:: A difícil travessia do Uruguai

 

Setembro, 2003

Em dezembro de 1997, Otavio Frias Filho escrevia na Folha de São Paulo que a região mais desenvolvida do país, do ponto de vista social e político, o Sul, transformou-se em “nordeste”, por sua escassa contribuição cultural e artística (“Na Fronteira do Sul”, FSP, 11/12/97). O jornalista enfiava o dedo numa chaga que há décadas vem corroendo os gaúchos. Mais precisamente, desde o início do século. Como Porto Alegre sempre foi o maior pólo gerador de cultura dos três Estados ao sul de São Paulo, para efeitos de argumentação, considero Sul como sinônimo de Rio Grande do Sul.

Pelas contraditórias reações que provocou, o artigo foi obviamente mal interpretado. Gaúchos eriçaram-se em brios ao ver o Sul comparado com o Nordeste e nordestinos não gostaram de ver seu gentílico transformado em uma metáfora de aridez cultural. Frias, em verdade, havia transposto a imagem econômica que temos do Nordeste para o plano cultural e, no fundo, deplorava a ausência de vozes do Sul no panorama artístico nacional.

No ensaio “O Nordeste cultural” (FSP, 01/03/98), eu afirmava em resposta a Otavio Frias que a intelligentsia paulistana não era inocente neste imbróglio. Por seu potencial econômico, por sua tradição universitária, São Paulo sempre determinou o que é ou não é literatura nacional. O critério não é dos mais complexos: o que se escreve e publica no eixo Rio-São Paulo é literatura nacional. O resto... é o resto: é regional, a menos que seja traduzido no exterior. Por exemplo, Graciliano Ramos. Quando ensaiava seus primeiros passos nas letras, era escritor nordestino. Quando se tornou um dos referenciais da literatura brasileira na Europa e Estados Unidos, foi promovido a escritor brasileiro.

Para equacionar o problema, alguns elementos devem ser levados em conta: os critérios dos construtores do cânone literário nacional, que não vêm o Sul como representativo do Brasil; nosso pendor platino, que nos faz mais irmãos de uruguaios ou argentinos que de um baiano ou nordestino; e o poder das imagens sobre o Brasil que a Europa impõe aos produtores culturais do eixo Rio/São Paulo.

Alguns critérios do cânone - Ao estabelecer o cânone tupiniquim, São Paulo, através da USP e historiadores como Antonio Candido e Alfredo Bosi, privilegiou o chamado “romance de 30”. Romance de profundo cunho social, como rezam eufemisticamente os catecismos para vestibulandos. Quais eram seus expoentes? Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dyonelio Machado. Coincidentemente, todos militantes comunistas. Noves fora Os Ratos, o Rio Grande do Sul nada mais tinha a oferecer para competir com os zdanovistas avant la lettre.

Um lembrete aos mais jovens sobre zdanovismo: é uma tosca teoria literária, também conhecida por realismo socialista, elaborada pelo teórico russo Andrei Zdanov e importada ao Brasil por Jorge Amado. Foi o único estilo de arte permitido na URSS após a subida de Stalin ao poder e no fundo transformava a literatura em um panfleto a serviço da revolução socialista. O exemplo mais acabado desta perversão literária é a trilogia Subterrâneos da Liberdade, de Amado.

Mesmo sem ter aderido ao zdanovismo, Dyonelio oferecia aos construtores do cânone um personagem compatível com o gosto de então: Naziazeno é um pobre diabo que não consegue colar pestana com medo de que os ratos roam os últimos centavos que tem para pagar um litro de leite. Servia para exportação.

Na época, Erico Verissimo fora salvo da morte como escritor por um incêndio providencial que incinerou toda uma edição de Fantoches, infeliz exercício literário cometido em 1932, mais tarde ridicularizado com certa ternura pelo próprio Erico, em reedição facsimilar e comentada.

Em 33, Erico entrega Clarissa, e em 35, Música ao Longe, ambos contra-indicados para diabéticos em geral. O grande poema gaúcho, Antônio Chimango, estava proibido pelos áulicos de Borges de Medeiros. O grande romance, Memórias do Coronel Falcão, fora recomendado às traças: durante três décadas e meia, esta obra de Aureliano Figueiredo Pinto permaneceu inédita, pois os donos da cultura gaúcha, arrinconados em Porto Alegre, o consideravam eivado de espanholismos. Escrito em 1937, só foi publicado em 1973. Sem falar que o personagem de Aureliano nada tem de miserável. O romance narra a trajetória de um fazendeiro pressionado por dívidas bancárias. Quando cai, cai em pé, não provoca a mesma comiseração que os personagens de um Graciliano. Não serve para o cânone. O campo, ou melhor, o campus, estava aberto às letras do Nordeste.

Já em 22, os paulistas pretenderam definir o que seria literatura brasileira, com a famigerada Semana de Arte Moderna. Semana que pouco ou nada repercutiu na época em que ocorreu, mas cresceu e foi tomando corpo, décadas mais tarde, graças à construção ensaística montada pelos acadêmicos da USP. Pretendendo estabelecer um arquétipo nacional, Mário de Andrade volta-se para o Brasil indígena e seus mitos. Acaba por construir Macunaíma, personagem moldado não a partir do Brasil que começava a pôr timidamente um pé no século XX, mas uma espécie de bon sauvage ao gosto dos europeus: preguiçoso, indolente, sem nenhum caráter, em suma, um ser tropical. Em vez de dar continuidade à cultura européia trazida pelos colonizadores, os “modernistas” voltam-se para o Brasil Carahiba.

Meio século antes, um gaúcho antecipava o que hoje se convencionou chamar de “teatro do absurdo”. Mas era gaúcho, não freqüentava os círculos da burguesia cafeeira nem escrevia sobre mitos indígenas. Qorpo Santo foi relegado ao pó das bibliotecas, acusado de louco e só teve suas primeiras peças encenadas exatamente um século após tê-las escrito. Mesmo assim, na época em que foi descoberto, graças ao trabalho de sapa de Aníbal Damasceno Ferreira, Qorpo Santo não foi valorizado. Foi preciso que a crítica do eixo Rio/São Paulo referendasse a descoberta, para que o esquecido dramaturgo adquirisse estatura nacional, o que só aconteceu quando Yan Michalski, em artigo para o Jornal do Brasil, o proclamou precursor do teatro do absurdo.

O ano de 22 também marca, para os paulistas, a criação do Partido Comunista em São Paulo. Em verdade, já em 1918, três anos antes da fundação do PC francês em Paris, em Santana do Livramento já tínhamos uma célula comunista. O que demonstra que o gaúcho é pioneiro até mesmo no obscurantismo.

São Paulo, culturalmente, sempre esteve voltada para a Europa. É aqui na Paulicéia que brotam, através do dandy Oswald de Andrade, as primeiras simpatias pelo fascismo e pelo stalinismo, manifestas tanto no “Manifesto Antropófago” como em O Homem e o Cavalo. Nestes panfletos, Oswald louva tanto o belicismo mussoliniano de Marinetti, quanto o otimismo utópico de Stalin. O próprio Macunaíma, suposto herói nacional, é fruto da imagem que a Europa nutre em relação ao Brasil, praga que nos foi rogada por Rousseau, com seu mito de um homem puro nos trópicos, não contaminado pela civilização. Mesmo o reconhecimento de Qorpo Santo paga tributo ao paladar europeu: não existissem autores como Becket ou Ionesco, o esquisito dramaturgo porto-alegrense não teria de quem ser precursor, nem seria reconhecido pelo Eixo.

Sob a sombra de Fierro - Os gaúchos, no início deste século, estão ainda voltados para o Plata. Há algo de hernandiano nos personagens de Aureliano Figueiredo Pinto e mesmo nos gaúchos estereotipados de Erico Verissimo. Não poderia ser diferente, já que gaúchos do Brasil e Argentina estão mais próximos entre si, tanto pelo meio geográfico como pela cultura, do que um rio-grandense e um nordestino, por exemplo.

Que é o Antonio Chimango senão uma onda distante, mas concêntrica, provocada pelo Martín Fierro? Também nas canções de Teixeirinha como na poesia produzida pelos poetas ligados ao movimento tradicionalista, lá está a caricatura contemporânea do gaúcho de Hernández. Até mesmo em manifestações literárias mais populares, encontramos o dedo do poeta argentino. Circula subterraneamente no Rio Grande do Sul um conhecido poema pornográfico, “Comendo éguas e outros bichos”. Vejamos uma de suas coplas:

Ó poetas que cantais

velhas cópulas eqüinas

olvidando outras vaginas

que numa escala crescente

vos deram gozos candentes

no lupanar das campinas

Temos a reprodução rítmica exata de uma sextilha do Martín Fierro, com os versos rimando no esquema ABBCCB. Sabemos que esta pérola da fescenina gaúcha foi criada coletivamente por poetas tradicionalistas, que não gostam muito de citar Hernández. Mas a influência é inegável:

Aqui me pongo a cantar

al compás de la vigüela,

que el hombre que lo desvela

una pena estrordinaria,

como la ave solitaria

con el cantar se consuela.

A propósito, este poema argentino - mas também nosso -, que tanto mexe com a alma do homem da fronteira rio-grandense, começou a ser escrito por José Hernández em Santana do Livramento. Não por acaso, o poema maior que a América Latina legou à literatura universal é praticamente desconhecido nos cursos de Letras do país. Mas já participei de uma “Semana Martín Fierro” em Berlim, onde Hernández foi comparado a Homero, e já o ouvi declamado nas ilhas Canárias, geografia que nada tem a ver com a pampa onde perambulava Fierro. Em Paris, um dos professores que participou de minha defesa de tese, Paul Verdevoye, o traduziu ao francês. Herdeiros de Fierro, pertencentes a uma outra geografia, pouco dizemos aos paulistas, mais voltados para o agreste ou para a selva, conforme o que deles esperam os europeus. Para estes, gaúcho é coisa de argentinos. Europa dixit: São Paulo, submissa, obedece.

A propósito, em setembro do ano passado, ministrei um curso sobre o poema de Hernández, em Passo Fundo, durante a VII Jornada Nacional de Literatura. Nesta cidade, famosa por suas tradições gaúchas, meus alunos praticamente desconheciam Fierro. Está na hora, parece-me, de a universidade gaúcha esquecer um pouco as confusas teorias literárias geradas às margens do Sena e olhar com mais carinho para a riqueza cultural do Plata.

O poder das imagens - As imagens que o centro do país emite para o exterior obedecem a uma procura, são aquelas que a Europa convencionou serem definidoras do Brasil. Estas imagens são poderosas. Me permito citar duas anedotas (no sentido europeu da palavra). Transportemo-nos para os anos 70, Lyon, França. Um bolsista gaúcho, para mostrar um pouco do Sul brasileiro, reunia seus trocados e a cada mês oferecia um churrasco a seus professores e colegas de curso. Logo foi chamado pela instituição que o financiava. Teria de acabar com os churrascos ou abandonar o curso. Surpreso, o gaúcho queria saber as razões da alternativa: não haviam gostado do churrasco? Nada disso. O churrasco estava excelente. Mas ao apresentar um churrasco como prato típico do Sul do Brasil, para pessoas que só se permitiam consumir no dia-a-dia um transparente bifinho de boi, dava aos franceses uma imagem contraproducente do país.

- “Te convidamos para que possas comover a burguesia francesa falando sobre a miséria no Brasil” - disseram seus anfitriões -. “Mas como vamos convencer um francês de que se passa fome no Brasil, quando apresentas o churrasco como prato nacional?” O gaúcho foi devolvido a Porto Alegre. Em seu lugar, receberam bolsa dois nordestinos, bem ao estilo morte-e-vida-severina. Assador emérito, o amigo que protagonizou este episódio se chamava João Carlos Barbosa. Era gaúcho daqueles que não se fazem mais, e sua memória ainda vaga pelas ruas de Porto Alegre.

Alguns anos mais tarde, quando lecionava na UFSC, recebi a visita de um professor francês na ilha. Através de uma amiga, encaminhei-o à Califórnia da Canção Gaúcha, para conhecer um pouco de nosso folclore, música e culinária. Voltou perplexo. Não entendia os espetos de churrasco girando durante o festival, aquele esbanjamento de carne com o qual francês algum sonha em seu dia-a-dia. “Et la famine, où est la famine?” queria saber o francês. Associava Brasil com Nordeste e miséria e não conseguia entender o Sul e o churrasco. João Carlos sentira o outro lado do problema em sua estada em Lyon. Após ter ido duas ou três vezes a uma casa de carnes providenciar seu churrasco, o açougueiro não se conteve: “Desculpe a pergunta, Monsieur, mas o senhor tem um hotel?”. Para o francês, o modesto churrasco que nosso gaúcho oferecia a amigos, só era concebível para consumo de um hotel.

Estes episódios nos mostram a imagem que o francês - e, por extensão, o europeu - tem de nós. Nordeste, sertão, cangaço, miséria, matança de índios, favelas, infância abandonada, tudo isto é compatível com Brasil. Esta imagem não é nutrida apenas pelo europeu médio, mas também por seus intelectuais e produtores culturais. Um carioca publicou no ano passado Cidade de Deus, um amontoado de anotações sobre a vida na favela, ao qual deu o nome de romance. Era seu primeiro livro e já tem contratos com editoras alemãs e francesas. Um dos organizadores do último Salão do Livro em Paris inclusive declarou aos jornais que este era o tipo de literatura que se esperava do Brasil.

Não por acaso, recentemente recebeu o Urso de Prata em Berlim, o filme Central do Brasil, relato choramingoso da infância de um menino pobre...nordestino. Tudo fecha: miséria, infância abandonada, analfabetismo, nordeste. Décadas após Vidas Secas, de Graciliano, e de O Cangaceiro, de Lima Barreto, continuamos alimentando na Europa a imagem do Brasil como sendo um imenso sertão. A premiação de Titanic no mesmo ano nos permite uma oportuna comparação: enquanto a indústria cinematográfica do Primeiro Mundo apela ao recurso de um transatlântico de luxo para arrancar lágrimas e dólares das platéias, tentamos comover com o que temos de esteticamente mais exportável, a miséria.

O “Sul maravilha” pouco diz a um europeu como parte integrante do Brasil. O exemplo mais sintomático desta exclusão do Sul no imaginário europeu, encontrei-o em uma declaração de um repórter do Le Monde, que acompanhava o Papa em sua primeira visita ao Brasil. Quando João Paulo se dirige a Porto Alegre, não interessa mais ao jornalista. “Segundo meus colegas brasileiros, lá não é mais Brasil”, disse. Ou seja, eram jornalistas brasileiros que reforçavam, no correspondente francês, o preconceito que este já nutria em relação ao país.

Para cúmulo das desgraças, em relação ao Brasil mais ao norte, os gaúchos são cultos e predominantemente brancos. Tais características não cabem no conceito de um país imaginado como negro, exótico, tropical. Quem viu isto muito bem foi Wilson Martins, crítico e historiador execrado nos meios acadêmicos, et pour cause. Ainda há pouco, dizia o autor paranaense:

“A verdade é que a nossa literatura é sempre encarada como algo de exótico, de tropical. É por isso que Jorge Amado é extremamente popular nos outros países, ele oferece esse estereótipo da violência, da conquista da terra, da luta de classes e da opressão racial. Essa idéia exótica, uma espécie de ilha dos mares do sul, todos de tanga pelas ruas, armados de arco e flecha, e caçando onças na Avenida Rio Branco. Quando aparece um brasileiro branco e com grande cultura internacional, ele causa um espanto extraordinário. Nós alimentamos esse preconceito com todas as forças. Fazemos questão de mostrar que somos tropicalistas, que isto aqui é um país tropical, que somos mestiços, que branco aqui não tem vez. Quem defende tudo isso são esses grupos dos baianos e dos novos baianos, dos trios elétricos. É até um preconceito contra a cultura, no sentido ecumênico da palavra”.

Talvez por estar sempre voltada para a Europa, talvez magoada pela mão rude com que a tratou Getúlio Vargas, São Paulo sempre marginalizou a cultura feita no Rio Grande do Sul. Um episódio ocorrido na redação de um jornal paulista explica às maravilhas esse desdém. O enxadrista Mequinho havia sido derrotado em uma final de campeonato. O redator titulou: CAMPEÃO BRASILEIRO É DERROTADO EM FINAL DE XADREZ. O editor trocou brasileiro por gaúcho. Mequinho era campeão brasileiro quando ganhava. Quando perdia, era gaúcho.

A affaire Quintana - Se há, para os gaúchos, uma injustiça que clama aos céus reparação, esta foi a recusa por duas vezes, da candidatura de Mário Quintana à Academia Brasileira de Letras, instituição dominada e controlada pelos escritores do Eixo Rio/São Paulo. Que o poeta gaúcho tenha se candidatado, já foi um erro. Picado por alguma mosca azul, Quintana pensou que poderia ser aceito pelos sedizentes imortais da Academia. Foi preterido por um ex-presidente da República, cujo nome provoca mal-estar entre escritores, e por um ex-ministro da ditadura militar, de obra praticamente desconhecida. Quintana, em sua ingenuidade de nefelibata, talvez tenha imaginado que para participar dos chás dos imortais bastava seu gênio como credencial. Enganou-se feio e foi humilhado em praça pública. Ninguém entra na Academia sem os rapapés de praxe aos medíocres que a habitam. Em seu lugar, foi aceito Carlos Nejar, o escrevinhador hermético que, como Neruda, julga que fazer poesia é alinhar palavras na vertical.

Comentando meu artigo “O Nordeste Cultural”, Carlos Nejar (Folha de São Paulo, 21/03) fez a defesa, como seria de se esperar, dos colegas de fardão que escantearam Quintana, José Sarney e Eduardo Portella. Poeta urbano, Nejar ainda reivindicava, estranhamente, a condição de “homem do pampa”. Mas alguma verdade havia naquela auto-definição: apesar de ter nascido em meio ao concreto de Porto Alegre, certamente foi contaminado por uma virtude típica dos homens da pampa, a coragem. Pois muita coragem intelectual é necessária para saudar Sarney como “admirável ficcionista” e um ex-ministro da ditadura, Eduardo Portella, como “uma das grandes personalidades do Brasil contemporâneo”.

Nejar, imortal sem ter consultado a posteridade, fez bem em defender seus amigos de fardão e, entre estes, o amigo das fardas. Mas não precisava concluir sua carta com tamanho cinismo, ao afirmar que ingressou na Academia “apenas pelo poder silencioso e humilde da poesia”. Terá sido este poder silencioso da poesia que levou à Academia sumidades literárias como Getúlio Vargas, o general Aurélio de Lira Tavares (assinado Adelita) e Roberto Marinho, entre outros. A Academia tem três vias de acesso: imposições do poder, disposição para fazer rapapés aos imortais e, ultimamente, a ideologia marxista. Mário Quintana carecia de qualquer uma destas três “virtudes”. Era apenas um poeta maior: nada de espantar que fosse ignorado.

E só poderia ser assim. Se saudar Sarney como admirável ficcionista é condição necessária para pertencer ao sodalício dos supostos imortais, temos de convir que o sedizente “homem do pampa” fez o necessário para merecer sua cadeira. Quem conheceu Quintana, sabe que o poeta da Rua da Praia jamais se submeteria a tais salamaleques.

A travessia do Uruguai - Me ative, nestas reflexões, a um enfoque estritamente literário do isolamento cultural do Rio Grande do Sul. Outras abordagens poderiam ser feitas no que diz respeito à música, cinema ou pintura, se é que se pode chamar de cinema o que se faz em Porto Alegre, e se é que a pintura contemporânea ainda tem a ver algo com arte. Se bem que os gaúchos choram de barriga cheia: o Rio Grande do Sul conseguiu criar um invejável circuito próprio de difusão de sua literatura, que permite a existência de um aquecido mercado editorial, sem depender do resto do país.

Além deste dar-de-ombros do Eixo Rio/São Paulo em relação ao Sul, um outro fator elementar impede a literatura gaúcha de atravessar o rio Uruguai: a distância dos autores do Sul em relação aos centros decisórios de política cultural. É preciso estar perto do MEC, da USP, das historiografias por ela produzidas, das cúpulas brasilienses que decidem os currículos do ensino secundário e universitário. Se os escritores gaúchos quiserem divulgação nacional, precisarão infiltrar-se junto a essas instâncias. Pois neste Brasil de final de século, ainda impregnado de um ranço marxista, arte é uma questão de Estado.

O suporte da indústria do livro, hoje, é a universidade. Se um dia o livro foi um instrumento sem o qual a universidade não podia existir, hoje a universidade é um instrumento sem o qual a indústria do livro perde seu vigor. O que era fim, a aquisição de saber através da universidade, se tornou meio para sustentação de um comércio. E o que era meio, o livro como instrumento de deleite espiritual ou comunicação do saber, tornou-se fim, uma mercadoria como qualquer outra, para alegria de editores e massagens no ego de escritores com boas relações junto ao MEC e crítica acadêmica.

Determinados autores e editores há muito descobriram isto e buscaram refúgio na universidade, não só no Brasil como até mesmo onde impera o livre mercado, como Estados Unidos e França. Burlar as leis da oferta e procura torna-se fácil: para vender um autor, não é necessário que este seja buscado pelos leitores. Basta impor seu nome e sua obra nas listas de vestibulares e nos currículos colegiais e universitários. Nisto consiste o obsceno mercado do livro paradidático. Ou, como prefiro chamá-lo, do livro estatal.

Esta imposição gera uma indústria paralela de estudos, monografias e análises, que criam uma fortuna literária artificial para o autor: ele passa a fazer parte da cultura nacional, não por preferência de uma coletividade, mas por imposição de um pequeno número de autores e editores íntimos do poder. Resultado: os coitados dos estudantes passam a odiar literatura, quando são obrigados a ler obras indigestas como as de Mário ou Oswald de Andrade, de Clarice Lispector ou Guimarães Rosa. Aliás, este mineiro é hoje, indubitavelmente, o mais encombrant elefante branco adotado pela universidade brasileira. Grande Sertão: Veredas goza entre nós do mesmo status do Ulisses, de Joyce: é muito citado e raramente lido. Mas como foi adaptado como noveleta para a Rede Globo, mesmo o leigo em literatura pode se permitir alguns palpites sobre os conflitos de Riobaldo e Diadorim.

Se os gaúchos quiserem renome nacional, não se preocupando com métodos, este é o caminho mais fácil de difusão de sua literatura: conseguir padrinhos junto à USP ou ao MEC, e impor suas obras através de determinações do Estado. Prestarão um desserviço à literatura, mas conseguirão divulgar seus nomes. Aliás, não poucos autores gaúchos já utilizam os instrumentos locais do Estado para impor suas obras no Rio Grande do Sul. Para estes, que já conhecem o caminho das pedras, basta apenas ampliar seu raio de ação.

Há uma outra hipótese, que não implica promiscuidade com o poder. Os escritores contemporâneos parecem esquecer que vivemos dias de Internet. Com um computador e um fax/modem, um escritor pode editar e divulgar sua obra, eliminando aqueles intermediários sem os quais até hoje o livro era impensável: gráficos, editores, distribuidores e livreiros. Qualquer internauta pode ter hoje dois megabytes na geocities ou em outras praias, sem despender nenhum vintém. Se quiser 10 megabytes, pagará algo em torno a 15 dólares ao ano. Ou seja, hoje um gaúcho pode atravessar o Uruguai e colocar seu trabalho à disposição não só do público brasileiro, mas do planeta todo, sem sequer sair de sua mesa de trabalho. Entre os participantes de newsgroups, há horas se fala na criação de um fórum, a soc.culture.gaucho, que englobaria três países, Brasil, Uruguai e Argentina. Como o gaúcho é gaudério, e sua cultura não se limita a um só país, a Internet poderá fornecer uma pátria espiritual a este tipo humano em vias de extinção.

A Internet não pode mais ser ignorada como uma nova mídia. Como tampouco os disquetes e os CD-ROMs. Na recente Feira do Livro de São Paulo, estavam sendo vendidos CD-ROMs com a ficção completa de Machado por R$ 10,00, e disquetes com seus romances por R$ 2,50. A edição e difusão da obra literária tornam-se inacreditavelmente baratas. O que é quase um milagre neste Brasil onde o preço do livro em papel é um dos mais caros do mundo, a ponto de os editores nacionais, para ter algum lucro, estarem imprimindo na Espanha, Itália, Chile e Colômbia.

Os direitos de autor praticamente vão pras cucuias. Mas, fora os amigos do Rei, quantos escritores vivem de direitos autorais neste país? Estamos nos encaminhando para uma sociedade em que computador será tão comum como qualquer eletrodoméstico, e editores e escritores terão de levar em conta este mundo novo. Permanece, por enquanto, a velha questão: não é mais agradável ler no papel que na telinha? Pode ser. Nos dias de Gutenberg, certamente não faltaram leitores para alegar saudades do pergaminho. Claro que é pouco prático usar o computador para ler na cama. Mas a Internet permitirá ao escritor - aliás, já permite - uma liberdade com a qual não pode sonhar quem depende do papel impresso. A utopia está ao alcance de nossas mãos: hoje, cada escritor pode ser próprio editor.

Há evidentemente a solução mais radical: a criação de um Estado à parte do Brasil. Seria como dar um tapa num cego: da noite para o dia os autores estaduais seriam promovidos a nacionais. Esta idéia separatista, sempre viva no inconsciente coletivo gaúcho, é mal vista ao norte do Sul. Quando indígenas querem um território para si, estão lutando pelos seus direitos. Mas ocorre que somos brancos: quando gaúcho sonha em separar-se, é logo tachado de nazista.

 

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