em si boas, são peneiradas. A Europa é drenada de seus
melhores elementos e no novo mundo resta a flor dos imigrantes. Ocorre
então o que Miss Jane chama de “o erro inicial”:
entra no país, à força, o negro arrancado da
África. O Sr. Ayrton observa que o mesmo erro foi cometido
no Brasil, mas nossa solução foi admirável: em
cem ou duzentos anos teria desaparecido o nosso negro em virtude de
cruzamentos sucessivos com o branco.
Miss Jane não julga admirável tal solução,
mas medíocre, pois estraga as duas raças ao fundi-las.
Prefere que ambas se desenvolvam paralelas dentro do mesmo território,
separadas por uma barreira de ódio, a mais profunda das profilaxias.
Para ela, o ódio impede mantém as raças em estado
de relativa pureza.
– Não há mal nem bem no jogo das forças
cósmicas. O ódio desabrocha tantas maravilhas quanto
o amor. O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão
biológica. O ódio criou na América a glória
do eugenismo humano...
Os exemplares mais belos, fortes e inteligentes eram descobertos onde
quer que se encontrassem e atraídos para a Canaã americana.
Estando o país bastante povoado, fecha-se as portas ao fluxo
europeu e a nação passa a crescer apenas vegetativamente.
É quando surge a inflação do pigmento. As elites
pensantes haviam-se convencido que a restrição da natalidade
se impunha, pois qualidade vale mais que quantidade. Rompe-se então
o equilíbrio: “Os brancos entraram a primar em qualidade,
enquanto os negros persistiam em avultar em quantidade. Mais tarde,
quando a eugenia venceu em toda a linha e se criou o Ministério
da Seleção Artificial, o surto negro já era imenso”.
Urge desembaraçar-se dos negros. A solução branca
é simples: exportar, despejar os cem milhões de negros
americanos no Vale do Amazonas. O que não era fácil
“não só em virtude de tremendas dificuldades materiais
como por ferir de face a Constituição Americana”.
Monteiro Lobato escreveu seu romance – ou ensaio, como quisermos
– no início deste século. Ao transportar a ação
da obra para três séculos depois, fazia ficção.
Mas, bom conhecedor da história dos Estados Unidos, escorava-se
em projetos nada ficcionais já alimentados pelos americanos.
Um
país para os negros americanos – Entre 1840 e 1860, um
obscuro tenente da Marinha dos Estados Unidos, Matthew Fontaine Maury,
funcionário do Departamento de Cartas e Instrumentos do Departamento
da Marinha de Washington, pensou seriamente no assunto. O projeto
do oficial americano era simples e pragmático: uma vez alforriados
os escravos negros de seu país, estes seriam enviados para
colonizar a Amazônia brasileira. A república da Libéria,
na África, resultou de um destes projetos.
E por que não colonizar a região amazônica com
brancos? Maury empunhava argumentos de ordem geográfica, Se
o europeu e o índio haviam lutado com suas florestas por 300
anos sem imprimir-lhe a menor marca, sua vegetação só
poderia ser subjugada e aproveitada, seu solo só poderia ser
retomado à floresta, aos répteis e aos animais selvagens
e submetido ao arado e à enxada, pela mão-de-obra do
africano. “É a terra dos papagaios e macacos e só
o africano está à altura da tarefa que o homem aí
tem de realizar".
O projeto de Maury, em verdade, só tinha de original a insistência
em colonizar a Amazônia com os negros libertos. Desde os últimos
anos da década de 1830, os Estados Unidos pretendiam a abertura
da navegação do rio Amazonas a todas as nações.
Antes do oficial sonhador, um certo Joshua Dodge pretendia estabelecer
20 mil imigrantes norte-americanos nas margens do Amazonas. Todos
se comprometendo a reconhecer a soberania brasileira, pelo menos nos
primeiros anos de colonização.
No fundo, à semelhança do que foi feito com o Texas,
pretendia-se anexar a região aos Estados Unidos. A estratégia
era simples. Bastaria comprar alguns brasileiros em Manaus, que passariam
a ser "legítimos representantes de uma República
da Amazônia, que se declararia estado independente do Império
do Brasil, inclusive por discordar da forma como o país era
governado, com sua monarquia".
Caso o governo brasileiro enviasse navios e tropas para restabelecer
sua soberania, os cidadãos do novo estado amazônico independente
apelariam para a proteção norte-americana. E uma força
de proto-capacetes azuis se apresentaria na foz do Amazonas para "proteger
a vida e os bens ameaçados dos cidadãos americanos".
Quem nos conta este quase desconhecido projeto de expansão
americana é a professora Nícia Vilela Luz, em A Amazônia
para os Negros Americanos. Neste ensaio, a autora mostra que muitos
americanos, bem antes da eclosão da Guerra Civil, achavam ser
mais interessante libertar todos os escravos e enviá-los para
fora da América. O intérprete maior desta vontade é
o tenente Maury:
"Preocupava-o o problema do negro nos Estados Unidos, tendo em
vista a abolição da escravidão que se aproximava
inexoravelmente. Convencido da superioridade do branco, só
podia admitir o negro na condição de escravo e nunca
numa posição de igualdade com o branco. Que fazer então
com essa população negra uma vez posta em liberdade
e cuja multiplicação ainda poderia submergir a raça
branca?"
Para Maury, "Deus em Sua própria e sábia providência
ditará o destino a ser cumprido pelas raças preta e
branca, seja ele qual for".
"E Deus preservara a Amazônia deserta e desocupada para
que os problemas do Sul pudessem ser resolvidos – prossegue
Vilela Luz –. Acuados ao Norte onde não encontrariam
mais terras do Mississipi por desbravar nem mais campos de algodão
por subjugar, os sulistas, para se livrarem do seu excesso de população
negra, salvando ao mesmo tempo sua economia e sua "peculiar"
instituição, encontrariam a safety valve mais ao Sul,
no vale amazônico. Era "o único raio de esperança"
a iluminá-los naquele momento dramático em que se discutia
o destino do regime da escravidão nos Estados Unidos".
Estados
desunidos - Voltemos à ficção de Lobato.
Para Miss Jane, os negros se batiam por uma solução
muito mais viável: queriam a divisão do país
em dois, o sul para os negros e o norte para os brancos, já
que a América surgira do esforço conjunto de ambas as
raças. Se não era possível gozar juntas da obra
feita em comum, o razoável seria dividir o território
em dois pedaços. Temos então, já no início
deste século, um escritor brasileiro antecipando as propostas
de líderes negros contemporâneos como Farrakhan. É
bom lembrar que nessa época Lobato ainda não havia viajado
para os Estados Unidos.
Os brancos nada queriam ceder de seu status quo e o problema tornava-se
ameaçador. É quando surge um candidato capaz de unir
o eleitorado negro: Jim Roy, de tez levemente acobreada, parecendo
um mestiço de senegalês e pele-vermelha. A cor de sua
pele em nada lembrava os negros de hoje (isto é, 1926). Na
época, a ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição
do pigmento. Jim Roy, negro de raça puríssima e cabelo
carapinha, era “horrivelmente esbranquiçado”. O
espírito visionário de Lobato antecipa, en passant,
a tendência negra americana que gerou um Michael Jackson, por
exemplo. Inaugurando, já no início do século,
a atual categoria do “politicamente incorreto”, diz o
estupefato sr. Ayrton:
– Barata descascada, sei...
No entanto, nem os recursos da ciência faziam os negros deixarem
de ser negros na América. Os brancos não lhes perdoavam
aquela camouflage da despigmentação.
Jim Roy, líder do partido Associação Negra, não
chega a ser uma ameaça para o poder. Representa cem milhões
de negros, contra 200 milhões de brancos. Ocorre que entre
os brancos surge uma séria dissidência, um partido de
mulheres. Os velhos partidos Democrático e Republicano haviam-se
fundido num forte bloco sob a denominação de Partido
Masculino, liderado por Kerlog, presidente em exercício e candidato
à reeleição. Este bloco não tinha certeza
da vitória, pois o partido contrário, o Feminino, dispunha
de maior número de vozes, lideradas por miss Evelyn Astor.
As estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões
de votos; ao Feminino 51,5 milhões e à Associação
Negra, 54 milhões. A eleição dependia pois da
atitude de Jim Roy.
Aproximam-se as eleições. Que, no ano da graça
de 2.228, ocorrem em poucos minutos, em função de avanços
tecnológicos previstos por Lobato, que anunciam nosso mundo
de hoje,
1998.
A
vitória negra – É esta possibilidade
de “radio-transportar” os dados que opera uma reviravolta
nas eleições de 2.228, nos Estados Unidos. Jim Roy vai
explorar com habilidade este dado novo, a velocidade. As eleições
haviam sido marcadas para as 11h da manhã e durariam apenas
30 minutos. O candidato da Associação Negra avisa os
agentes distritais que só às 10h anunciará o
nome em que os negros devem votar. Ao anunciá-lo, a desconfortável
surpresa: Jim Roy se anuncia como candidato.
Para pasmo de todos, depois de 87 presidentes brancos, surgia o primeiro
presidente negro, eleito por 54 milhões de irmãos de
sangue. Os partidos Masculino e Feminino haviam mais ou menos empatado,
com algo em torno de 50 milhões e meio de votos. Passada a
perplexidade, negros e brancos caem na realidade do dia seguinte.
Para Kerlog, 87º presidente dos Estados Unidos e candidato derrotado,
surge uma dor de cabeça histórica: ele vê na vitória
negra a América transformada num vulcão e ameaçada
de morte. Considera que se não forem mantidas presas as rédeas
dos dois monstros – a ebriedade negra e o orgulho branco –,
a chacina será espantosa. Seis líderes brancos reúnem-se
em convenção e discutem uma solução para
o impasse. A solução, mantida em sigilo, é aceita
por unanimidade. Na época, John Dudley, inventor e um dos membros
da convenção, descobrira os raios Omega, que tinham
a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com o tratamento,
o mais rebelde pixaim se tornava não só liso, mas também
fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios
Omega influíam no folículo e eliminavam o encarapinhamento,
último estigma da raça negra, que já havia resolvido
o problema da pigmentação.
A solução branca - Ainda não
recuperados das emoções da vitória, cem milhões
de criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria
em um aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento
fora destruído mas o esbranquiçamento da pele não
revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega,
tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação
cutânea.
Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company
estabeleceu Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito,
como se uma força oculta empurrasse a empresa do inventor dos
raios Ômega ao desencarapinhamento da América Negra no
menor espaço de tempo possível.
Era dos mais simples o processo. Três aplicações
apenas, de três minutos cada uma, ao custo de dez centavos por
cabeça, faziam com que os negros acorressem aos postos como
cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que
chamavam de “a segunda camouflage
do negro”, acabaram se divertindo com o espetáculo da
súbita transformação capilar de cem milhões
de criaturas.
Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência
particular, sonhava o maior sonho já sonhado no continente,
quando seu criado lhe anuncia a visita de “um homem branco natural”.
Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que anuncia
ao líder negro não existir moral entre raças,
como não há moral entre povos. Há vitória
ou derrota.
– Tua raça morreu, Jim...
Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo
que alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria
empossado o 88º presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente
negro da América, Jim Roy aparece morto em seu gabinete de
trabalho. Os negros pensaram imediatamente em crime e chegou a haver
um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral superou o ódio
e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se
no humilde lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se
novas eleições e Kerlog foi reeleito por 100 milhões
de votos. A vida da América voltou à normalidade.
Estrangulada a circulação da seiva, a raça extinguiu-se
num crepúsculo indolor.
Nem exportação para a Amazônia, nem divisão
do país, nem esbranquiçamento com a eliminação
do pigmento e da carapinha. Mas extinção pura e simples
de uma raça para o pleno desabrochar da Super-Civilização
Ariana...
Em sua autobiografia, Testamento para El Greco, Nikos
Kazantzakis nos fala de certos lábios e pontas de dedos sensíveis
que sentem um formigamento ao aproximar-se a tempestade. Monteiro
Lobato, criador sensível, sentia aproximar-se a catástrofe,
o mais colossal empreendimento de extermínio em massa já
ousado na História. Antes de morrer, ainda viu o bisturi germânico
tentando extirpar uma etnia. Só enganou-se quanto à
geografia.
Nestes dias de junho de 98, a imprensa internacional nos traz uma
espantosa confirmação da hipótese de Lobato.
Dan Goosen, cientista responsável por um laboratório
secreto durante o apartheid na África do Sul, revela que o
governo daquele país tentou desenvolver uma bactéria
que poderia ser mortal ou causar infertilidade somente em pessoas
com pigmentação de pele escura. Em declarações
à Comissão da Verdade e Reconciliação
para a África do Sul (CVR), disse um outro pesquisador, o dr.
Daan Jordan: “Meu trabalho era desenvolver um produto que reduzisse
a taxa de natalidade da população negra”. Este
produto, que não chegou a ser desenvolvido, seria distribuído
entre os negros, possivelmente misturado à cerveja de sorgo
ou à farinha de milho (consumidos basicamente pela população
negra) ou usado em uma campanha de vacinação. Por pouco,
a vida não imitou a arte.
Taubateano
antecipa a Internet – Além de aventar uma possível
evolução da questão negra nos Estados Unidos,
Lobato angustiava-se com o desperdício de energia e “os
milhões de veículos atravancadores de espaço”
- e isso nos primórdios do século - necessários
para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Via a
salvação na “fecunda descoberta das ondas hertzianas
e afins”. O trabalho, o teatro, o concerto passam então
a vir ao encontro do homem. As condições do
mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais
e comerciais começam a ser feitas de longe pelo que Lobato
chama de “rádio-transporte".
Há três quartos de século, antes mesmo de sua
viagem aos Estados Unidos, Lobato antevia o fim da maneira de fazer
jornalismo da época e antecipava o que hoje é rotina
em qualquer redação deste final de milênio. Através
de miss Jane, o escritor de Taubaté começa a descrever
a sociedade americana do futuro:
“Pelo sistema atual – Lobato refere-se a 1926 –
o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escrevê-lo
na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor;
este o compõe, passa-o ao formista, este o enforma e passa-o
ao tirador de provas; este tira as provas e manda-o ao revisor; este
o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa
não acaba mais! É uma cadeia de incontáveis elos,
isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá início
à nova cadeia que desfecha no leitor - correio, agentes, entregadores,
vendedores, o diabo".
Toda essa complicação desapareceria. Cada colaborador
do Remember, jornal criado na ficção lobatiana,
"radiava" de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e
imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos
na casa dos assinantes.
Numa época em que computador, fibras óticas e satélites
pertenciam ao universo mental de visionários, Lobato fala de
rádio-transporte. Se substituirmos esta expressão por
fax/modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há
sete décadas, um jornal que já existe. Seus correspondentes
há muito enviam seus "caracteres luminosos" para
suas redações. Daí ao leitor recebê-los
numa tela em sua casa, basta uma decisão administrativa, já
tomada por centenas de empresas no Brasil e no mundo ocidental. E
quando o acervo da literatura universal estiver digitalizado, poderá
consultar, de sua casa, todas as bibliotecas do mundo.
Além
da era da roda - "As ruas tornaram-se amáveis,
limpas e muito mansas de tráfego" –continua Lobato–.
"Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como outrora
nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou
gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos
de pressa. Verificou que a pressa é índice apenas de
uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza
não criou a pressa. Tudo nela é sossegado."
Esta previsão, melhor creditá-la ao pendor utópico
do escritor, que não chegou a vislumbrar este lado provinciano
do brasileiro, que se sente despido e humilhado se não tiver
uma carroça sobre quatro rodas. Enfim, para sonhar não
se paga imposto. Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada
a revolução da roda. Segundo a moça, "o
homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte
com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que
a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver
a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos,
quando for possível ao homem uma ampla visão de seu
panorama histórico, todo este período que vem do albor
da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações
receberá o nome de Era da Roda".
O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. "A roda,
que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje
domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar
a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte
tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos
os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num
bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará
ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório.
Em suma: trabalhar-se-á à distância".
Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não
podia prever as nuvens de terabytes diariamente transmitidas de um
ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito bem suas conseqüências.
O teletrabalho – trabalho "radiado" para o escritório,
como diria Lobato – já é um fenômeno em
expansão. Hoje, qualquer trabalhador intelectual, desde que
tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção
para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia
ou em busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos
a milhares de quilômetros de suas redações há
muito não constituem mais novidade.
Segundo o historiador francês Roger Chartier, a revolução
hoje em curso é muito mais ampla que a de Gutenberg, de 1455,
"pois transforma as próprias formas de transmissão
do escrito. A passagem do livro, do jornal ou do periódico,
como os conhecemos hoje, para a tela de computador, rompe com as estruturas
materiais do texto escrito. A única comparação
histórica possível é a revolução
no início do cristianismo, nos séculos II e III, quando
o livro da Antiguidade, em forma de rolo, deu lugar ao livro herdado
por Gutenberg, o códice, com folhas e páginas reunidas
em cadernos".
Habitantes deste final de milênio, somos testemunhas privilegiados
da revolução intuída por Lobato. Revolução
das boas, sem sangue e sem volta. Sem sequer imaginar a existência
de computadores, o escritor paulista anuncia a Internet. Cabe lembrar
que, em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo
a instituir o voto informatizado, instituição já
em funcionamento nesta ficção escrita há sete
décadas.
A biblioteca de Borges - Também ao sul do
Equador, um vizinho nosso, situado às margens do Prata, imaginava
um acervo que hoje começa a tomar corpo com a Internet. Falava
de uma biblioteca em forma de esfera cujo centro cabal é qualquer
hexágono. Sua circunferência é inacessível.
Existe ab aeterno e nela não há dois livros idênticos.
É ilimitada e periódica. Assim definia o Jorge Luis
Borges, em um conto datado de 1941, a Biblioteca de Babel. Em alguma
prateleira de algum hexágono existiria um livro que era a chave
e o compêndio de todos os demais. "Algum bibliotecário
o terá percorrido e é análogo a um deus".
Na Babel de Borges, há um grave problema de comunicação.
A Biblioteca abarca todos os livros. Todo conhecimento humano está
disperso pelos hexágonos. O problema é encontrar o que
se busca. Milhares de funcionários lutam, se estrangulam e
morrem em busca dos livros nos corredores da biblioteca, muitas vezes
derrubados por homens de hexágonos remotos. Outros enlouquecem.
O autor exagera, o que é direito de todo ficcionista. Mas em
muitas bibliotecas contemporâneas os funcionários já
usam bicicletas ou patins para buscar os livros.
Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos
buscadores desta ficção de Borges bastaria digitar um
endereço eletrônico e teriam em segundos os livros desejados,
sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou patinar,
subir escadas ou cair em poços sem fundo. Hoje, um leitor de
qualquer parte do mundo, com uma placa modem em seu computador, pode
acessar a Congress Library em Washington, a Bibliothèque Nationale
em Paris ou a Biblioteca Nacional de Madri. Ou as bibliotecas da USP,
Unesp e Unicamp em São Paulo. Por enquanto, apenas bibliografia,
é bom salientar. Mas a tendência é colocar o próprio
livro à disposição do usuário, o que está
sendo feito pelo projeto
Gutenberg e a ABU
, entre outros sites. Nestes últimos, estão a seu alcance,
desde Plutarco e Platão, até Descartes ou Marx, passando
pela Bíblia, Voltaire ou Dostoievski. Por enquanto em francês
e inglês, mas já estão sendo digitalizados acervos
em português e espanhol.
Teoricamente, já se pode pensar na biblioteca total de Borges.
Chegar lá é uma questão de tempo. A biblioteca
faraônica iniciada por François Mitterrand - Tontonkhamon,
para os inimigos íntimos - em Paris, concebida para armazenar
acervos futuros, com seus quatro prédios mastodônticos
em forma de livro, já nasce mais ou menos obsoleta. Seu design
pertence ao passado.
A pergunta “quantos livros tem sua biblioteca?” inclusive
perdeu o sentido e não mais permite uma resposta precisa. Vivemos
uma época em que ninguém sabe de quantos livros dispõe
em seu gabinete de trabalho. Os livros ao alcance de sua mão
- ou de seu mouse - são tantos quanto os que estão digitalizados
e disponíveis na grande rede, esteja você morando em
qualquer aldeia do fim do mundo. Desde, é claro, que tenha
uma linha telefônica por perto.
Aleph, porviroscópio e webcams - Borges, sonhador
irrecuperável, antecipa em suas ficções a biblioteca
sonhada por todo bibliófilo, hoje em construção.
Mas o autor vai mais longe em seu desejo de futuro. Em Aleph,
conto publicado em 1949, Borges nos fala do peculiar poeta Carlos
Argentino, que se propõe nada menos que “versificar toda
a redondez do planeta”. Carlos, que está construindo
sua obra a partir de seu quarto, entra em pânico quando lhe
noticiam a demolição de sua velha casa na Calle Garay.
Pois nela, em algum ponto de uma escada no porão, existe um
aleph, “o lugar onde estão, sem confundir-se, todos os
lugares do mundo”. A partir daquela pequena esfera, de dois
ou três centímetros de diâmetro, Carlos Argentino
perscrutava o mundo, a fonte de seu poema colossal. Vejamos a descrição
do aleph, feita por Borges em 1949.
O
diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros,
mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição
de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos) era infinitas
coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo.
Vi o populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões
da América, vi uma teia prateada no centro de uma negra pirâmide,
vi um labirinto rompido (era Londres), vi intermináveis olhos
imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos
do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller
os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão
de uma casa em Fray Bentos, vi racimos, neve, tabaco, veios de metal,
vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de
seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não
esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer
no peito, vi um círculo de terra seca em uma vereda, onde antes
houve uma árvore, vi um sítio em Adrogué, um
exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de
Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando
criança, eu me maravilhava com o fato de que as letras de um
volume fechado não se misturassem e se perdessem no transcurso
da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-de-sol
em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala,
vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de
Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam
ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em uma praia do mar Cáspio
vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os sobreviventes
de uma batalha, enviando cartões postais, vi em uma vitrine
de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de
fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões,
maremotos e exércitos, vi todas as formigas que há na
terra, vi um astrolábio persa, vi em uma caixa do escritório
(e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas,
que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento
em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente
havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação da morte,
vi o Aleph, desde todos os lados, vi no Aleph a terra, e na terra
outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras,
vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam
visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam,
mas que nenhum homem mirou: o inconcebível universo.
Contemporaneamente, não falaríamos em aleph, mas em
webcams, a rede incipiente de câmeras onde, se não podemos
ver o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar cada vez mais
seus pontos mais longínquos. Hoje, de minha mesa de trabalho,
posso ver o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte
em Liljestrom, na Suécia, e a faina diária de uma formiga,
uma universidade imersa na escuridão no norte da Noruega e
um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes
de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca
de Babel em construção.
Monteiro Lobato, para consultar o futuro, cria em O Presidente
Negro um aparelho semelhante, o porviroscópio,
uma espécie de globo cristalino, através do qual Miss
Jane perscruta o mundo do século 23. O professor Benson obtem,
neste aparelho,
(...) uma corrente contínua, que é o presente. Tudo
se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixe que neste momento
agonizam no seio do oceano ao serem apanhados pela água tépida
do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação
de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn,
neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor
do pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha;
o leucócito a envolver um micróbio malévolo que
penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota d’água
que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra
marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá
acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada
pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estudio de
Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...
A forma como o visionário de Taubaté descreve o universo
vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica
à descrição do Aleph, publicada 23 anos mais
tarde. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto
lobatiano. Se considerarmos que Borges conhecia a literatura de Lobato,
e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da
publicação de El Aleph, é bastante
pertinente supormos que o autor argentino andou bebendo na cacimba
de nosso taubateano. Enquanto os sedizentes modernistas de 22 papagueavam
Marinetti, Marx e outros doutrinadores totalitários europeus,
Lobato, o escritor excluído do universo intelectual pelos seus
contemporâneos, olhava meio século adiante.