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A difícil travessia
do Uruguai
Setembro,
2003
Em
dezembro de 1997, Otavio Frias Filho escrevia na Folha de São
Paulo que a região mais desenvolvida do país, do ponto
de vista social e político, o Sul, transformou-se em “nordeste”,
por sua escassa contribuição cultural e artística
(“Na Fronteira do Sul”, FSP, 11/12/97). O jornalista enfiava
o dedo numa chaga que há décadas vem corroendo os gaúchos.
Mais precisamente, desde o início do século. Como Porto
Alegre sempre foi o maior pólo gerador de cultura dos três
Estados ao sul de São Paulo, para efeitos de argumentação,
considero Sul como sinônimo de Rio Grande do Sul.
Pelas contraditórias reações que provocou, o
artigo foi obviamente mal interpretado. Gaúchos eriçaram-se
em brios ao ver o Sul comparado com o Nordeste e nordestinos não
gostaram de ver seu gentílico transformado em uma metáfora
de aridez cultural. Frias, em verdade, havia transposto a imagem econômica
que temos do Nordeste para o plano cultural e, no fundo, deplorava
a ausência de vozes do Sul no panorama artístico nacional.
No ensaio “O Nordeste cultural” (FSP, 01/03/98), eu afirmava
em resposta a Otavio Frias que a intelligentsia paulistana não
era inocente neste imbróglio. Por seu potencial econômico,
por sua tradição universitária, São Paulo
sempre determinou o que é ou não é literatura
nacional. O critério não é dos mais complexos:
o que se escreve e publica no eixo Rio-São Paulo é literatura
nacional. O resto... é o resto: é regional, a menos
que seja traduzido no exterior. Por exemplo, Graciliano Ramos. Quando
ensaiava seus primeiros passos nas letras, era escritor nordestino.
Quando se tornou um dos referenciais da literatura brasileira na Europa
e Estados Unidos, foi promovido a escritor brasileiro.
Para equacionar o problema, alguns elementos devem ser levados em
conta: os critérios dos construtores do cânone literário
nacional, que não vêm o Sul como representativo do Brasil;
nosso pendor platino, que nos faz mais irmãos de uruguaios
ou argentinos que de um baiano ou nordestino; e o poder das imagens
sobre o Brasil que a Europa impõe aos produtores culturais
do eixo Rio/São Paulo.
Alguns critérios do cânone - Ao estabelecer o cânone
tupiniquim, São Paulo, através da USP e historiadores
como Antonio Candido e Alfredo Bosi, privilegiou o chamado “romance
de 30”. Romance de profundo cunho social, como rezam eufemisticamente
os catecismos para vestibulandos. Quais eram seus expoentes? Raquel
de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dyonelio Machado. Coincidentemente,
todos militantes comunistas. Noves fora Os Ratos, o Rio Grande do
Sul nada mais tinha a oferecer para competir com os zdanovistas avant
la lettre.
Um lembrete aos mais jovens sobre zdanovismo: é uma tosca teoria
literária, também conhecida por realismo socialista,
elaborada pelo teórico russo Andrei Zdanov e importada ao Brasil
por Jorge Amado. Foi o único estilo de arte permitido na URSS
após a subida de Stalin ao poder e no fundo transformava a
literatura em um panfleto a serviço da revolução
socialista. O exemplo mais acabado desta perversão literária
é a trilogia Subterrâneos da Liberdade, de Amado.
Mesmo sem ter aderido ao zdanovismo, Dyonelio oferecia aos construtores
do cânone um personagem compatível com o gosto de então:
Naziazeno é um pobre diabo que não consegue colar pestana
com medo de que os ratos roam os últimos centavos que tem para
pagar um litro de leite. Servia para exportação.
Na época, Erico Verissimo fora salvo da morte como escritor
por um incêndio providencial que incinerou toda uma edição
de Fantoches, infeliz exercício literário cometido em
1932, mais tarde ridicularizado com certa ternura pelo próprio
Erico, em reedição facsimilar e comentada.
Em 33, Erico entrega Clarissa, e em 35, Música ao Longe, ambos
contra-indicados para diabéticos em geral. O grande poema gaúcho,
Antônio Chimango, estava proibido pelos áulicos de Borges
de Medeiros. O grande romance, Memórias do Coronel Falcão,
fora recomendado às traças: durante três décadas
e meia, esta obra de Aureliano Figueiredo Pinto permaneceu inédita,
pois os donos da cultura gaúcha, arrinconados em Porto Alegre,
o consideravam eivado de espanholismos. Escrito em 1937, só
foi publicado em 1973. Sem falar que o personagem de Aureliano nada
tem de miserável. O romance narra a trajetória de um
fazendeiro pressionado por dívidas bancárias. Quando
cai, cai em pé, não provoca a mesma comiseração
que os personagens de um Graciliano. Não serve para o cânone.
O campo, ou melhor, o campus, estava aberto às letras do Nordeste.
Já em 22, os paulistas pretenderam definir o que seria literatura
brasileira, com a famigerada Semana de Arte Moderna. Semana que pouco
ou nada repercutiu na época em que ocorreu, mas cresceu e foi
tomando corpo, décadas mais tarde, graças à construção
ensaística montada pelos acadêmicos da USP. Pretendendo
estabelecer um arquétipo nacional, Mário de Andrade
volta-se para o Brasil indígena e seus mitos. Acaba por construir
Macunaíma, personagem moldado não a partir do Brasil
que começava a pôr timidamente um pé no século
XX, mas uma espécie de bon sauvage ao gosto dos europeus: preguiçoso,
indolente, sem nenhum caráter, em suma, um ser tropical. Em
vez de dar continuidade à cultura européia trazida pelos
colonizadores, os “modernistas” voltam-se para o Brasil
Carahiba.
Meio século antes, um gaúcho antecipava o que hoje se
convencionou chamar de “teatro do absurdo”. Mas era gaúcho,
não freqüentava os círculos da burguesia cafeeira
nem escrevia sobre mitos indígenas. Qorpo Santo foi relegado
ao pó das bibliotecas, acusado de louco e só teve suas
primeiras peças encenadas exatamente um século após
tê-las escrito. Mesmo assim, na época em que foi descoberto,
graças ao trabalho de sapa de Aníbal Damasceno Ferreira,
Qorpo Santo não foi valorizado. Foi preciso que a crítica
do eixo Rio/São Paulo referendasse a descoberta, para que o
esquecido dramaturgo adquirisse estatura nacional, o que só
aconteceu quando Yan Michalski, em artigo para o Jornal do Brasil,
o proclamou precursor do teatro do absurdo.
O ano de 22 também marca, para os paulistas, a criação
do Partido Comunista em São Paulo. Em verdade, já em
1918, três anos antes da fundação do PC francês
em Paris, em Santana do Livramento já tínhamos uma célula
comunista. O que demonstra que o gaúcho é pioneiro até
mesmo no obscurantismo.
São Paulo, culturalmente, sempre esteve voltada para a Europa.
É aqui na Paulicéia que brotam, através do dandy
Oswald de Andrade, as primeiras simpatias pelo fascismo e pelo stalinismo,
manifestas tanto no “Manifesto Antropófago” como
em O Homem e o Cavalo. Nestes panfletos, Oswald louva tanto o belicismo
mussoliniano de Marinetti, quanto o otimismo utópico de Stalin.
O próprio Macunaíma, suposto herói nacional,
é fruto da imagem que a Europa nutre em relação
ao Brasil, praga que nos foi rogada por Rousseau, com seu mito de
um homem puro nos trópicos, não contaminado pela civilização.
Mesmo o reconhecimento de Qorpo Santo paga tributo ao paladar europeu:
não existissem autores como Becket ou Ionesco, o esquisito
dramaturgo porto-alegrense não teria de quem ser precursor,
nem seria reconhecido pelo Eixo.
Sob a sombra de Fierro - Os gaúchos, no início deste
século, estão ainda voltados para o Plata. Há
algo de hernandiano nos personagens de Aureliano Figueiredo Pinto
e mesmo nos gaúchos estereotipados de Erico Verissimo. Não
poderia ser diferente, já que gaúchos do Brasil e Argentina
estão mais próximos entre si, tanto pelo meio geográfico
como pela cultura, do que um rio-grandense e um nordestino, por exemplo.
Que é o Antonio Chimango senão uma onda distante, mas
concêntrica, provocada pelo Martín Fierro? Também
nas canções de Teixeirinha como na poesia produzida
pelos poetas ligados ao movimento tradicionalista, lá está
a caricatura contemporânea do gaúcho de Hernández.
Até mesmo em manifestações literárias
mais populares, encontramos o dedo do poeta argentino. Circula subterraneamente
no Rio Grande do Sul um conhecido poema pornográfico, “Comendo
éguas e outros bichos”. Vejamos uma de suas coplas:
Ó
poetas que cantais
velhas
cópulas eqüinas
olvidando
outras vaginas
que
numa escala crescente
vos
deram gozos candentes
no
lupanar das campinas
Temos a reprodução rítmica exata de uma sextilha
do Martín Fierro, com os versos rimando no esquema ABBCCB.
Sabemos que esta pérola da fescenina gaúcha foi criada
coletivamente por poetas tradicionalistas, que não gostam muito
de citar Hernández. Mas a influência é inegável:
Aqui
me pongo a cantar
al
compás de la vigüela,
que
el hombre que lo desvela
una
pena estrordinaria,
como
la ave solitaria
con
el cantar se consuela.
A propósito, este poema argentino - mas também nosso
-, que tanto mexe com a alma do homem da fronteira rio-grandense,
começou a ser escrito por José Hernández em Santana
do Livramento. Não por acaso, o poema maior que a América
Latina legou à literatura universal é praticamente desconhecido
nos cursos de Letras do país. Mas já participei de uma
“Semana Martín Fierro” em Berlim, onde Hernández
foi comparado a Homero, e já o ouvi declamado nas ilhas Canárias,
geografia que nada tem a ver com a pampa onde perambulava Fierro.
Em Paris, um dos professores que participou de minha defesa de tese,
Paul Verdevoye, o traduziu ao francês. Herdeiros de Fierro,
pertencentes a uma outra geografia, pouco dizemos aos paulistas, mais
voltados para o agreste ou para a selva, conforme o que deles esperam
os europeus. Para estes, gaúcho é coisa de argentinos.
Europa dixit: São Paulo, submissa, obedece.
A propósito, em setembro do ano passado, ministrei um curso
sobre o poema de Hernández, em Passo Fundo, durante a VII Jornada
Nacional de Literatura. Nesta cidade, famosa por suas tradições
gaúchas, meus alunos praticamente desconheciam Fierro. Está
na hora, parece-me, de a universidade gaúcha esquecer um pouco
as confusas teorias literárias geradas às margens do
Sena e olhar com mais carinho para a riqueza cultural do Plata.
O poder das imagens - As imagens que o centro do país emite
para o exterior obedecem a uma procura, são aquelas que a Europa
convencionou serem definidoras do Brasil. Estas imagens são
poderosas. Me permito citar duas anedotas (no sentido europeu da palavra).
Transportemo-nos para os anos 70, Lyon, França. Um bolsista
gaúcho, para mostrar um pouco do Sul brasileiro, reunia seus
trocados e a cada mês oferecia um churrasco a seus professores
e colegas de curso. Logo foi chamado pela instituição
que o financiava. Teria de acabar com os churrascos ou abandonar o
curso. Surpreso, o gaúcho queria saber as razões da
alternativa: não haviam gostado do churrasco? Nada disso. O
churrasco estava excelente. Mas ao apresentar um churrasco como prato
típico do Sul do Brasil, para pessoas que só se permitiam
consumir no dia-a-dia um transparente bifinho de boi, dava aos franceses
uma imagem contraproducente do país.
- “Te convidamos para que possas comover a burguesia francesa
falando sobre a miséria no Brasil” - disseram seus anfitriões
-. “Mas como vamos convencer um francês de que se passa
fome no Brasil, quando apresentas o churrasco como prato nacional?”
O gaúcho foi devolvido a Porto Alegre. Em seu lugar, receberam
bolsa dois nordestinos, bem ao estilo morte-e-vida-severina. Assador
emérito, o amigo que protagonizou este episódio se chamava
João Carlos Barbosa. Era gaúcho daqueles que não
se fazem mais, e sua memória ainda vaga pelas ruas de Porto
Alegre.
Alguns anos mais tarde, quando lecionava na UFSC, recebi a visita
de um professor francês na ilha. Através de uma amiga,
encaminhei-o à Califórnia da Canção Gaúcha,
para conhecer um pouco de nosso folclore, música e culinária.
Voltou perplexo. Não entendia os espetos de churrasco girando
durante o festival, aquele esbanjamento de carne com o qual francês
algum sonha em seu dia-a-dia. “Et la famine, où est la
famine?” queria saber o francês. Associava Brasil com
Nordeste e miséria e não conseguia entender o Sul e
o churrasco. João Carlos sentira o outro lado do problema em
sua estada em Lyon. Após ter ido duas ou três vezes a
uma casa de carnes providenciar seu churrasco, o açougueiro
não se conteve: “Desculpe a pergunta, Monsieur, mas o
senhor tem um hotel?”. Para o francês, o modesto churrasco
que nosso gaúcho oferecia a amigos, só era concebível
para consumo de um hotel.
Estes episódios nos mostram a imagem que o francês -
e, por extensão, o europeu - tem de nós. Nordeste, sertão,
cangaço, miséria, matança de índios, favelas,
infância abandonada, tudo isto é compatível com
Brasil. Esta imagem não é nutrida apenas pelo europeu
médio, mas também por seus intelectuais e produtores
culturais. Um carioca publicou no ano passado Cidade de Deus, um amontoado
de anotações sobre a vida na favela, ao qual deu o nome
de romance. Era seu primeiro livro e já tem contratos com editoras
alemãs e francesas. Um dos organizadores do último Salão
do Livro em Paris inclusive declarou aos jornais que este era o tipo
de literatura que se esperava do Brasil.
Não por acaso, recentemente recebeu o Urso de Prata em Berlim,
o filme Central do Brasil, relato choramingoso da infância de
um menino pobre...nordestino. Tudo fecha: miséria, infância
abandonada, analfabetismo, nordeste. Décadas após Vidas
Secas, de Graciliano, e de O Cangaceiro, de Lima Barreto, continuamos
alimentando na Europa a imagem do Brasil como sendo um imenso sertão.
A premiação de Titanic no mesmo ano nos permite uma
oportuna comparação: enquanto a indústria cinematográfica
do Primeiro Mundo apela ao recurso de um transatlântico de luxo
para arrancar lágrimas e dólares das platéias,
tentamos comover com o que temos de esteticamente mais exportável,
a miséria.
O “Sul maravilha” pouco diz a um europeu como parte integrante
do Brasil. O exemplo mais sintomático desta exclusão
do Sul no imaginário europeu, encontrei-o em uma declaração
de um repórter do Le Monde, que acompanhava o Papa em sua primeira
visita ao Brasil. Quando João Paulo se dirige a Porto Alegre,
não interessa mais ao jornalista. “Segundo meus colegas
brasileiros, lá não é mais Brasil”, disse.
Ou seja, eram jornalistas brasileiros que reforçavam, no correspondente
francês, o preconceito que este já nutria em relação
ao país.
Para cúmulo das desgraças, em relação
ao Brasil mais ao norte, os gaúchos são cultos e predominantemente
brancos. Tais características não cabem no conceito
de um país imaginado como negro, exótico, tropical.
Quem viu isto muito bem foi Wilson Martins, crítico e historiador
execrado nos meios acadêmicos, et pour cause. Ainda há
pouco, dizia o autor paranaense:
“A
verdade é que a nossa literatura é sempre encarada como
algo de exótico, de tropical. É por isso que Jorge Amado
é extremamente popular nos outros países, ele oferece
esse estereótipo da violência, da conquista da terra,
da luta de classes e da opressão racial. Essa idéia
exótica, uma espécie de ilha dos mares do sul, todos
de tanga pelas ruas, armados de arco e flecha, e caçando onças
na Avenida Rio Branco. Quando aparece um brasileiro branco e com grande
cultura internacional, ele causa um espanto extraordinário.
Nós alimentamos esse preconceito com todas as forças.
Fazemos questão de mostrar que somos tropicalistas, que isto
aqui é um país tropical, que somos mestiços,
que branco aqui não tem vez. Quem defende tudo isso são
esses grupos dos baianos e dos novos baianos, dos trios elétricos.
É até um preconceito contra a cultura, no sentido ecumênico
da palavra”.
Talvez por estar sempre voltada para a Europa, talvez magoada pela
mão rude com que a tratou Getúlio Vargas, São
Paulo sempre marginalizou a cultura feita no Rio Grande do Sul. Um
episódio ocorrido na redação de um jornal paulista
explica às maravilhas esse desdém. O enxadrista Mequinho
havia sido derrotado em uma final de campeonato. O redator titulou:
CAMPEÃO BRASILEIRO É DERROTADO EM FINAL DE XADREZ. O
editor trocou brasileiro por gaúcho. Mequinho era campeão
brasileiro quando ganhava. Quando perdia, era gaúcho.
A affaire Quintana - Se há, para os gaúchos, uma injustiça
que clama aos céus reparação, esta foi a recusa
por duas vezes, da candidatura de Mário Quintana à Academia
Brasileira de Letras, instituição dominada e controlada
pelos escritores do Eixo Rio/São Paulo. Que o poeta gaúcho
tenha se candidatado, já foi um erro. Picado por alguma mosca
azul, Quintana pensou que poderia ser aceito pelos sedizentes imortais
da Academia. Foi preterido por um ex-presidente da República,
cujo nome provoca mal-estar entre escritores, e por um ex-ministro
da ditadura militar, de obra praticamente desconhecida. Quintana,
em sua ingenuidade de nefelibata, talvez tenha imaginado que para
participar dos chás dos imortais bastava seu gênio como
credencial. Enganou-se feio e foi humilhado em praça pública.
Ninguém entra na Academia sem os rapapés de praxe aos
medíocres que a habitam. Em seu lugar, foi aceito Carlos Nejar,
o escrevinhador hermético que, como Neruda, julga que fazer
poesia é alinhar palavras na vertical.
Comentando meu artigo “O Nordeste Cultural”, Carlos Nejar
(Folha de São Paulo, 21/03) fez a defesa, como seria de se
esperar, dos colegas de fardão que escantearam Quintana, José
Sarney e Eduardo Portella. Poeta urbano, Nejar ainda reivindicava,
estranhamente, a condição de “homem do pampa”.
Mas alguma verdade havia naquela auto-definição: apesar
de ter nascido em meio ao concreto de Porto Alegre, certamente foi
contaminado por uma virtude típica dos homens da pampa, a coragem.
Pois muita coragem intelectual é necessária para saudar
Sarney como “admirável ficcionista” e um ex-ministro
da ditadura, Eduardo Portella, como “uma das grandes personalidades
do Brasil contemporâneo”.
Nejar, imortal sem ter consultado a posteridade, fez bem em defender
seus amigos de fardão e, entre estes, o amigo das fardas. Mas
não precisava concluir sua carta com tamanho cinismo, ao afirmar
que ingressou na Academia “apenas pelo poder silencioso e humilde
da poesia”. Terá sido este poder silencioso da poesia
que levou à Academia sumidades literárias como Getúlio
Vargas, o general Aurélio de Lira Tavares (assinado Adelita)
e Roberto Marinho, entre outros. A Academia tem três vias de
acesso: imposições do poder, disposição
para fazer rapapés aos imortais e, ultimamente, a ideologia
marxista. Mário Quintana carecia de qualquer uma destas três
“virtudes”. Era apenas um poeta maior: nada de espantar
que fosse ignorado.
E só poderia ser assim. Se saudar Sarney como admirável
ficcionista é condição necessária para
pertencer ao sodalício dos supostos imortais, temos de convir
que o sedizente “homem do pampa” fez o necessário
para merecer sua cadeira. Quem conheceu Quintana, sabe que o poeta
da Rua da Praia jamais se submeteria a tais salamaleques.
A travessia do Uruguai - Me ative, nestas reflexões, a um enfoque
estritamente literário do isolamento cultural do Rio Grande
do Sul. Outras abordagens poderiam ser feitas no que diz respeito
à música, cinema ou pintura, se é que se pode
chamar de cinema o que se faz em Porto Alegre, e se é que a
pintura contemporânea ainda tem a ver algo com arte. Se bem
que os gaúchos choram de barriga cheia: o Rio Grande do Sul
conseguiu criar um invejável circuito próprio de difusão
de sua literatura, que permite a existência de um aquecido mercado
editorial, sem depender do resto do país.
Além deste dar-de-ombros do Eixo Rio/São Paulo em relação
ao Sul, um outro fator elementar impede a literatura gaúcha
de atravessar o rio Uruguai: a distância dos autores do Sul
em relação aos centros decisórios de política
cultural. É preciso estar perto do MEC, da USP, das historiografias
por ela produzidas, das cúpulas brasilienses que decidem os
currículos do ensino secundário e universitário.
Se os escritores gaúchos quiserem divulgação
nacional, precisarão infiltrar-se junto a essas instâncias.
Pois neste Brasil de final de século, ainda impregnado de um
ranço marxista, arte é uma questão de Estado.
O suporte da indústria do livro, hoje, é a universidade.
Se um dia o livro foi um instrumento sem o qual a universidade não
podia existir, hoje a universidade é um instrumento sem o qual
a indústria do livro perde seu vigor. O que era fim, a aquisição
de saber através da universidade, se tornou meio para sustentação
de um comércio. E o que era meio, o livro como instrumento
de deleite espiritual ou comunicação do saber, tornou-se
fim, uma mercadoria como qualquer outra, para alegria de editores
e massagens no ego de escritores com boas relações junto
ao MEC e crítica acadêmica.
Determinados autores e editores há muito descobriram isto e
buscaram refúgio na universidade, não só no Brasil
como até mesmo onde impera o livre mercado, como Estados Unidos
e França. Burlar as leis da oferta e procura torna-se fácil:
para vender um autor, não é necessário que este
seja buscado pelos leitores. Basta impor seu nome e sua obra nas listas
de vestibulares e nos currículos colegiais e universitários.
Nisto consiste o obsceno mercado do livro paradidático. Ou,
como prefiro chamá-lo, do livro estatal.
Esta imposição gera uma indústria paralela de
estudos, monografias e análises, que criam uma fortuna literária
artificial para o autor: ele passa a fazer parte da cultura nacional,
não por preferência de uma coletividade, mas por imposição
de um pequeno número de autores e editores íntimos do
poder. Resultado: os coitados dos estudantes passam a odiar literatura,
quando são obrigados a ler obras indigestas como as de Mário
ou Oswald de Andrade, de Clarice Lispector ou Guimarães Rosa.
Aliás, este mineiro é hoje, indubitavelmente, o mais
encombrant elefante branco adotado pela universidade brasileira. Grande
Sertão: Veredas goza entre nós do mesmo status do Ulisses,
de Joyce: é muito citado e raramente lido. Mas como foi adaptado
como noveleta para a Rede Globo, mesmo o leigo em literatura pode
se permitir alguns palpites sobre os conflitos de Riobaldo e Diadorim.
Se
os gaúchos quiserem renome nacional, não se preocupando
com métodos, este é o caminho mais fácil de difusão
de sua literatura: conseguir padrinhos junto à USP ou ao MEC,
e impor suas obras através de determinações do
Estado. Prestarão um desserviço à literatura,
mas conseguirão divulgar seus nomes. Aliás, não
poucos autores gaúchos já utilizam os instrumentos locais
do Estado para impor suas obras no Rio Grande do Sul. Para estes,
que já conhecem o caminho das pedras, basta apenas ampliar
seu raio de ação.
Há uma outra hipótese, que não implica promiscuidade
com o poder. Os escritores contemporâneos parecem esquecer que
vivemos dias de Internet. Com um computador e um fax/modem, um escritor
pode editar e divulgar sua obra, eliminando aqueles intermediários
sem os quais até hoje o livro era impensável: gráficos,
editores, distribuidores e livreiros. Qualquer internauta pode ter
hoje dois megabytes na geocities ou em outras praias, sem despender
nenhum vintém. Se quiser 10 megabytes, pagará algo em
torno a 15 dólares ao ano. Ou seja, hoje um gaúcho pode
atravessar o Uruguai e colocar seu trabalho à disposição
não só do público brasileiro, mas do planeta
todo, sem sequer sair de sua mesa de trabalho. Entre os participantes
de newsgroups, há horas se fala na criação de
um fórum, a soc.culture.gaucho, que englobaria três países,
Brasil, Uruguai e Argentina. Como o gaúcho é gaudério,
e sua cultura não se limita a um só país, a Internet
poderá fornecer uma pátria espiritual a este tipo humano
em vias de extinção.
A
Internet não pode mais ser ignorada como uma nova mídia.
Como tampouco os disquetes e os CD-ROMs. Na recente Feira do Livro
de São Paulo, estavam sendo vendidos CD-ROMs com a ficção
completa de Machado por R$ 10,00, e disquetes com seus romances por
R$ 2,50. A edição e difusão da obra literária
tornam-se inacreditavelmente baratas. O que é quase um milagre
neste Brasil onde o preço do livro em papel é um dos
mais caros do mundo, a ponto de os editores nacionais, para ter algum
lucro, estarem imprimindo na Espanha, Itália, Chile e Colômbia.
Os
direitos de autor praticamente vão pras cucuias. Mas, fora
os amigos do Rei, quantos escritores vivem de direitos autorais neste
país? Estamos nos encaminhando para uma sociedade em que computador
será tão comum como qualquer eletrodoméstico,
e editores e escritores terão de levar em conta este mundo
novo. Permanece, por enquanto, a velha questão: não
é mais agradável ler no papel que na telinha? Pode ser.
Nos dias de Gutenberg, certamente não faltaram leitores para
alegar saudades do pergaminho. Claro que é pouco prático
usar o computador para ler na cama. Mas a Internet permitirá
ao escritor - aliás, já permite - uma liberdade com
a qual não pode sonhar quem depende do papel impresso. A utopia
está ao alcance de nossas mãos: hoje, cada escritor
pode ser próprio editor.
Há
evidentemente a solução mais radical: a criação
de um Estado à parte do Brasil. Seria como dar um tapa num
cego: da noite para o dia os autores estaduais seriam promovidos a
nacionais. Esta idéia separatista, sempre viva no inconsciente
coletivo gaúcho, é mal vista ao norte do Sul. Quando
indígenas querem um território para si, estão
lutando pelos seus direitos. Mas ocorre que somos brancos: quando
gaúcho sonha em separar-se, é logo tachado de nazista.
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