::
A Grande
Prostituta
A
palavra bordel, para quem não sabe, nasce em Paris. Na época
em que as "maisons closes" ficavam às margens do
Sena, quando alguém ia em busca demulheres, dizia eufemisticamente:
"j'vais au bord'elle". Sena, em francês, é
palavra feminina, la Seine. Portanto, quando alguém dizia "au
bord'elle", queria dizer "aubord de la Seine". Daí,
bordel. Não é de espantar que a capital que deu ao mundo
esta palavra queira homenagear, nos dias 20 e 25 de março próximos,
no 18º Salão do Livro de Paris, a prostituta maior das
letras contemporâneas.
O
Brasil será o país homenageado do Salão e terá
como convidado de honra e representante de nossas Letras, Jorge Amado,
o mais vendido escritor nacional, que começou sua carreira
como estafeta do nazismo, continuou como agente do stalinismo e hoje
é roteirista oficioso de Roberto Marinho. Amado ainda receberá,
na ocasião, o título de Dr. Honoris Causa por uma universidade
parisiense. Nada de espantar: os parisienses, de longa tradição
colaboracionista e stalinista, não perderiam esta oportunidade
de homenagear, neste século que finda, o colega que desde a
juventude militou nas mesmas hostes.
Do
nazismo ao stalinismo
- Autor brasileiro mais divulgado no exterior, com traduções
em mais de 40 idiomas, colaborador de publicações nazistas,
ex-militante do Partido Comunista, deputado constituinte em 46, Oba
Otum Arolu do candomblé Axé Opô Afonjá
na Bahia, membro da Academia Brasileira de Letras, Amado nasceu em
uma fazenda de cacau, em 10 de agosto de 1912, no então recém-criado
município de Itabuna, na Bahia, filho de pai sergipano e mãe
baiana de ascendência indígena.
Em
1936, é preso no Rio, em conseqüência da Intentona
de 35, tentativa de tomada do poder ordenada pelo Kremlin e liderada
no Brasil por Luís Carlos Prestes. Em 1940, durante a vigência
do pacto de não-agressão germano-soviético, assinado
por Stalin e Von Ribbentrop, assume a edição da página
de cultura do jornal pró-nazista "Meio-Dia". Em uma
reunião do Partido Comunista, é denunciado por Oswald
de Andrade como "espião barato do nazismo" e instado
pelo escritor paulista a retirar-se de São Paulo. Quando interrogado
sobre o trabalho sujo deste período, Amado diz simploriamente:
“Não me lembro”. Mas Oswald de Andrade lembra.
Em antiga entrevista, republicada mais recentemente, em Os Dentes
do Dragão, dizia Oswald:
"“Diante
de tantos erros e mistificações, retirei a minha inscrição
do partido. Numa reunião da comissão de escritores,
diante de quinze pessoas do PC, apelei para que o sr. Jorge Amado
se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião
barato do nazismo, antigo redator qualificado do Meio Dia. Contei
então, sem que Jorge ousasse defender-se, pois tudo é
rigorosamente verdadeiro, que em 1940 Jorge convidou-me no Rio para
almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na
embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão
me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Jorge, depois
me informou que esse livro iria render-me 30 contos. Recusei, e Jorge
ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas do mesmo
alemão".
Em
45, Amado é eleito deputado federal pelo Partido Comunista
e publica Vida de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança,
uma apologia ao líder comunista gaúcho e membro do Komintern.
O panfleto, encomendado pelo Kremlin, foi traduzido e publicado nas
democracias ocidentais e nas ditaduras comunistas, como parte de uma
campanha para libertar Prestes da prisão, após sua sangrenta
tentativa, em 1935, de impor ao Brasil uma tirania no melhor estilo
de seu guru, o Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, mais conhecido
como Stalin.Para Amado, Prestes, é o “Herói,
aquele que nunca se vendeu, que nunca sedobrou, sobre quem a lama,
a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca
deixaram rastro".
Prestes
preso, segundo o escritor baiano, é o próprio povo brasileiro
oprimido:“Como ele o povo está preso e perseguido,
ultrajado e ferido. Mas como ele o povo se levantará, uma,
duas, mil vezes, e um dia as cadeias serão quebradas, a liberdade
sairá mais forte de entre as grades. ‘Todas as noites
têm uma aurora’, disse o Poeta do povo, amiga, em todas
as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora,
guiando os homens até o amanhecer. Assim também, negra,
essa noite do Brasil tem sua estrela iluminando os homens, Luís
Carlos Prestes. Um dia o veremos na manhã de liberdade e quando
chegar o momento de construir no dia livre e belo, veremos que ele
era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança;
calor no dia, certeza”.
Em
46, como constituinte, Amado assina a quarta Constituição
Brasileira.Dois anos depois, seu mandato é cassado em virtude
do cancelamento do registro do PC. Neste mesmo ano, 1948, fixa residência
em Paris, onde convive, entre outros, com Sartre, Aragon e Picasso.
Em 1950, passa a residir no Castelo da União dos Escritores,
em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreve O Mundo da Paz,
uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja.
No ano seguinte, quando o livro é publicado, recebe em Moscou
o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto
de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas
biografias.
Esta década é marcada por longas viagens, entre
outras,
à China continental, Mongólia, Europa ocidental e central,
à ex-União Soviética e ao Extremo Oriente.“Vós
sabeis, amigos, o ódio que eles têm - os homens de dinheiro,
os donos da vida, os opressores dos povos, os exploradores do trabalho
humano - a Stalin. Esse nome os faz tremer, esse nome os inquieta,
enche de fantasmas suas noites, impede-lhes o sono e transforma seus
sonhos em pesadelos. Sobre esse nome as mais vis calúnias,
as infâmias maiores, as mais sórdidas mentiras. ‘O
Tzar Vermelho’, leio na manchete de um jornal. E sorrio porque
penso que, no Kremlin, ele trabalha incansavelmente para seu povo
soviético e para todos nós, paras toda a humanidade,
pela felicidade de todos os povos. Mestre, guia e pai, o maior cientista
do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de
melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem
os dentes. Mas até Stalin se eleva o amor de milhões,
de dezenas e centenas de milhões de seres humanos. Não
há muito ele completou 70 anos. Foi uma festa mundial, seu
nome foi saudado na China e no Líbano, na Romênia e no
Equador, em Nicarágua e na África do Sul. Para o rumo
do leste se voltaram nesse dia de dezembro os olhos e as esperanças
de centenas de milhões de homens. E os operários brasileiros
escreveram sobre a montanha o seu nome luminoso”.Em função
de sua militância no PC, no início de sua trajetória
foi traduzido na China, Coréia, Vietnã e ex-União
Soviética. Só depois então é puxado para
os países ocidentais, pelas mãos de seu tradutor para
o alemão. Em Munique, em1978, entrevistei Curt Meyer-Clason,
o responsável pela introdução de Amado na Europa
ocidental.
O
baiano invade com sua literatura o mundo livre, que tanto caluniou,
através da finada República Democrática Alemã.
“Devido à proteção do PC, a RDA incumbiu-se
da publicação de todos os seus livros, já nos
anos 50” -disse-me Meyer-Clason -. “Depois, por meu intermédio,
passou diretamente à República Federal da Alemanha”.
Não por acaso, Meyer-Clason acaba de ser denunciado, pela revista
alemã Der Spiegel, como espião do Terceiro Reich no
Brasil.Da mesma forma que nega seu passado nazista, Amado não
comenta seu passado stalinista. Em seu último livro, Navegação
de Cabotagem, declara:"Durante minha trajetória de escritor
e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e conseqüências,
sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva.Deles soube
devido à circunstância de militar em partido político
que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade,
desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos
depois de ter deixado de ser militante do PartidoComunista, ainda
hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade
do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo realchega
a seu triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso
assumido de não revelar informações a que tive
acesso por ser militante comunista.
Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância
e não traga conseqüência alguma, mesmo assim não
me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança.
Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz
anotações, morrem comigo".Realismo Socialista -
Em 1954, julgando talvez insuficiente a defesa do stalinismo feita
em O Cavaleiro da Esperança e O Mundo da Paz, Amado publica
os três tomos de Subterrâneos da Liberdade, onde pretende
narrar a saga do Partido Comunista no Brasil. Só em 58, com
Gabriela, Cravo e Canela, deixará de lado sua militância
comunista e passará a fazer uma literatura eivada de tipos
folclóricos baianos, que mais tarde será transposta
em filmes nacionais e novelas da Rede Globo.O romancista baiano foi
o introdutor nas letras brasileiras do realismo socialista, também
conhecido como zdanovismo, fórmula de confecção
literária para a pregação do ideário comunista,
concebida pelos escritores russos Maxim Gorki, Anatoli Lunacharski,
Alexander Fadéev, e sistematizada pelo coronel-general Andrei
Zdanov. Nos países em que foi traduzido, Amado é visto
como um escritor que faz literatura brasileira. Em verdade, obedecia
a uma fórmula tosca, mais panfletária que estética,
produzida por teóricos em Moscou. Wilson Martins, em A História
da Inteligência Brasileira, traduz em bom português as
características do novo gênero:“... de um lado,
os bons, ou seja, os que se incluem na “chave” mística
do “trabalhador”, do “operário”; de
outro lado, os maus, isto é, todos os outros mas, em particular,
o “proprietário” e a “polícia”,
as duas entidades arimânicas deste singular universo. Os primeiros
são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução
e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios,
artesãos delicados, técnicos conscienciosos, empregados
eficientes (embora revoltados),imaginativos e incansáveis,
focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação
de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais
irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos,
sede de paixões violências (oh! no bom sentido!), modelos
de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos,
em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo.
O “trabalhador” é o herói característico
desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem
tantas relações com a realidade quanto o próprio
Amadis de Gaula.“Já o “proprietário”
é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em todos os vícios,
grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança
dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens
e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos,
arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças
inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada “capitalismo”,onde,
como todos sabem, é invulnerável a solidariedade existente
entre seus membros; indivíduo que favorece todos os deboches,
inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta,
ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido
brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio
como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que
a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea
dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava
a si mesma.”Wilson Martins continua enumerando detalhadamente
os demais estereótipos utilizados neste tipo de romance, entre
eles a polícia, o tabelião, oposseiro, o governador,
o latifundiário, o camponês. Seria por demais monótono
continuar a descrição deste universo maniqueísta,
como tampouco teria sentidoa companhar a repetição -
ad nauseam - de uma fórmula primária de fabricar livros.
Vamos então enfiar logo as mãos no lixo.Os Subterrâneos
também foi escrito em Dobris, no mesmo castelo da União
de Escritores Tchecoeslovacos onde Amado produzira O Mundo da Paz,
de março de 1952 a novembro de 1953, ou seja, no período
imediatamente posterior à obtenção do Prêmio
Stalin. Como pano de fundo histórico temos, como não
poderia deixar de ser, a Revolução de 1917. Outras datas
e fatos posteriores determinarão poderosamente a construção
dos personagens.Em 1935, ocorre no Brasil a Intentona Comunista. Em
36, Prestes é preso, e sua mulher Olga Benário, judia
alemã que é oficial do Exército Vermelho, édeportada
para a Alemanha de Hitler. Getúlio Vargas consegue persuadir
o Congresso e criar um Tribunal de Segurança Nacional para
punir os insurgentes. Ainda neste ano de 36, eclode na Espanha a Guerra
Civil, confronto que envolveu todas as nações européias
e constituiu uma espécie de ensaio geral para a Segunda Guerra,
detonada em 1939, circunstância amplamente explorada por Amado.Em
1937, os integralistas lançam Plínio Salgado como candidato
às eleições presidenciais de janeiro do ano seguinte,
abortadas a 10 de novembro pelo golpe com que Getúlio consolida
o Estado Novo. Para desenvolver sua história, Amado fixará
um dos mais turbulentos períodos deste século, que até
hoje continua gerando rios de bibliografia. A ação de
Os Subterrâneos situa-se precisamente entre outubro de 37 (às
vésperas do Estado Novo e em meio à Guerra Civil Espanhola)
e finda aos 7 de novembro de 39, 23º aniversário da proclamação
do regime soviético na Rússia.Amado, escritor e militante,
tem por incumbência várias missões. A primeira
consiste na defesa dos ideais de 17, encarnado em Lênin e Stalin,
potestades várias vezes invocadas ao longo dos três volumes.
Segunda, fazer a defesa do Messiasque salvará o Brasil, Luís
Carlos Prestes, e não por acaso a trilogia encerra-se com seu
julgamento. Missões secundárias, mas não menos
vitais: denunciar o imperialismo ianque, condenar a dissidência
trotskista, pintar Franco com as cores do demônio e fustigar
Getúlio por ter esmagado a atividade comunista a partir de
35.Seus personagens são títeres inverossímeis
e sem vontade própria,embebidos em álcool se são
burgueses, ou imbuídos de certezas absolutas, mais água
mineral, se são operários ou militantes, estes sempre
obedientes aos ucasses emitidos às margens do Volga.A obra,
composta por três volumes - Os Ásperos Tempos, Agonia
da Noite e A Luz no Túnel - constituiria apenas a primeira
parte de uma trilogia mais vasta, com pretensões a ser o Guerra
e Paz brasileiro. Os três tomos são publicados em maio
de 1954, um ano após a morte de Stalin e dois antes do XX Congresso
dos PCURSS, o que obriga o autor a interromper seu projeto. Pela segunda
vez, na trajetória literária de Amado, sua ficção
será determinada não por uma análise da realidade
brasileira, mas por decisões tomadas em Moscou.A onipresença
do novo Deus - O personagem por excelência do romance é
o Partido Comunista, onipresente como o antigo deus cristão
e feito carne na figura de Stalin. A luta do PC é a luta -
na ótica do autor - do povo brasileiro contra a tirania, no
caso, Getúlio Vargas. Externamente, os inimigos são
os Estados Unidos da América, a Alemanha, Franco e Salazar.
Sem falar, é claro, na IV Internacional e nos trotskistas.
O PC está infiltrado na classe dominante, disperso na classe
média e fervilha nos meios operários. Invade as cidades
e o campo, a pampa e a floresta, os salões burgueses, as fábricas
e os portos, corações e mentes.“Quantos outros,
do Amazonas ao Rio Grande do Sul”, - reflete o militante Gonçalo
- “não se encontravam nesse momento na mesma situação
que ele, ante problemas complicados e difíceis, devendo resolvê-los,
sem poder discutir com as direções, sem poder consultar
os camaradas? Gonçalo sabe que os quadros do Partido não
são muitos, alguns mil homens apenas na extensão imensa
do país, alguns poucos milhares de militantes para atender
à multidão incomensurável deproblemas, para manter
acesa a luta nos quatro cantos da pátria, separados por distâncias
colossais, vencendo obstáculos infinitos, perseguidos e caçados
comoferas pelas polícias especializadas, torturados, presos,
assassinados. Um punhado de homens, o seu Partido Comunista, mas este
punhado de homens era o próprio coração da pátria,
sua fonte de força vital, seu cérebro poderoso, seu
potente braço.”Esta onipresença extrapola o país,
manifesta-se onde quer que andem os personagens, no Uruguai, França,
Espanha, no planeta todo. Inevitáveis as referências
à foice e ao martelo. E a Stalin, naturalmente, guia, mestre
e pai. Alitania dirigida ao grande assassino tem por vezes características
de humor negro:“- Quantos mais formos” - diz a militante
Mariana - “mais trabalho terão os dirigentes. Pense em
Stalin. Quem trabalha no mundo mais que ele? Ele é responsável
pela vida de dezenas de milhões de homens. Outro dia li um
poema sobre ele: o poeta dizia que quando todos já dormem,
tarde da noite, uma janela continua iluminada no Kremlin, é
a de Stalin. Os destinos de sua pátria e de seu povo não
lhe dão repouso. Era mais ou menos isto que dizia o poeta,
em palavras mais bonitas, é claro...”O poeta em questão
é Pablo Neruda, já citado em O Mundo da Paz: “Tarde
se apaga a luz de seu gabinete. O mundo e sua pátria não
lhe dão repouso.”
Consta de uma ode a Stalin, subtraída às Obras Completas
do poeta chileno, onde, por enquanto, ainda se pode encontrar uma
“Oda a Lenin”. Hoje, temos uma idéia precisa do
que planejava Stalin nas madrugadas tardias de seu gabinete.Quando
Apolinário Rodrigues, por exemplo, (personagem calcado em Apolônio
de Carvalho, oficial brasileiro exilado que participara da Intentona
de 35) chega a Madri, sente-se em casa pois, para onde quer que se
vire, lá está o Partido. A única cor local da
capital espanhola parece ser a luta pela libertação
de Prestes:“Quando chegara à Espanha, vindo de Montevidéu,
vivera dias de intensa emoção, ao encontrar por toda
a parte, no país em guerra, nas ruas bombardeadas das cidades
e aldeias, nos muros da irredutível Madri, as inscrições
pedindo aliberdade de Prestes. Cercava-o o calor da intensa solidariedade
desenvolvida pelos trabalhadores e combatentes espanhóis para
com os antifascistas brasileiros presos e, em particular, para com
Prestes. (...) Era uma única luta em todo o mundo, pensava
Apolinário, ante essas inscrições, o povo espanhol
o sabia, e em meio às suas pesadas tarefas e múltiplos
sofrimentos, estendia a mão solidária ao povo brasileiro.”A
coincidência da instituição do Estado Novo com
a explosão da GuerraCivil Espanhola é uma oportunidade
única para Amado de inserir seus personagens no conflito internacional
que redundaria na II Guerra, expondo ao mesmo tempo a linha do Partido.
Tão única é esta oportunidade e tanto o autor
quer aproveitá-la, que chega a deslocar para 1938 uma greve
dos portuários de Santos, efetivamente ocorrida em 1946, o
que aliás provocou um certo debate. Estaria Amado realmente
sendo fiel ao método que “exige do artista uma representação
veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário”,
conforme proclamavam os estatutos da União de Escritores Soviéticos?
Ao autor isto pouco importa. Deslocando a greve para 38, pode criar
um navio alemão que vem buscar, no Brasil, café para
a Espanha. De uma só tacada, Amado fustiga Hitler, Getúlio
e Franco:“Em algumas palavras (o velho Gregório) historiou
o motivo por que adireção do sindicato havia convocado
essa sessão: o governo oferecera ao general Franco, comandante
dos rebeldes espanhóis (“um traidor”, gritou uma
voz na sala), uma grande partida de café. Agora se encontrava
no porto um navio alemão(“nazista”, gritou uma
voz na sala) para levar o café.”Na Guerra Civil Espanhola,
segundo Amado, há apenas “nazistas alemães e fascistas
italianos”. Tão pródigo em elogios à Stalin
e à União Soviética, em sua trilogia o autor
silencia sobre a presença russa na Espanha, constituída
por pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes
e policiais. A primeira presença estrangeira em terras de Espanha
foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal
militar altamente qualificado, em troca das três quartas partes(7800
caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis
pelo Banco de España. Pagos adiantadamente. Silêncio
de Amado: a representação veridicamente concreta da
realidade no seu desenvolvimento revolucionário pode esperar
mais um pouco.
A presença do Partido permeará a trilogia das primeiras
páginas de Os Ásperos Tempos às últimas
de A Luz no Túnel. Nestas, a militante Mariana, antes de presa,
assiste ao julgamento de Prestes. A voz do líder comunista
é “a voz vitoriosa do Partido sobre a reação
e o terror”:“Eu quero aproveitar a ocasião que
me oferecem de falar ao povo brasileiro para render homenagem hoje
a uma das maiores datas de toda a história, ao vigésimo
terceiro aniversário da grande Revolução Russa
que libertou um povo da tirania...”Seria monótono e redundante
perseguir esta onipresença do Partido na trilogia de Amado.
Neste universo imperam o bem e o mal absolutos. O bem, evidentemente,
é representado pelo novo Deus, o proletariado. O mal, pela
burguesia detentora do capital. Entre um universo e outro transitam
eventualmente seres camaleônicos, “traidores de classe”
ou traidores do Partido. Dividir o universo em duas metades, uma boa
e outra má, nada tem de novo e original. Tal princípio
vem do século III, através da doutrina do persa Mani.
O espantoso é que continue a viger em pleno século XX,
e mais: impondo gostos, comportamentos e até mesmo filiação
partidária aos personagens de um romance. Os representantes
do Bem amam. Os representantes do Mal têm amantes. Os bons bebem
café ou água mineral. Os maus bebem cachaça ou
uísque. Os bons são magros e idealistas. Os maus são
gordos e mesquinhos. Os bons têm gargalhar sadio, os maus têm
dentes podres. Os bons não têm posses. Os maus são
proprietários. Os bons são pobres, os maus ricos. Os
bons pertencem ao Partido ou com ele colaboram. Os demais são
maus. Os bons, diga-se de passagem, estão aprisionados em tal
camisa-de-força ideológica que sequer podem se dar ao
luxo de gostar de pintura surrealista ou naïve.Até 1954,
Amado traduzirá em sua literatura as determinações
do Partido Comunista russo. Em entrevista para Isto é (18/11/81),
Amado reconhece seu stalinismo:“- Não sei se o termo
“realismo socialista” se aplica a todos os meus livros
daquela época. Estariam em face do realismo socialista, mas
o fato é que Jubiabá(1935) Mar Morto (1936) e Capitães
de Areia (1937), do período ao qual você se refere, só
puderam ser publicados em russo depois da morte de Stalin. Acredito
que a classificação seja justa para Terras do Sem Fim
(1943), Seara Vermelha(1946) e Subterrâneos da Liberdade (1954).
Se existe um livro meu totalmente influenciado pelo stalinismo, é
Subterrâneos da Liberdade, que reflete uma posição
totalmente maniqueísta.”Denunciados os crimes do stalinismo
por Kruschov, em 1954, dois anos depois Amado molha o dedinho na língua
e o ergue ao ar, para sentir de onde sopram os ventos: o sentido da
História é agora uma literatura popularesca, aoestilo
da rede Globo. Passa então a produzir uma literatura de evasão
em torno de motivos baianos. Não sem antes fazer um tímido
e discreto mea culpa, publicado em 10 de outubro de 1956 pela Imprensa
Popular:
“Aproximamo-nos, meu caro, dos nove meses de distância
do XX Congresso do PCUS, o tempo de uma gestação. Demasiado
larga essa gravidez de silêncio e todos perguntam o que ela
pode encobrir, se por acaso a montanha não vai parir um rato.“Creio
que devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita
o movimento democrático e comunista internacional, mas que
devemos,sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à
personalidade entre nós,nossos erros enormes, os absurdos de
todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais
daninha e venenosa das árvores, floresceu no estrume do culto
aqui levado às formas mais baixas e grosseiras, e está
asfixiando nosso pensamento e ação. (...) Sinto a lama
e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo
humanismo que desejamos acesa e quase foi submergida pela onda dos
crimes e dos erros.”Como se o simples fato de sentir “a
lama e o sangue” em torno a si o redimisse das cumplicidades
passadas. Mas as denúncias dos crimes do stalinismo não
geraram nenhum tribunal de Nuremberg e Jorge Amado sente-se como um
ingênuo, enganado pelos ventos do século. No entanto,
não mais permite a reedição de O Mundo da Paz.
Quanto à sua obra ficcional, embasada no realismo socialista,
esta continua sendo reeditada e traduzida. Mas o agitprop baiano se
vê obrigado a mudar de rumos e publica, em 1958, Gabriela, Cravo
e Canela. Em 61, lança Os Velhos Marinheiros, considerado um
dos melhores momentos de sua literatura. Neste mesmo ano, é
eleito membro da Academia Brasileira de Letras, instituição
que havia apedrejado e insultado em sua juventude. No discurso de
posse, com a inocência de um moleque que relembra travessuras
passadas, reitera sua oposição à Casa que o recebe:"Chego
à vossa ilustre companhia com a tranqüila satisfação
de ter sido intransigente adversário desta instituição
naquela fase da vida em que devemos ser necessária e obrigatoriamente
contra o assentado e o definitivo. Ai daquele jovem, ai daquele moço
aprendiz de escritor que no início de seu caminho, não
venha, quixotesco e sincero, arremeter contra as paredes e a glória
desta Casa. Quanto a mim, felizmente, muita pedra atirei contra vossas
vidraças, muito adjetivo grosso gastei contra vossa indiferença,
muitas vaias gritei contra vossa compostura, muito combate travei
contra vossa força".Em resposta aos que o condenam, diz
o escritor: "Mas tudo na vida obedece a formalidades e se eu
sou socialista não quer dizer que ignoro o mundo formal que
me rodeia". De Moscou, recebe o apoio de Ilya Ehremburg: "Amamos
Jorge Amado e temos confiança nele. Eu só o vi numa
fotografia levemente mais gordo, em fardão de acadêmico.
Olhei e sorri. Aos acadêmicos brasileiros dão um luxuoso
fardão. Além disso usam espadas como seus colegas franceses.
Não há nada de mal em que o homem simples de ontem apareça
uma vez por ano na roupagem de imortal".
De amores com o imperialismo ianque - Com a transposição
de seus romances para as novelas televisivas, o revolucionário
aposentado torna-se uma espécie de roteirista da Rede Globo.
Gaba-se até hoje de seu passado esquerdista. Mas foi o primeiro
escritor brasileiro a felicitar pessoalmente Fernando Collor de Mello
por sua vitória. Claro que não foi apoiá-lo durante
o impeachment. Com a nova guinada, seus livros começam a ser
publicados nos Estados Unidos. Em depoimento autobiográfico,
concedido em 1985 à tradutora francesa Alice Raillard, em sua
mansão na Bahia, de inimigo incondicional do capitalismo, Amado
vira sócio: "Sim, esta casa... Esta casa, eu digo sempre
que foi o imperialismo americano que me permitiu construí-la!
Era um velho sonho meu ter uma casa na Bahia. (...) Construir uma
casa na Bahia? Eu tinha vontade, mas não o dinheiro. Foi então
que vendi os direitos para o cinema de Gabriela à Metro Goldwin
Mayer".Em uma entrevista concedida a Folha de São Paulo,
em dezembro de 94, expõe ao repórter a mansão
comprada graças aos dólares da Metro Goldwin Mayer:
"Esse é o quarto do casal. Passei a vida a xingar os americanos,
mas tudo o que temos é graças ao dinheiro dos imperialistas
ianques. Compramos essa casa em 63 com a venda dos direitos de Gabriela
para a MGM, rodado 21 anos depois. Cobrei barato, só US$ 100
mil”.A parceria com o inimigo capitalista se revela lucrativa
e permite a Amado a realização de outro sonho, morar
na Paris que tanto insultou quando marxista:“Em 86, os americanos
me pagaram um adiantamento alto pelos direitos de tradução
de Tocaia Grande: US$ 250 mil. Juntamos com os guardados de Zélia
e compramos nossa mansarda no Marais, em Paris”.Pois este
senhor, que empunhou com entusiasmo as piores e mais assassinas bandeiras
do século, que no final da vida confessa sem nenhum pudor seu
venalismo, é quem hoje representa o Brasil no Salão
do Livro em Paris. Em verdade, tal fato não é espantar:
Amado vende à Europa uma imagem que a Europa aceita como sendo
a do Brasil. Ainda segundo Wilson Martins:“A verdade é
que a nossa literatura é sempre encarada como algo de exótico,
de tropical. É por isso que Jorge Amado é extremamente
popular nos outros países, ele oferece esse estereótipo
da violência, da conquista da terra, da luta de classes e da
opressão racial. Essa idéia exótica, uma espécie
de ilha dos mares do sul, todos de tanga pelas ruas, armados de arco
e flecha, e caçando onças na Avenida Rio Branco. Quando
aparece um brasileiro branco e com grande cultura internacional, ele
causa um espanto extraordinário. Nós alimentamos esse
preconceito com todas as forças. Fazemos questão de
mostrar que somos tropicalistas, que isto aqui é um país
tropical, que somos mestiços, que branco aqui não tem
vez. Quem defende tudo isso são esses grupos dos baianos e
dos novos baianos, dos trios elétricos. É até
um preconceito contra a cultura, no sentido ecumênico da palavra”.
Interrogado recentemente sobre como gostaria de ser lembrado em uma
enciclopédia daqui a 50 anos, a grande cortesã responde
com a candura dos inocentes:
"Um baiano romântico e sensual. Eu me pareço
com meus personagens - às vezes também com as mulheres".
E talvez seja um de seus personagens femininos o que melhor representa
a ambivalência do “baiano romântico e sensual”:
Dona Flor, a que administrava tranqüilamente dois maridos. Ao
homenagear Amado, em verdade Paris está condecorando um escritor
venal, que prestou os piores desserviços ao Brasil ao lutar
para transformá-lo em mais uma republiqueta soviética,
em nome de uma rápida ascensão literária e fortuna
pessoal.
São
Paulo, fevereiro /98
Voltar
para página inicial