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Nesta seção, textos sobre lendas e mitos; contos; personagens; fábulas; narrativas populares; seres fantásticos...

Yacy taperê, diabo menor

Ruth Guimarães

"Este nome (yacy-taperê) liga-se a uma lenda, que tem relação com o conto das amazonas. Dizem que, quando desceram 'umas mulheres' (ceta cunhã) ficaram nesse lugar irmã e irmão". E assim, nessa linguagem saborosa, vai João Barbosa Rodrigues, em O rio Iamundá, desfiando a belíssima lenda ameríndia. Conta como se apaixonou a irmã pelo irmão. E como o visitava cada noite em sua rede, misteriosamente, protegida pelas trevas. E como o irmão, para descobrir quem era aquela que o despertava para o amor, umedeceu-lhe as faces com urucum. E ela que habitava as margens do lago Iaci, espelhou-se em suas águas e viu que estava marcada para sempre. Manejando o arco, despediu flecha após flecha, até formar uma longa vara, e por ela subiu e transformou-se em lua. O irmão que habitava o alto da serra, indo vê-la e não a encontrando, de dor metamorfoseou-se em mutum. Ela agora vem mensalmente, sob a forma de lua, mirar-se nos espelhos dos lagos para ver se desapareceram as manchas.

É muito interessante a concordância desta lenda com a dos esquimós. Contam eles que a lua, visitada cada noite por um jovem, lhe enegreceu o dorso para marcá-lo e, tendo reconhecido que seu irmão era o amante, fugiu, perseguida por ele. Foram ambos transportados às nuvens e ele tornou-se o sol (Seibillot, Le folklore). 

A Tapera da lua — recontada por Afonso Arinos nas Lendas e tradições brasileiras, refere-se a uma aldeia que ficava perto de uma lagoa tranqüila, nas fraldas da serra chamada do Taperê e hoje do Acunã. Uma guerra infeliz reduziu a tribo a dois sobreviventes, apenas irmã e irmão. O resto como na lenda recolhida por Barbosa Rodrigues. O mesmo em Melo Morais Filho. Em todas há a relação com as cunhãs-apuyaras — as amazonas.

Percebe-se que Jaci, a lua, se confunde com Iaci, o lago. E há ainda a notar a significação de Jaci (de ja - vegetais; e cy - mãe). Taperê, a tapera, confunde-se com Taperê, a serra, hoje chamada do Acunã. Como elemento básico e determinante do mito, temos a necessidade de explicar as manchas e fases da lua.

É provável que de uma única vara de flechas, subindo aos céus, idéia primitiva do saci, i.e., de Jaci, tenha surgido, por associação, o mito saci de uma perna só, embora os partidários da hipótese astral por assim dizer — vejam na forma um indício claro de que a lenda do saci procede da conformação da Ursa Maior. E é possível também que a forma — uma perna só — venha do hábito dos pássaros ficarem em repouso sobre uma perna. A cantiga do pássaro, associada à lenda, impôs a onomatopéia — jaci taperê. Ao que parece, com tais elementos é passível de sucesso a tentativa de situar em definitivo a lenda do saci, por um lado, entre os mitos florestais.

Como na primeira contribuição do progresso, o invasor fez do jaci taperê, o saci-pererê-de-uma-perna-só, emprestando-lhe as características dos duendes originários da alma dos mortos e do culto do fogo, nas lendas européias. Aliás, não foi preciso modificação de seus atributos essenciais para isso. Evidentemente, na lenda ameríndia o saci tinha origem antropomórfica, estreitamente ligada à alma dos mortos. Foi um elemento incorporado à lenda da tapera da lua, numa tentativa de explicar o perambular de um pássaro e o seu canto melancólico, que parece um chamado. Aqui já não se trata do mutum, conforme a lenda colhida no rio Jamundá, mas de outra ave, considerada mensageira da alma dos mortos, segundo Metraux (La religion des tupinambas). É bastante impressivo esse elemento etiológico. Os mandarucus diziam mesmo que era sob a forma de matim taperera, nome registrado por Metraux, que a alma dos mortos vinha passear sobre a terra. O mesmo entre os chiriguanos. Os guaraiús explicavam o cuidado que tinham por esse pássaro, dizendo que ele vinha da terra dos ancestrais. O indígena, que tinha a palavra e o mito — Jaci — ouvindo o chamado de saci, relacionou-o à maravilhosa lenda da tapera da lua.

O nosso caipira associou o canto a palavras conhecidas e chamou a ave — sem-fim. A mesma ave é chamada indiferentemente — saci ou sem-fim, pelos caipiras do vale do Paraíba, sendo saci, evidentemente, corrução de Jaci. Taperê passou a pererê, sererê, tererê. Jaci e taperê deturpados deram: mati-taperê. Posteriormente: matinta pereira, nome pelo qual é conhecida uma ave da família dos cuculídeos: Tapera naevia-Lin. Goeldi dá-lhe o nome de Diplopterua Naevius, e Barbosa Rodrigues — de Cuculus, Cayanus, ou seja, o mesmo saci ou sem-fim. Varnhagem dá matintaperera. Metraux: matim taperera, variando apenas na separação do nome. Na baixa fluminense diz-se: saci saterê e saci tapereê. No Rio Grande do Sul — saci peré (Jacques Cezimbra, Assuntos do Rio Grande do Sul). Como diz Cassiano Ricardo em seu belo Martim Cererê, nova corrução dos vocábulos originais, não é difícil que à força de se aportuguesar, venha o jaci taperê a dar: Martins Pereira da Silva. E não é difícil mesmo.

Repetindo: temos a lenda de jaci taperê, mito astral, acrescida de uma tentativa de explicação do canto do saci, este último elemento, mito florestal. Explica-se deste modo, também a concordância de yasy yateré, nas tribos guaranis do sul, duende em forma de pássaro, como o jaci taperê, no Norte. Se bem que seja mais provável ter a lenda migrado com alguma tribo nômade, em seu contínuo deslocar-se de um extremo a outro do continente americano.

Perto do arroio de Itaquiri, na jurisdição dos ervais de Tacuru-Pucu, Juan B. Ambrosetti recolheu a lenda de yasy yateré. Afirma que é difundida na província de Corrientes e no Paraguai. Yasy yateré toma a forma de pássaro e rouba crianças e moças bonitas. Os filhos dessas uniões são também yasys yaterés. Segundo Ernesto Morales (Leyendas guaranies), as gentes campesinas do litoral argentino crêem também nesse mito.

No Rio de Janeiro, informa Félix Ferreira, na fazenda de Santa Cruz, da antiga propriedade dos jesuítas, é crença geral entre os que ali são nascidos, que o caapira ou caipora, como é mais comum, tem por seu companheiro o saci pereira, um pássaro noturno de um pé só, que anda a desoras a cantar pelas estradas: "Saci pereira, minha perna me dói!" Há uma parlenda infantil assim:

Saci-pererê, de uma perna só — com esta variante:

Saci-pererê de uma banda só (Cachoeira, 1933).

Vejamos a associação das diversas crenças indígenas, modificadas depois do descobrimento pela corrente popular européia.

Criam os nossos índios, como refere Simão de Vasconcelos, que havia espíritos malignos de que tinham grande medo: curupira (espíritos do pensamento); macachera (espíritos do caminho); Jurupari ou Anhangá (espírito mau, ou propriamente dito o demônio); o maraguigana (espíritos ou almas separadas que denunciavam a morte).

Curupira ou caapora (mato-morador) é um demônio indígena ainda hoje familiar aos caipiras com o nome de caipora. Tem o rosto voltado para trás, é muito feio e anda montado num porco-espinho. Pita no cachimbo e ai! do caçador ou do mateiro que o encontrar, se não tiver fumo para dar-lhe. Apresenta-se também sob a forma de um caboclinho. No Rio Grande do Sul, o caipora tem os pés para trás e é chamado também carambola (Luís Carlos de Morais, Vocabulário sul-riograndense). O caipira do vale, com seu amor pelo colorido, diz que a caipora é verde e cabeluda. O caipora, diz Castro e Silva em Os contos de Miquelina, é um preto velho de cabeça branca, muito grande. É cambaio, meio corcunda e anda com um pau na mão. Não é difícil traçar a origem da figura deste caipora — veio do medo que se tem aos pretos velhos macumbeiros.

Se não conhece o saci, leitor, ouça o que diz o meu velho amigo piraquara (Cachoeira, 1930): "O saci é um negrinho preto, zoiúdo, de uma perna só. Pita num pitinho sarrento e assobia. O pito é de canudo preto e o saci pede fogo, quando encontra gente no ermo".

Aí está. Esse saci é quase o caipora. Couto de Magalhães diz que o saci cererê é um pequeno tapuio manco, de um pé, com um barrete vermelho e uma ferida em cada joelho. Barrete feito de marrequinhas (flores de corticeira), diz Simões Lopes Neto — Lendas do sul, 1913.

Sabe-se que o saci é preto. Que tem uma perna só, que usa gorrinho vermelho, que fuma no cachimbo. Que é moleque. Que assobia. E que, às vezes, completando o seu estranho sincretismo com o caipora, é um tapuio manco, com uma ferida em cada joelho.Quem nunca teve notícia dele, leia O saci, de Monteiro Lobato, e verá as pitorescas diabruras desse negrinho de uma perna só.

Para finalizar, dois casos inéditos a respeito do saci.

Dona Maria do Seu Oliveira, que mora na rua Visconde, em Guaratinguetá (1943), me disse que viu o saci. Conta: "Quando eu era mocinha, morava no campo do Galvão, mais do lado da ponte que do lado da cidade. Não vê que eu ficava costurando até tarde, na sala fazendo serão. Então batiam na porta. A gente levantava, ia ver, não era ninguém. Uma coisa assobiava no escuro, cada assobio fino que doía. Nem bem a gente ia sentar, batiam na porta da cozinha. Quem não via logo que era o saci? Ia-se ver, o tiçãozinho assobiava no escuro. Ele gosta de fazer molecagem". Conta outro caso: "É preto feito um tição, o coisarruizinho. Eu vou contar. Meu pai punha os cavalos pastando no campinho. Pois de manhã cedo eles estavam cansados e com a crina feito brenha. Tão trançada que não se podia pentear mais. O remédio era a tosa braba. Montar o saci não podia porque tem uma perna só. Então se agachava em riba do cavalo e ia, plequeté, plequeté, campo fora atarracado nas crinas do animal. Deixava os cavalos em ponto de arrebentar de canseira. A gente de noite bem que via "aquele" coisiquinha preto, com um gorrinho vermelho, amontoado em cima da alimária, assobiando de gosto".

 

(Guimarães Ruth. "Yacy taperê, diabo menor". Província de São Pedro. Porto Alegre, Livraria do Globo, nº 6, 1947, p.39-41)

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