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Cristaldo
entrevista Sábato*
* Esta
entrevista foi realizada por ocasião da vinda de Ernesto Sábato
a São
Paulo, em meados de 1995.
Janer
Cristaldo - Você, que há mais de meio século vem
lutando contra as tiranias dos regimes comunistas, como se sente ao
final do
milênio?
Ernesto Sábato - Não só lutei contra as tiranias
comunistas, mas
contra toda forma de tirania. Não há ditaduras más
e outras benéficas: Todas
são igualmente abomináveis. O que me desagrada é
quando são feitas em nome
de grandes ideais, como foi o caso, precisamente, da stalinista. Pelo
mesmo
motivo, me repugnam as igrejas estabelecidas quem como no caso da
religião
cristã, com um Deus onisciente e infinitamente bondoso, torturaram
horrendamente ou perseguiram até a morte seitas bondosas.
JC - Estudando sua obra, sempre o vi como um espírito
religioso,
particularmente pelo fato de ter militado, em sua adolescência,
com os
anarquistas e logo depois com os comunistas.
ES - Sim, é claro que a maior parte dos adolescentes que se
aproximaram destes movimentos eram espíritos religiosos, ou
pelo menos
para-religiosos. Lutávamos contra a injustiça social,
não suportávamos ver
crianças morrendo de fome.
JC - Você acredita em Deus?
ES - Sim e não, conforme o momento e as circunstâncias.
Pois,
como acabo de dizer-lhe, é duro compatibilizar um Deus infinitamente
bondoso
com a venda por 100 ou 200 dólares de meninos e meninas para
a prostituição.
Essa notícia saiu aqui, falando de uma região do Brasil.
Mas, como diz Santo
Agostinho, em suas Confissões, Deus é inacessível
à razão, e o que estamos
utilizando aqui são meras razões. As grandes verdades
- e aquela da qual
estamos falando é a grande Verdade - só podem ser alcançadas
mediante a
intuição mística ou poética. Falo de poesia
no sentido mais primigênio e
profundo da palavra, não estou falando de versinhos. Só
a poesia - que
inclui não apenas poemas profundos, ficções memoráveis,
pinturas e obras
musicais eternas - é capaz de dar uma resposta. Por outro lado,
e falo a
propósito de sua pergunta, um espírito religioso não
é necessariamente
alguém que crê firmemente na existência de Deus,
mas também - e bastante
amiúde - alguém que vive angustiado com este problema.
Incluo nestes os que
blasfemam ou dizem atrocidades, que formam uma legião majoritária
e que, de
modo paradoxal, acreditam em Deus. Pois contra quem lançariam
então estas
blasfêmias? O ateu deve ser ateu e ponto final. Isso eu o disse
em meu
primeiro livro, faz meio século, Uno y el universo, que você
traduziu no
Brasil. Pois se se trata de um ateu enérgico, é preciso
se pôr em dúvida seu
ateísmo. Tampouco se pode acreditar que os anticlericais -
ou boa parte
deles - sejam ateus: são às vezes autênticos espíritos
religiosos que sentem
repugnância pela igreja estabelecida, pelo stablishment. Há
um anticlerical
bastante conhecido, chamado Jesus, que se rodeava de analfabetos pescadores
e de prostitutas, que predicava junto aos pobres, que contou aquela
parábola
sobre o camelo e o buraco de uma agulha, que detestava os fariseus
e os
escribas. Aquele ser também deve ter duvidado, como demonstra
sua última e
tremenda frase, quando foi crucificado. Tivesse vivido na Argentina,
na
última ditadura militar, que teria feito? É evidente,
teria pregado para as
villas-miseria, que no Brasil são as favelas. Que teria acontecido
com ele?
O mesmo que ocorreu com muitos de seus discípulos, que foram
seqüestrados
por comandos militares, logo violentados e torturados selvagemente,
e
finalmente assassinados. Teria sofrido, efetivamente, esta via crucis
e, o
que é mais horrendo, em nome dos valores "ocidentais e
cristãos", por
torturadores que eram assistidos e absolvidos por sacerdotes católicos.
E
assim teria morrido em Buenos Aires, como morreu tantas vezes em
circunstâncias semelhantes em todas as partes do mundo. Pois
a maldade é
universal e tem a duração da espécie humana.
É a frase do Eclesiastes,
quando diz que nada há de novo sob o sol. Refere-se, é
claro, ao coração do
homem, que é o mesmo desde sempre. Esse coração
que é o território no qual
lutam, pela alma do homem, Deus e o Demônio. Frases, palavras
do heresiarca
Fedor Dostoiesvski.
JC - O que pensa a igreja argentina a seu respeito?
ES - Alguns gostam de mim e me respeitam, a maioria me acusa de
"canhoto", de terrorista, de subversivo, de materialista
dialético (os mais
filosóficos), de bolche e epítetos semelhantes. Alguns
destes são corretos.
Outros, sofismas grosseiros.
JC - Quais seriam os justos?
ES - Sou, efetivamente, um subversivo. E um
"canhoto", porque propugno a justiça social, a liberação
dos povos oprimidos
e luto contra toda forma de racismo. Quanto ao epíteto de "materialista
dialético", você, que está traduzindo Hombres
y Engranajes e traduziu meus
três romances, sabe que é um enorme, grotesco e perverso
sofisma. E assim
ganhei, ao longo de meio século, uma bela fama: os reacionários
me
qualificam como comunista e os comunistas me qualificam como reacionário,
porque fui inimigo do criminoso regime soviético e por não
participar de seu
ateísmo de bairro. Devo esclarecer, no entanto, algo que para
mim é
importante: sempre respeitei os comunistas que, por sua candidez ou
sólida
fé acreditaram no regime soviético, os que sofreram
prisão e torturas, os
que lutaram com boa fé por seus ideais. Por isso - fato que
enalteci em dois
de meus livros - admiro e continuo admirando Che Guevara, que foi
acima de
tudo e de seu marxismo, um grande idealista, um personagem quixotesco
que,
como diria Rilke, teve sua morte pessoal na selva boliviana, após
ter
abandonado a burocracia cubana. Um herói, e sempre temos de
nos erguermos
ante um herói que morre por ideais. Não até sua
altura, é claro, mas também
quis e continuo querendo bem até suas mortes seres como Gerardo
Pisarello e
Arturo Sánchez Riva, a quem dediquei um livro, e me doía
saber que ele lia
as coisas que escrevi sobre o horror do stalinismo. Eram pessoas de
fé, que
acreditavam apesar de tudo. E houve muitos que morreram sob tortura
por
defender essas idéias nas quais acreditaram: merecem admiração
e respeito.
JC - A queda do muro de Berlim e o desmantelamento
da União Soviética, você os previu ou os considerava
como fatos impossíveis?
ES - Foram sacrificadas em torno de 20 milhões de pessoas,
e a
burocracia corrupta e a indigência do povo faziam possível
este final. Mas a
história não é previsível, já que
não obedece a leis racionais, como
precisamente pensavam Marx e Engels. A história é sempre
novidade, dizia o
filósofo norte-americano William James, irmão de Henry,
o romancista. Frase
brilhante mas que não gozava da admiração destes
pensadores que acreditavam
nas "leis" da história, como se fossem leis científicas.
Marx e Engels não
qualificaram seu socialismo como "científico"? Era
tão pouco científico que
nenhuma das predições de Marx se cumpriram: a revolução
social não só não
explodiu no país mais desenvolvido do mundo, como ocorreu em
um país
atrasado. Nem os proletários de todo o mundo se uniram para
lutar contra os
burgueses do mundo inteiro, mas nas duas grandes guerras mundiais
os
operários, junto com os burgueses lutaram contra os operários
e burgueses
unidos do outro lado. Nem os países comunistas não lutariam
jamais contra
outros países comunistas (lembremos o Camboja), isso para não
falar do ódio
dos chineses contra a União Soviética. Nem o espírito
religioso do povo
eslavo desapareceu por obra do ensino anti-religioso.
JC - Pode-se encontrar partes resgatáveis em Marx e
Engels?
ES
- Sim, penso que Marx foi um dos que mais lutou com seus
livros contra a escravidão no mundo capitalista, e especialmente
na
Inglaterra vitoriana com a qual conviveu, e tem partes filosoficamente
de
valor. Para seus epígonos baratos, e no caso grotesco de Stalin,
todas as
atividades do espírito foram reduzidas às forças
econômicas. Em sua Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel, afirma que não é a
história que faz o
homem, mas sim o homem real e vivo que faz a história. Mas
a escolástica
stalinista tergiversou e barateou suas ideais. Homens como Labriola,
na
Itália, foram sufocados pela escolástica oficial. Talvez
como resultado da
tradição hegeliana que na Itália se manteve por
obra de Croce - filósofo
idealista - pode surgir um espírito tão admirável
como Gramsci, que durante
seus seis anos de cárcere escreveu páginas que resplandecem
em meio à
baixeza filosófica do stalinismo. Lutou contra a obra de Plekanov,
que tanto
foi predicada em meus anos de estudante, quando defendia que a arte
era um
"reflexo" da sociedade e que as condições
econômicas "explicavam" os
sentimentos, as idéias e a arte. Bastaria lembrar que Marx
recitava de
memória Shakespeare e os líricos ingleses e alemães,
muitos deles
"reacionários", e ria de L'Insurgé, aquele
romance "engajado" de um
militante da Comuna de Paris. E o que não teria dito da famosa
arte
"proletária" incubada pelo stalinismo! Também
devemos reconhecer, frente ao
homem abstrato de Hegel, alheio à terra e ao sangue, a frase
de Marx : "O
homem não é um ser abstrato, fora do mundo: é
o mundo dos homens, do Estado,
da sociedade". E sua consciência é uma consciência
social, enunciando assim
um novo humanismo frente às enteléquias iluministas
e racionalistas tipo
Voltaire. Nisto, há muito parentesco com o que fariam os existencialistas
de
forma mais acabada. Mas ele compartilhava com os iluministas o mito
da
Ciência e da Luz contras as potências obscuras. Essas
potências obscuras que
constituíam o mais profundo e concreto da condição
humana: a alma e suas
paixões, o inconsciente e suas verdades, a própria fonte
dessa arte que
tanto admirava. Por alguma razão ele e Engels chamavam seu
socialismo de
"científico", frente aos utópicos anarquistas,
que são os que finalmente
tiveram razão. Demoliu implacavelmente Proudhon, mas agora
compreendemos que
aquele socialismo não teria incorrido na massificação
soviética, típica
tanto do capitalismo de massa como do socialismo de massa, ambos herdeiros
da ciência e da técnica, que conduziram a esta espantosa
catástrofe de nosso
tempo.
JC - Em suma, voltar ao anarquismo?
ES - Sem dúvida, se não seremos destruídos minuciosamente
pelo
desastre talvez irreversível da ciência e de sua filha
dileta, a técnica,
com suas megalópoles, com a destruição geral
da natureza e do próprio homem,
massificado, coisificado, que não tem outra saída senão
a droga ou o
nihilismo destrutivo. Mas isto nos leva muito longe e não pode
ser
desenvolvido em uma simples entrevista. Você está agora
traduzindo Hombres y
Engranajes, que escrevi em 1951, onde explico em profundidade esta
crise
colossal. Me encheram de insultos e fiquei dez anos sem publicar uma
única
linha, até 1961, quando me decidi a editar Sobre Heróis
e Tumbas. Agora,
tudo o que disse naquele livro está à vista, todo o
desastre do famoso
progresso.
JC - Quais seriam as conseqüências desta degringolada
para os
futuros projetos dos escritores?
ES - Depende de que espécie de escritor você fala. Para
os
profundos, será sempre a mesma coisa, os temas transcendentes
que constituem
a condição humana, que são sempre os mesmos.
Para os escritores de ocasião,
para os que se limitam ao anedotário político, não
sei, suponho que
continuarão escrevendo as mesmas superficialidades.
JC - Você parou de escrever ou vai nos brindar com alguma
outra
criação?
ES - Você sabe que em 1979 me detectaram uma grave doença
nos
olhos: não câncer, mas algo irremediável, com
o derrame do humor vítreo, com
o que as retinas ficam sem proteção, e as lesões
decorrentes que naquela
época eram muito grandes. O especialista, um grande amigo meu,
me proibiu a
leitura e a escritura, salvo em quantidades mínimas e empregando
minha
memória digital.
JC - Está cumprindo esse pedido médico?
ES - Não foi pedido, foi uma ordem terminante, amistosa mas
terminante. Claro, como não iria cumpri-la? Para cúmulo,
este meu horror
sagrado à cegueira...
JC - Como se seus livros, seus romances, tivessem um caráter
premonitório...
ES - Sim.
JC - Você agora começou a pintar, precisamente
porque está mal
de vista?
ES - Claro, vale a piada. Mas a realidade é que o tamanho de
um
quadro me permite o que não me permite a letra. Quando o oculista
me disse,
com um rosto muito grave, o que me acontecia e observou que talvez
eu não
tivesse ficado angustiado, me falou de sua perplexidade. É
muito simples,
respondi, toda minha vida tive a nostalgia de minha paixão,
primeiro pela
pintura, desde que era pequeno e depois adolescente. Foi a minha primeira
e
talvez mais forte paixão. Nesse mesmo instante me senti liberado,
porque que
cada vez que fazia alguma coisa de pintura, sentia uma espécie
de culpa,
porque muitos me diziam que devia continuar escrevendo. Na realidade,
ao
concluir Abadon, o Exterminador, em 1974, senti que havia dito tudo
o que
tinha de dizer, a ponto de minha tumba aparecer no romance. Enfim,
continuei
escrevendo alguns pequenos ensaios. Mas as grandes verdades, pelo
menos as
que eu não consigo alcançar, já estavam ditas.
Essas grandes verdades
existenciais, as quais não só escrevemos conscientemente
mas, e
principalmente, com os ditados que vêm do mais profundo de nosso
ser, do
inconsciente. A propósito, quero acrescentar algo que considero
fundamental:
a pintura permite uma transmissão mais direta destas visões
inconscientes. E
por isso é mais catártica, mais liberadora.
JC - O mesmo não diriam um Proust ou Joyce. Explique
melhor a
coisa.
ES - O inconsciente se expressa sempre por imagens, como nos
sonhos, que são como cinema mudo. com raras exceções.
A pintura tem esta
vantagem sobre a literatura, embora por outro lado tenha desvantagens.
Tanto
em um caso como no outro, o fundamental, as grandes verdades, vêm
do
inconsciente. De um sonho pode-se dizer qualquer coisa, menos que
seja
falso. O processo da criação, tal como pelo menos eu
pude verificar
pessoalmente, é assim: em momentos excepcionais, nessa região
penumbrosa que
fica entre o sono e o pleno despertar, às vezes se consegue
entrever algo,
o que poderíamos e talvez deveríamos denominar de "objeto
poético", quase
inexpressável, ambíguo, contraditório, mas tão
verdadeiro que nos sacode,
nos angustia ou nos fascina. O escritor tem de expressar esse objeto
por
intermédio da palavra, mas a palavra sempre é conceitual:
"árvore" não é a
imagem de uma árvore, já que serve tanto para uma palmeira
como para um
limoeiro. É uma convenção abstrata, e por isso
em cada língua se diz de
maneira diferente: árvore, baum, tree... Um dos grandes problemas
que o
escritor tem de resolver é o de expressar, mediante conceitos
puros, algo
que não é conceitual, mas visual, e além disso
ambíguo, polivalente. Penso
em todas as interpretações que se podem fazer e foram
feitas dos sonhos de
José, através dos séculos. Essa é a diferença
entre poesia e prosa, não a
que se pensa normalmente: a prosa, em sentido estrito, é um
teorema, ou uma
lei científica, ou um prospecto que acompanha um objeto doméstico
eletrônico, em que se dá instruções precisas
e unívocas sobre cada botão. A
poesia, no sentido grande e clássico, é, ao contrário,
ambígua e multívoca,
seja um poema, uma tragédia ou um grande romance. Tem muitas
leituras, como
se diz agora no jargão, é suscetível de diferentes
interpretações, que mudam
inclusive em nós mesmos, como leitores, à medida que
passam os anos. Esta
linguagem poética, que na simples prosa emprega idéias
abstratas, na pintura
se dá diretamente através de uma imagem.
JC - Você tem feito exposições?
ES - Sim, mas só no estrangeiro. a primeira no centro Pompidou,
há pouco uma em Madri e outra novamente em Paris.
JC - Como influiu em seu ânimo, e mesmo em sua saúde,
essa nova
condição?
ES - Maravilhosamente. A pintura é mais liberadora, por isso
talvez existam pintores mais longevos que escritores. Marc Chagall
não
acabava de morrer nunca... Há, além disso, a vantagem
de ser algo mais
intuitivo e manual. Até o cheiro de terebentina me subjuga.
Cada vez que
entrava no ateliê de pintura de um amigo meu sentia esse cheiro
e um
sentimento de frustração. Alguma vez escrevi que lutamos
contra o destino e
o destino por fim tem razão. Eu costumava dizer a Matilde:
morrerei com uma
enorme nostalgia da pintura. A semicegueira me permitiu a pintura.
JC - Em que escola você se situa?
ES - Você, que leu e traduziu meus romances, que acha?
JC - Uma pintura trágica e expressionista?
ES - Acertou.
Ultimamente derivou para uma obra totalmente
sobrenaturalista. Há quadros tão terríveis que
não poderia colocá-los em
minha casa, como diria um marxista eterno, o Groucho.