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Memórias De
Um Ex-Escritor
(I)
Dom
Pedrito
Feliz de quem tem uma província no fundo do coração,
disse alguém, já não lembro quem. Talvez Machado
de Assis. Nada dá mais prazer a um homem honesto do que falar
de si mesmo, pôs Dostoievski na boca de um de seus personagens.
Província é o que não me falta. E não
tenho desprazer algum ao falar de mim mesmo.
Nasci no campo, naquela zona dúbia entre Brasil e Uruguai,
Três Vendas e Ponche Verde, Puntas de Yaguari e Villa Indarte.
Mais precisamente, em Upamaruty, a menos de uma légua da Linha,
fronteira seca com a República Oriental del Uruguay. Em razão
dessas curvas anômalas da geografia política, o sol para
mim sempre nasceu na Banda Oriental – ou Tierra de Ningún
Provecho, como os conquistadores espanhóis definiam o Uruguai
em seus mapas. Pelo que aprendi da vida nestas andanças, as
fronteiras produzem, entre outros, dois tipos de homem. Existe aquele
para quem o mundo termina ali, antes da divisa. Este é o nacionalista
atroz: meu país é o melhor país do mundo. Mas
as fronteiras geram também outro espécime, que vê
o mundo começando do lado de lá. Pelo lado de cá,
jamais senti muita atração, já o conhecia.
Só
mais tarde fui saber que nasci embalado pelo poema maior gerado por
este continente. Nas madrugadas lá da Linha, antes de buscar
as vacas em meio à cerração, sempre se tomava
um mate ao redor da fogueira no galpão. Enquanto eu chorava
a contragosto, com a fumaça de algum cavaco de madeira verde,
meu pai recitava as coplas de Fierro. Tenho uma definição
muito pessoal de gaúcho. Se interpelar alguém:
Aqui
me pongo a cantar
al compás de la vigüela,
e
se meu interlocutor não continuar a sextilha, não é
gaúcho. Pode ser até rio-grandense, mas gaúcho
não é.
que
el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.
Em
abril de 91, em um final de noite em Paris, encontrei uma uruguaia
que vivia na Noruega, em Oslo, e se dizia gaúcha. Dei o santo,
ela deu a senha. Tudo bem, era gaúcha. Gaúcho, se for
gaúcho mesmo, continua a sê-lo mesmo nas antípodas.
Aliás, esqueci de perguntar para a uruguaia gaudéria
se tinha uma tapera em seu passado. Certamente a teve, bastava olhá-la
nos olhos quando falava da pampa.
Entre
los pastos tirada
como una prenda perdida
y en el silencio escondida
como carícia robada,
completamente rodeada
por el cardo y la flechilla
que como larga golilla
van bajando a la ladera
está una triste tapera
descansando en la cuchilla
donde palpitar senti,
llenas de afecto profundo,
cosas chicas para el mundo
pero grandes para mí.
Este
excerto é de Mi Tapera, de Elias Regules. O poema não
é muito conhecido entre nós. Deslumbrados pelos brilhos
teóricos emanados de Paris ou Moscou, os donos da cultura no
Rio Grande do Sul ajoelharam-se em direção ao norte
e deram as costas para o Prata. Aliás, nisto os rio-grandenses
não são nada originais, esta é a atitude nacional.
Ao norte do rio Uruguai, raras pessoas conhecem Martín Fierro.
Em Florianópolis, quando propus um curso sobre o poema, os
PhDeuses que me cercavam julgaram que eu estava falando grego. Hoje,
em São Paulo, tenho fascinado não poucos amigos recitando
as coplas de Hernández. Jamais haviam ouvido falar do homem
ou da obra.
O
mesmo já não acontece na Europa. Certa vez, alguns anos
antes da reunificação alemã, caí em Berlim
Ocidental, em plena "Semana Martín Fierro". Era hóspede
de uma amiga riograndense de origem italiana, que não sabia
se José Hernández era açougueiro ou alfaiate.
Quando soube que o poema começara a ser escrito em Santana
do Livramento, achou que eu estava abusando de meu senso de humor.
Foi consultar uma enciclopédia literária alemã,
lá estaria a verdade. Pois estava: os dicionaristas concediam
várias páginas a nosso vizinho e o comparavam –nada
mais, nada menos– a Homero.
Em
Paris, quando defendia na Sorbonne uma tese de doutorado em Literatura
Comparada – no fundo um álibi para queijos e vinhos,
mulheres e novas paisagens – tive a grata surpresa de ver no
júri M. Paul Verdevoye. A parte de ser um dos grandes divulgadores
da literatura latino-americana na Europa, era o tradutor do poema
de Hernández ao francês.
Tive
ainda um outro reencontro com os versos de minha infância lá
no outro lado do Atlântico. Obcecado por ilhas, acabei caindo
nas Canárias. Em Las Palmas, encontrei um professor universitário,
arabista de renome, cuja pedra de toque era o conhecimento do poema
argentino. Pois naquela ilha vulcânica, batida pelos ventos
da África, tão estranha à pampa gaúcha,
o homem siderava platéias recitando a saga de Fierro.
Fevereiro
de 2004.