:: Sobre Don Camilo

Porto Alegre está de parabéns. Pelo que me consta, recebe pela primeira vez um prêmio Nobel de Literatura. Outro já passou por aqui, no dia 9 de agosto de 1949. Cansado e acometido durante a viagem por uma hemoptise, seu estado de ânimo não é dos melhores. Deixará registrado em seu diário de viagens: "a cidade é feia. Detesto essas ilhotas de civilização". Chamava-se Albert Camus, mas ainda não havia recebido o prêmio Nobel. Na ocasião, foi saudado por Erico Verissimo.


Por que Cela está em Porto Alegre e não em São Paulo, como seria a ordem natural das coisas? O poder econômico e de imprensa de São Paulo faz com que a cidade monopolize os grandes eventos culturais do país. A presença de Cela na capital gaúcha tem um significado maior. Gaúchos, sempre tivemos uma relação mais íntima com a cultura hispânica. Enquanto o eixo São Paulo/Rio sempre esteve mais voltado para Paris ou Nova York, o gaúcho sempre olhou para o Prata e por extensão, para Madre Espanha. Martín Fierro, por exemplo, pouco ou nada diz para um paulista, mas é íntimo de qualquer bolicheiro da campanha gaúcha.

A obra fundamental de Cela é, sem dúvida alguma, seu primeiro livro, A Família de Pascual Duarte, publicado na Espanha em 1942. Só foi traduzido no Brasil, para nossa vergonha, em 1986, nada menos que 44 anos depois. Costumo dizer que o Brasil está sempre uma década atrás do que acontece na Europa. Neste caso, estamos nada menos que quatro décadas em atraso. As traduções de obras literárias de porte sempre exercem forte pressão, seja sobre as línguas para as quais foram traduzidas, seja sobre a literatura do país que as acolhem.

A Família de Pascual Duarte chegou com enorme atraso ao Brasil, mas pelo menos chegou.
Tivesse sido traduzida nos anos 50, certamente outros seriam os rumos de nossa própria literatura. Falar nisso, recém se começa a pensar em traduzir no Brasil este ensaio fundamental de Camus, O Homem Revoltado, publicado em 1951. A comparação não é fortuita, no sentido de que estes dois criadores escreveram sob a sombra da Guerra Fria e tiveram de suportar todas suas conseqüências. Vários estudos já foram feitos, estabelecendo relações entre O Estrangeiro e A Família de Pascual Duarte, livros publicados no mesmo ano de 1942 em meio ao vácuo de valores decorrente das matanças da Guerra Civil espanhola e da Segunda Guerra Mundial.

Da dificuldade de transportar Cela - Voltando de uma viagem à Espanha, em 1987, com alguns dólares ainda no bolso, decido comprar as Obras Completas do mais importante autor espanhol contemporâneo. Passo na Casa del Libro, em Madri, e mando descer Don Camilo das prateleiras. Para meu pânico, eram - na época - dezessete volumes, cerca de 800 páginas cada um. E o que faltava integrar à coleção daria mais três ou quatro tomos da mesma idade. E o homem continuava "vivito y coleando". E escrevendo.

Afirmar que um autor vivo é o mais importante de sua época é gesto ousado, pois não poucos partidários de outros autores também significativos brandiriam suas próprias preferências em protesto. Mais delicada se torna esta afirmação quando é feita sobre um escritor polêmico como Camilo José Cela - "hay celianos, celistas y celosos" - autor que, apesar de obra vastíssima e de contar entre suas láureas o prêmio Nobel, ainda não foi julgado digno do prêmio Cervantes.

Por outro lado, afirmar que Cela é o mais importante escritor espanhol contemporâneo não exige maior coragem intelectual. Não continua A Família de Pascual Duarte brilhando solitária no panorama espanhol deste século? Não é a novela espanhola mais traduzida depois do Quixote? Em meio a uma obra imensa e variegada, que vai do poema e do conto à crônica e lexicografia, não produziu dois outros grandes momentos da novelística espanhola, A Colmeia e Mazurca para Dois Mortos? Afirmar a importância maiúscula de Cela nas letras de Espanha não exige maior audácia, nem maiores justificativas.

Aliás, Don Camilo já suspeitava disto. Em 1953, para escândalo de seus leitores, afirmava: "Me considero el más importante novelista español desde el 98. Y me espanta el considerar lo fácil que me resultó. Pido perdón por no haberlo podido evitar". Para Jorge Urrutia, fazem parte do estilo celiano estas frases claramente agressivas, que têm o propósito de escandalizar: "posiblemente es cierto que Camilo José Cela sea el más importante novelista español desde el 98, pero no es correto que lo declare él mismo".

Mas o ensaísta aventa uma outra leitura destas duas frases, o espanto de um autor dotado de uma grande capacidade autocrítica, "modestamente asustado de su posibilidad de escritura y lamentando haber destacado de tal modo por encima de sus contemporâneos. Temeroso quizá de que la relativa pobreza de la novela española de este siglo haya subrayado tanto su existencia".

Há coisa de dez anos, ao propor um curso sobre a novelística de Cela em uma universidade brasileira, as objeções não se fizeram esperar: Cela não é um escritor significativo, ele lutou na Falange. De fato, em 1937, nosso autor engajou-se no exército rebelde, onde foi cabo de artilharia do Regimento Ligeiro n. 16. Foi ferido na perna direita e recebeu um tiro de metralhadora no peito. Em 1940, pertencia ao time dos vencedores. Mas se o autor não se viu forçado ao exílio, o mesmo não ocorreu com sua obra. E não será por este gesto - que adquire um novo significado após a queda do muro de Berlim - que se irá jogar ao lixo uma das mais densas e inovadoras obras deste século.

Jorge Luis Borges pode ser condecorado por Pinochet, pode voltar do Chile afirmando que lá não viu tortura alguma e isto lhe é perdoado, não terá passado de uma boutade do grande escritor argentino. Pablo Neruda morre stalinista convicto, mas coroado pelo Nobel e em odor de santidade. Jorge Amado desenvolveu boa parte de sua vida um zdanovismo primário (com perdão pela redundância), recebeu comovido o prêmio Stalin de literatura, escreveu hagiografias em torno ao Paizinho dos Povos, mas é preferível omitir tais fatos em sua biografia. Marinetti. arauto da guerra e porta-voz do fascismo, é louvado como o inspirador e patrono das vanguardas brasileiras de início do século e seus manifestos, que seriam assinados embaixo por um Goebbels ou Hitler, continuam ainda hoje sendo objeto de culto por não poucos professores de literatura. Heidegger foi conivente com o nazismo. "Mas que tem a ver o pensador com sua obra"? - objetam certas almas caridosas.

Um espécime em extinção - Estamos recebendo, hoje em Porto Alegre, um espécime em extinção. Don Camilo terá hoje mais de cem títulos publicados, e esse tipo de autor tende a morrer com este século. Estamos entrando em uma era em que o suporte da transmissão do saber já não é necessariamente o livro. Ou pelo menos não é o livro na forma em que o conhecemos atualmente, o livro-papel. Os editores sabem disso, os professores de Letras também e espero não estar falando de corda em casa de enforcado.

No início de sua carreira literária, assim se definia Cela:
"Meço um metro e oitenta, peso 76 quilos, calço 41, tenho 12 de pressão arterial, meus olhos são castanhos, com belos reflexos verdes à luz do entardecer, meus cabelos estão a perigo e, como sinais particulares, posso apresentar duas cicatrizes no rosto - uma no queixo e outra no lábio superior - um tiro na virilha esquerda, por sorte e um tiro de metralha no peito: o normal dos que eram jovens na virada de 37. Para entreter-me, fiz uma guerra, me casei duas vezes, fiz um filho e publiquei dez ou doze livros".

Sua trajetória na literatura é paradoxal: começa aos 26 anos com uma obra-prima, La Familia de Pascual Duarte (1942), o romance espanhol mais traduzido no mundo depois de Dom Quixote. Entre suas dezenas de títulos, destacam-se La Colmena (1951) e Mazurca para Dos Muertos (1983). Estes três já foram traduzidos no Brasil. Um outro título importante - e maldito - é San Camilo, 36, (1969), onde o escritor aborda, através de colagens de jornais e monólogos interiores, a eclosão da Guerra Civil Espanhola.

Em La Familia de Pascual Duarte, até hoje considerada sua obra maior - traduzida para mais de 20 idiomas, entre estes o latim - o autor narra as peripécias de um camponês estremenho de temperamento violento, que após uma série de crimes brutais, acaba por matar a navalhadas a própria mãe. Este tipo de ficção, bastante aparentada aos "romances de ciegos", nos quais um recitador desfia um rosário de desgraças, foi chamado pelos críticos de "tremendismo", ou seja, o gosto por situações truculentas e cruéis, exacerbação das misérias físicas dos personagens e humor sinistro. Interrogado certa vez por uma professora se o livro seria autobiográfico, Cela deu vaza a seu senso de humor: "Claro. E se a senhora visse com que ganas apunhalei minha mãe!"

Na obra de Cela há uma forte presença da prostituição e não seria de todo exagerado afirmar que Mazurca para dois mortos é uma crônica galega da Guerra Civil, vista através da ótica de um bordel. Prostitutas à parte, esse romance surpreendeu a crítica espanhola por inovar poderosamente a narrativa ficcional, constituindo ao mesmo tempo uma telúrica reportagem sobre a Galícia e seus mitos. Com esta crônica travestida de romance, o autor atinge a condição de "escritor para escritores".

. As prostitutas desempenham um papel fundamental na novelística celiana, fazendo-se presentes desde sua primeira obra: a irmã de Pascual Duarte é levada à prostituição por El Estirao. O leitor atento notará o carinho com que Cela as trata: em meio a canalhas, delatores, padres lúbricos, vagabundos e assassinos, as profissionais são os raros personagens - patéticos personagens - a manter intacta uma certa reserva de humanidade.

Pesquisador deste universo em geral esquecido pelos literatos, Don Camilo chegou a publicar, em 1964, um belo estudo sobre as putas de Barcelona, intitulado Izas, Rabizas y Colipoterras (Drama con acompañamiento de cachondeo y dolor de corazón), obra hoje rara e perseguida por bibliófilos, pois parece que as moças do Barrio Chino julgaram-se por demais expostas nas fotos que ilustram o ensaio. Em A Colmeia há uma cena antológica. Quem viu o filme - onde Don Camilo faz uma ponta - deve lembrar o momento em que, para ter acesso a um apartamento de encontros, todo freqüentador deve dizer uma senha: "Napoleón fué derrotado en Waterloo". Mas a senha é de tal conhecimento público, que quando um cliente se engana, uma vizinha responde: "el piso de las putas es el de arriba".

Que restará, nas décadas vindouras, da obra de Cela? Pascual Duarte, é claro, ficará brilhando como sua obra maior. Enquanto houver um galego e uma Galícia, Mazurca para dois Mortos sempre será lido com deleite. Todo hispanófono ou hispanófilo sempre encontrará, em algum recanto da obra celiana, um oásis onde descansar. Sabemos que a luta entre os mortos é muito mais violenta que a luta entre os vivos. Os vivos disputam suas áreas de influência nos jornais, universidades e editoras, onde acordos e tréguas são viáveis. Os mortos se dão cotoveladas nos territórios mudos e sem apelo das enciclopédias.

Se um homem deixar um só livro para a posteridade, já justificou sua existência. A tradução é a posteridade imediata de um autor, ele se torna presente em outra cultura que não a sua. O estremenho Pascual Duarte transportou Don Camilo a todas as línguas de cultura. Aos 26 anos, fato insólito na vida de um escritor, Cela conquistou seu passaporte para a posteridade.

Não bastasse este feito, Cela, com sua obra posterior, tornou-se o intérprete maior da Espanha. É escritor para ser degustado, antes de mais nada, por pessoas que um dia se apaixonaram pela Espanha ou que, por razões de origem, a trazem na memória ou no sangue. Não se pode esperar, evidentemente, que jovens ensurdecidos pelo rock ou funk tenham qualquer apreço pela música que emana, por exemplo, de Mazurca para Dois Mortos.

Há obras que ficam profundamente arraigadas a uma cidade, uma região ou época histórica. Se Mazurca existirá enquanto existir Galícia, A Colmeia e San Camilo, 36 serão obras de referência obrigatória para quem quiser entender Madri. Temos depois toda uma obra de crônicas referentes à Espanha, que dizem respeito mais ao leitor espanhol que ao brasileiro, e que despertará a atenção daquele estrangeiro que quiser mergulhar um pouco mais profundamente na Espanha. Como acontece com toda literatura, a seleção será feita pelo correr dos séculos.
Neste abordagem à vôo de pássaro da obra de Cela, quero dar notícia de dois livros. Quero mostrar de um lado a faceta lúdica e ao mesmo tempo erudita do autor e também seu lado político, sua inquietação de intelectual preocupado com a história de seu país. Antes disso, algumas palavras sobre...

Por que não se lê Cela no Brasil? - Apesar do elevado contingente de galegos e espanhóis migrados para São Paulo e Rio Grande do Sul, pode-se dizer que a difusão da obra de Cela é mínima. A Família de Pascual Duarte teve duas pequenas edições no Brasil todo, Mazurca para dois Mortos apenas uma e, mesmo após o Nobel, não houve uma venda maior desses livros. É como se o público brasileiro, viciado com as fórmulas de bestsellers vindos do mundo anglo-saxão, não tivesse mais pálato para degustar um autor original, telúrico... e espanhol. Neste sentido, a iniciativa gaúcha deve ser mais uma vez louvada, pois trouxe até nós um autor que há dez anos era visto como leproso pela universidade brasileira. Explico.

Antes de entrar no cerne do problema, duas palavras sobre a indústria do livro no Brasil. Paralelamente ao lobby poderoso que vende os bestsellers vindos do Norte - onde às vezes encontramos inclusive bons ensaios - há a indústria infame do livro de curso forçado no circuito universitário. Os programas de vestibular e os currículos universitários forçam a venda de uma literatura ridícula, que nada tem a dizer a ninguém, e que jamais venderia não fosse esta venda forçada imposta pelas instâncias acadêmicas. Há centenas de autores na literatura brasileira que há muito estariam mortos e esquecidos, gozando do justo repouso dos mortos, não fossem as imposições da máfia universitária.

Ora, essa imposição, que não se contenta em afastar da degustação das Letras os estudantes de Letras, mas também todos os vestibulandos que, mesmo se dirigindo a medicina ou engenheira são obrigados a ler, ainda que perfunctoriamente, Camões ou Aluísio de Azevedo, essa imposição afasta todo jovem da boa literatura e fecha o espaço editorial a bons escritores. Entre um medíocre recomendado para o vestibular e um escritor como Cela, um editor não pensa duas vezes.

Vamos ao cerne do problema. Quando estava traduzindo Cela, em 1984, propus um curso introdutório à sua obra na UFSC, que foi imediatamente recusado por meus colegas. Motivo: Cela, em sua juventude, havia lutado na Falange franquista. Ou seja, meio século após a partição da Espanha em dois, vivíamos em plena Guerra Civil... em Florianópolis. Não importava o autor ter produzido a novela espanhola mais traduzida depois do Quixote - que já nos chegava com nada menos que meio século de atraso - não importava ser o intérprete "del país más lindo del mundo". Havia lutado na Falange e estava proibido em Florianópolis. Só consegui levantar o embargo três anos mais tarde, em 87, quando já havia traduzido dois de seus livros e a imprensa do centro do país começava a descobrir Cela.

Sugeri ao editor de Cela a publicação de um dos livros que considero fundamental em sua bibliografia, San Camilo, 36. Mas parece que a dedicatória do livro o assustou. Com a coragem do homem que não se dobra a fanatismos, escreve Cela: "A los mozos del reemplazo del 37, todos perdedores de algo: de la vida, de la libertad, de la ilusión, de la esperanza, de la decencia. Y no a los aventureros foráneos, fascistas y marxistas, que se hartaron de matar españoles como conejos y a quienes nadie habia dado vela en nuestro propio entierro".
Ou seja, antes da primeira linha, o autor nos adverte não nutrir nenhuma simpatia pelos estrangeiros que levaram a Espanha a uma carnificina. Num século que cultuou como heróis Neruda, Hemingway, Malraux, Sartre e tantos outros stalinistas, estas poucas linhas soam como heresia imperdoável.

Mas os tempos mudam, e cada vez mais aceleradamente neste final de milênio.
No dia 9 de novembro de 1989, fiz uma palestra aqui em Porto Alegre, no Instituto de Cultura Ibero-Americana, sobre Cela e a Guerra Civil espanhola, enfocando particularmente San Camilo, 1936. A data é significativa. Depois daquele dia, toda a história do Ocidente, e particularmente da Espanha, teve e terá de ser revisada. (Não em função de minha palestra, é claro). Naquela noite, caía o muro de Berlim.

Tornou-se evidente hoje o que só era óbvio para espíritos não contaminados pelo fanatismo. O papel de Franco na história terá de ser revisto. Um dos primeiros intelectuais espanhóis a dar-se conta disto foi Jorge Semprun, que concluiu não ter sido a democracia liberal que instaurou a modernidade na Espanha, mas o franquismo. Cito Jorge Luís Borges: "De haber triunfado la República, hoy España seria otra Cuba. Franco ha sido positivo para España". Se isto há dez anos o teria jogado no limbo dos autores encalhados, hoje já o situa no pequeno circulo dos videntes, apesar de sua cegueira.

Derrubado o muro de Berlim, talvez seja mais fácil editar e ler San Camilo, 1936. Mientras tanto, louvemos a independência intelectual de Cela que, tendo praticamente nascido com o século, soube manter-se isento dos fanatismos que o mancharam com toneladas de sangue. É difícil encontrar um autor de relevo que tenha percorrido este século sem ter-se contaminado pelo marxismo. Mesmo os mais lúcidos se deixaram iludir pela nova religião laica, entre eles podemos arrolar Gide, Orwell, Koestler, Sábato, Camus, Semprun e tantos outros, criadores brilhantes e de uma honestidade exemplar mas que, em um determinado momento, acenderam velas a Marx. Don Camilo, praticamente nascido com a Revolução de 17, escapou deste culto. E isto já é um grande mérito, ser ateu em uma época dominada por crentes.

Cela, cornólogo - Pretendia falar, disse, sobre duas facetas de Cela, e a primeira delas era a homem lúdico e ao mesmo tempo erudito. Pois Cela, que entre outras tantas ocupações dedicou-se à lexicografia, nos legou uma dessas obras que tem boa vocação para a posteridade, uma espécie de tratado geral de cornudos, ou melhor, Rol de Cornudos.
O fenômeno pode parecer irrisório, mas está na base de toda arte ocidental e tem inspirado pintores, romancistas, teatrólogos e cineastas. Não há história de amor que se preze sem um corno e um cornificador. Os grandes momentos da ópera estão recheados de cornos. O Don Juan, de Mozart, é o cornificador por excelência do continente europeu. In Spagna, gia sonno mille e tre.

Mas, justiça seja feita ao Ocidente, o fenômeno não lhe é exclusivo. O grande legado oriental à arte literária nasce sob o símbolo ameaçador da cornificação. Que são As Mil e Uma Noites senão o subproduto do medo do rei Shahriyar de ser traído pela esposa? Seu irmão Shahzamán já havia sofrido as mesmas dores - como direi? - de cabeça, e Shahriyar encontra a única maneira viável de não ser traído: a cada noite escolhe uma virgem, filha de algum de seus súditos, e a decapita na manhã seguinte.

Surge então Sharahrazad. Ciente da misoginia do rei, ao final da noite conta-lhe um conto, deixando o desfecho para o dia seguinte. Conseguindo despertar o interesse de Shahriyar, tem sua pena transferida para o dia seguinte. E assim sucessivamente, durante mil e uma noite, quando Shahriyar já tem três filhos de Sharahrazad e motivos suficientes para perdoá-la. Em suma: o monumento por excelência da literatura árabe nasce sob o temor ancestral à cornificação.
Os cornos - eu diria - são como os deuses, só existem para os que neles crêem. Mas quem neles creia é o que não falta, como também não falta quem creia em deuses. Charles Fourier, por exemplo, pensador utópico do século XVIII, em sua crítica à família monogâmica, vê a cornificação como conseqüência natural e necessária do casamento. Enumera os 64 tipos de corno que conhece, relação que chegará a 144 em obra posterior, abrangendo, pela ordem do coroamento, desde o corno potencial ao corno póstumo. Cela parte da relação inicial de Fourier e alarga consideravelmente o leque, inserindo nesta mostragem universal, segundo suas próprias palavras a "generosa contribuição ibérica".

O livro de Cela é dedicado a Charles Fourier (1772-1835), "tratadista que clasificó los cornudos de su tiempo y a mi amigo el Ilmo. Sr. Don Estanislao de la Sagra y Mascaresque, aliás Pijo Péndulo (1918-1976) cuyas ambas sucesivas esposas tanto y tán honesto solaz proporcionaron a mis carnes y mi espíritu gracias a lo mucho y bien que cornificaron en vida a su difunto. Laus Deo!"
Don Camilo parte do axioma suficientemente explicado por Franz Jakubowski, en Der Ideologische Ueberbau in der materialistischen Geschichtsauffassung, de que jamais houve um mamífero superior sem cornos. Considera que Xenócrates, sucessor de Euspésipo como escolarca da Academia Platônica, defendeu em seu pitagorismo a teoria de que os cornos são cambiantes como as nuvens, já que não há dois iguais. Xenófanes de Colofão explica, por sua vez, em seu Poema sobre a Natureza, que o universo é regido por um deus único, supremo e esférico –"todo olhos, todo ouvidos, todo cornos"– que é imóvel mas que, apesar de sua imobilidade, o rege e governa por seu pensamento e reparte cornaduras, entre os seres racionais, com infinita prodigalidade.

Alguns dos espécimes catalogados por don Camilo. Poderíamos começar pelo corno adorado, aquele que é amado em silêncio por quem o cornifica como substitutivo de conseguir seu amor. Consta que no cortejo fúnebre de certa dama estavam seu marido e seu amante. Este demonstrava tais sinais de desconsolo que o marido, tomando-o pelo braço, disse-lhe: "Não fique assim, mantenha a calma, o mais provável é que me case de novo".
Depois viria o alcoólatra, o que bebe para esquecer. Se abusa da bebida, chega a perder a noção do que queria esquecer e continua bebendo por inércia, sem mais lembrar o que aspirava jamais recordar. É espécie boêmia e tresnoitadoura. Por ordem alfabética, pinço a seguir o cornudo alérgico, o que mais sofre na primavera. pois tem os cornos inflamados pela polinização. Viria depois aquele "ao qual lhe abrem os olhos". Este, com não pouca surpresa, acaba compreendendo que o é. Espécime dominical vespertino, a esposa o empossa no cargo enquanto ele enrouquece chamando de corno um juiz que não apitou um pênalti evidente.
Temos depois o amansado – não confundir com o manso – , que também atende por catequizado ou convertido. É o que começou carreira esbravejando mas acabou se acalmando com o andar da carroça. Ao chegar à maturidade, costuma ser encantador. Poderíamos agora pinçar o anistiado, aquele que os teve apagados. São espécimes alegres, geralmente reincidentes. Viria em seguida o angélico, aquele que ao encontrar sua mulher na cama com o vizinho, atribui o fato aos rigores do inverno e à falta de calefação.
Isto sem falar no áugure. Este, segundo Cela, adivinha o sexo das crianças. Se incha o corno de estibordo, é menino. Se incha o de bombordo, dá menina. Na letra C, por exemplo, encontramos ser cada vez mais pululante, o corno contra natura. É cornificado por lésbica e qualquer tribunal de honra o expulsaria da confraria. Segundo nosso cornólogo, é espécie da qual nem vale a pena falar.
Já mais brioso e bastante encontradiço nas secretarias de Estado é o corno com vocação de sobrevivência, ou por causa emergente. É o cornudo de emergência de Fourier, ou de salvaguarda, que só entra no clube por necessidade de salvar a vida ou a fortuna. Não se preocupa pelos sinais externos e não deve ser confundido com o cornudo de sinais externos, ou seja, aquele que adorna a cornadura com as pompas e vaidades da carreira política.
Ainda na letra C, encontramos um distinto representante da confraria, o cosmopolita. Cornificado por uma legião de galãs forâneos, carece materialmente de tempo para distinguir entre quem lhos põe, quem lhos pôs e quem não lhos pôs e não pensa jamais pôr-lhes. Vive, diz Cela, em fronteiras ou aeroportos e costuma ler Le Monde.
Não deve este exemplar ser confundido com o de ambos mundos, também chamado póstumo. Este é cornificado pela esposa, sem respeito aos prazos legais ou consuetudinários. Outro espécime patético é o de bom modos, ou cerimonioso, o que jamais abdica de sua urbanidade. Se encontra sua mulher deitada com o vizinho, recrimina-o com suma cortesia: "Sua conduta não é correta, cavalheiro. Observe que a senhora que o senhor tem por baixo é minha legítima esposa, como posso provar-lhe documentalmente".
Segundo Cela, é espécime cujos confrades, quando pequenos, estudaram em colégios pagos, de jesuítas, oblatos, ou no Sagrado Coração de Jesus. Viria depois o de confiada evidência, o "casado com mulher cuja feiúra o tranqüiliza dos cornos". Mas nem sempre os evita, pois há cornificadores em desespero de causa que se contentam com o que é servido. Mais típico ainda é o defensor do vínculo, ou propagandista. Acérrimo partidário do matrimônio, estimula os amigos a se casarem, ignorando que podem tornar-se tão cornudos quanto ele. E recém estamos na letra D.

Para encurtar a conversa, me permito listar mais unzinho, o luminoso. Ou fosforescente. É aquele que tem luz própria, como as estrelas e, diferentemente dos astros, nele a cornadura brilha como a auréola dos santos mártires. É espécie decorativa, mas de escassa utilidade pública.
Este é o Don Camilo lúdico, que dedica seu ócio, ou suas pesquisas, a dissecar esta dor de cabeça tão típica dos países católicos. Se colhi - não exatamente ao acaso - alguns espécimes de fácil entendimento, cabe lembrar que Rol de Cornudos é um livro de extrema erudição, em certos momentos de difícil leitura e de tradução quase impossível. Se um editor brasileiro quisesse enfrentar esta empreitada, melhor faria se contratasse um escritor para pesquisar a fauna nativa.


Cela cronista - Voltemos ao Don Camilo mais grave, preocupado com a história espanhola. Embora não seja a mais divulgada obra de Cela, San Camilo, 1936 é certamente seu romance mais polêmico e talvez por isso mesmo ainda não publicado no Brasil. Pois entre nós, não poucas pessoas ainda ignoram o que ocorreu no dia 9 de novembro de 1989. Publicado em 1969, vinte anos antes desta revolução, ainda na época de Franco, evoca o clima de Madri nos últimos dias da Espanha republicana. O romance é um longo monólogo, narrado na segunda pessoa do singular, de um jovem perplexo que se olha no espelho, no tórrido verão madrileño de 36. A estratégia narrativa já é definida no início: "Uno se ve en el espejo y se tutea incluso con confianza...", frase que abrirá quatro outros capítulos e será retomada constantemente no corpo do relato. Este tutear-se, diálogo de Cela consigo mesmo, esparrama-se ao longo de toda a obra, entrecortado por referências históricas e fatos presentes.

Entre os fatos do presente, justapostos em uma espécie de collage - recurso que o autor usará abusivamente, mais tarde, em Mazurca para Dois Mortos - estão os faits divers da imprensa cotidiana e incidentes de rua, todos elegidos, ao que parece, por sua gratuidade e morbosidade. Cito ao acaso: na calle de Mesón de Paredes aborta uma criada que fora emprenhada em seu povoado, na glorieta de Bilbao agoniza um menino com garrotilho, em uma sala da calle de Arlabán se canta a plenos pulmões quando de repente alguém morre de infarto, no pronto-socorro de la Encomienda são curados dois que brigaram nas ruas, na calle de Velázquez seqüestram um deputado que será assassinado e na calle de Tudescos matam uma puta a navalhadas, "esto de la puta tiene menos importancia, putas hay muchas y además los crimenes pasionales no cuentan o cuentan poco, a la gente suelen gustarles pero por lo comun son muy monótonos, reiterativos y vulgares..."

Subrepticiamente, em meio aos anódinos fatos de uma crônica policial, o autor insere um seqüestro que será o leitmotiv de sua história e terá graves conseqüências na História espanhola. Outros fatos das ruas, sem transcendência política ou histórica nenhuma, mas reveladores de uma especial psicologia do homem do povo, são utilizados pelo autor para a composição de sua tela:
A violência latente do dia-a-dia madrilenho vai permeando o espírito do personagem que se olha no espelho. Respira-se um clima de guerra e "la necesidad de cometer un asesinato se siente en el paladar en un picorcillo pegajoso y caliente que se posa en el paladar y se va extendiendo después por la lengua, por las encías y por toda la boca". Essa ardência na boca vai contaminando os madrilenhos. Quem jamais havia pensado em assassinar torna-se facilmente assassino, "es fácil ser asesino, todos los hombres llevan dentro el pecho una bombillita de fragilísimo cristal en la que se agazapa el huevo del asesinato, esta bombillita se rompe mui facilmente al menor descuido, lo demás viene solo y por sus pasos, es como una infección..."

O assustador, seja no relato de Cela, como também em qualquer estudo sobre a Guerra Civil espanhola, é a rapidez com que se propaga o vírus do ódio entre irmãos. A guerra está no ar, prestes a instaurar-se com seus horrores. Mas até mesmo entre os senhores da guerra, raros são os que têm consciência de sua iminência e houve até mesmo generais passados pelas armas sem saber o que estava acontecendo.
"... nadie es asesino hasta que asesina, pero al que va a ser asesino se le posa antes de asesinar una rara picazón en cielo de la boca, se le nubla la vista, empiezan a zumbarle los oídos y se ciega pero no de todo, nadie está libre de que le nazca una turbia moneda en el paladar, hay dos clases de asesinos, el que mata como quien bebe un vaso de água, que es el peor, y el que mata como quien se acuesta con una mujer, sin poder evitarlo..."

Uma sangrenta litania percorre San Camilo, 1936 o tempo todo, assim como asperge continuamente vivos e mortos, assassinos e assassinados, em Mazurca para Dois Mortos, outro romance erguido sob a sombra da Guerra Civil. Mas paralelamente a este refrão hediondo - e aqui emprego o adjetivo em acepção espanhola, no sentido de mau cheiro - uma outra música se faz ouvir no romance, o que aliás valeu a Cela acusações de pornografia e obscenidade. Pois o autor utiliza o vocabulário nosso de cada dia. Usasse um linguajar centroeuropeu, falasse em Eros e Tanatos, instintos vitais e de morte, outro seria seu conceito junto a pudicos intelectuais. Mas não seria Cela.

Sua tese é simples. A ir à guerra, "lo mejor es ir de putas y olvidar, lo mejor es ir a una casa de putas y olvidarse de todo mientras uno se folla a una puta bien guapa".

Voltando a San Camilo: o jovem que se olha ao espelho em seus vinte anos e que ainda não entrou em "quintas" - sorteio para o serviço militar - julga melhor ir rumo às putas que servir de carne de canhão ou, na melhor das hipóteses, entregar-se ao calor da mulher amada, opção na qual é apoiado por um certo tio Jerónimo, alter ego cuja voz vai dominar o último capítulo do livro:

"... hártate de amar a Toisha desnuda y después cuando vuelva a quedarte solo cierra los ojos para sentirte aún vivo y en su contato, deja que sean otros los que se maten, tú no quieres morir, tú quisieras vivir eternamente..."

Para tio Jerónimo, a paz só voltará a reinar quando os homens buscarem o prazer e não a dor, o que pode parecer uma vasta lapalissade mas no fundo é utopia, urge que chegue o dia em que homens e mulheres se amem à luz do sol nos parques e no meio da rua, quando então serão cerrados abismos de ódio, concupiscência e fastio, aquele dia em que criada a benemérita ordem das putas de caridade:

"... este es un país de leche contenida, de leche a presión, tu crees?, claro que lo creo, aqui se jode poco y mal, si los españoles jodieran a gusto serían menos brutos y mesiánicos, habría menos héroes y menos mártires pero también menos asesinos y a lo mejor funcionaban las cosas..."

O humanismo de tio Jerónimo, esta espécie de breve contra os males da guerra, em uma Espanha católica e supostamente casta, provocará certos pruridos no leitor comum, o que faz com que até hoje Cela seja "un gran escritor, pero..." Como o livro ainda não foi traduzido no Brasil, não resisto à tentação de transcrever algumas prescrições desta terapia celiana:

"... llama por teléfono a cualquier novia que tengas e invitala a acostar-se contigo, da rienda suelta al amor cabalgando a la primera moza que se deje, a las otras ni saludes siquiera, a los veinte años se deve ser pródigo con el amor, sobrino, el amor no es un bien atesorable, el amor que hoy no brindas o no recibes no podrás recuperarlo nunca, el de mañana es otro, el amor es un mar abierto a diferencia del odio que es un claustro cerrado, déjame a solas con mi vejez y con mi aburrimiento y llama a cualquier moza que esté deseando amar y dejar-se amar, tiene que haber muchar porque la naturaleza todavía sigue produciendo porventura más amor que odio".

Em uma Espanha marcada pela ojeriza cristã ao prazer, tio Jerónimo considera que "el fuego de las hogueras inquisitoriales se apaga con semen, a Miguel Servet lo quemaron en la hoguera porque los calvinistas tampoco joden ni jodieran jamás a gusto ni lo suficiente".
Em meio à crônica do verão madrilenho de 36, após comentar o assassinato da prostituta a navalhadas, Cela introduz o assassinato de Calvo Sotelo, que dará a Franco e demais militares sublevados o pretexto para a rebelião.
O sangue chama sangue, escreve Cela. A Espanha partiu-se em dois. Machado já tivera a sinistra intuição:

"Españolito que vienes al mundo, te guarde Dios,
una de las dos Españas ha de helarte el corazón".

E César Vallejo já advertira:

"Cuídate, España, de tu propia España!"

O general Mola envia telegramas às unidades militares dizendo: "El pasado dia 15, a las 4 de la mañana, Elena dió a luz un hermoso niño. É a senha que, decodificada, significa que o levante começaria em Marrocos, dia 18 de julho, dia de San Camilo de Lelis, celestial patrono dos hospitais, às cinco horas da manhã. Camilo José Cela, cujo pai se chama Cela e cuja mãe se chama Camila, não seria insensível à data.

Em suma - Estamos pois ante um autor preocupado tanto com a gravidade da história de seu país e da época que lhe foi dado viver como com o trivial problema da cornatura. Com o romancista convivem o lexicógrafo e o humorista, o andarilho e o cronista de viagens, o escritor telúrico e o acadêmico, o cornólogo e o putanheiro, o cosmopolita e o galego empedernido, o prêmio Nobel e o mais importante escritor espanhol vivo... que ainda não recebeu o prêmio Cervantes!
Talvez certos segmentos da intelligentsia - ou burritsia - espanhola não tenham se dado conta do que ocorreu naquele 9 de novembro de 1989. É a meu ver a única explicação para não conceder a láurea máxima espanhola ao mais representativo escritor espanhol. Enquanto isso, renovo meus parabéns à iniciativa gaúcha.

 
   
     
         
         
         
         
         
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