O Estado de Vigilia
 
Se a maior parte dos arqueólogos concorda em negar totalmente a existência no passado de civilizações avançadas que dispuseram de meios materiais poderosos, a possibilidade da existência, em qualquer época da humanidade, de uma pequena percentagem de seres despertos, utilizando as fôrças naturais com os meios ao alcance, não pode de forma alguma ser desmentida.

Nós pensamos mesmo que um exame metódico dos dados arqueológicos e históricos confirmariam essa hipótese.

Como teria esse despertar começado?

Evidentemente que se pode invocar intervenções do Exterior. Pode-se igualmente imaginar uma interpretação puramente materialista, racionalista. Era uma interpretação assim que nós queríamos propor. A física dos raios cósmicos descobriu há vários anos aquilo que ela chama acontecimentos extraordinários. Chama-se "acontecimento" em física cósmica a colisão entre uma partícula vinda do espaço e a nossa matéria.

Em 1957, como o assinalamos no nosso estudo sôbre a alquimia, foi detectada uma partícula excepcional de uma energia fantástica (energia atingindo 10'8 eléctrons-volts, enquanto a fissão do urânio só produz 2 x 108).Admitamos que uma vez apenas, depois do aparecimento da humanidade, uma tal partícula tenha atingido um cérebro humano. Quem sabe se as enormes energias exaladas não poderiam produzir uma ativação e se o primeiro "homem desperto" não nasceu assim.Ësse homem desperto teria podido descobrir, teria podido aplicar técnicas para transmitir o "despertar". Sob diversas formas, essa técnica ter-se-ia prolongado até a nossa época e a Grande Obra dos Alquimistas, a Iniciação talvez fôssem mais do que um lenda.

A nossa hipótese não é evidentemente mais do que uma hipótese. Não parece ser verificável experimentalmente, pois nem sequer se pode conceber um acelerador artificial produzindo tão formidáveis, tão fantásticas energias. Tudo o que podemos dizer é que o grande cientista inglês Sir James Jeans escreveu: "Foi talvez a radiação cósmica que fez o homem do macaco" (essa citação provém do seu livro: O Misterioso Universo, Hermann ed., 1929).Limitamo-nos a retomar essas idéias, com dados modernos que Sir James Jeans ignorava e que nos permitem escrever: "Talvez tenham sido acontecimentos cósmicos excepcionais, de energias fantásticas, que fizeram do homem o super-homem'".

Um homem, um cientista, segundo nos conta Jorge Luís Borges, consagrara tôda a sua vida à investigação, entre os inúmeros signos da natureza, do inefável nome de Deus, o número do grande segrêdo. De infortúnio em infortúnio, ei-lo prêso pela polícia de um príncipe, e condenado a ser devorado por uma pantera. Atiram-no para dentro dc uma jaula. Do outro lado da barreira, que será erguida dentro de instantes, a fera prepara-se para o festim. O nosso cientista contempla o animal e eis que, analisando as manchas do pêlo, descobre através do ritmo das formas o número, o nome que tanto e em tantos lugares procurava. Sabe então por que motivo vai morrer, e que morrerá sabendo — o que não é morrer.

O Universo devora-nos, ou então revela-nos o seu segrêdo, segundo sabemos ou não contemplá-lo. É grandemente provável que as leis mais sutis e mais profundas da vida e do destino de tudo o que está escrito estejam claramente inscritas no mundo material que nos cerca, que Deus tenha deixado a sua escrita sôbre as coisas, como para o nosso cientista no pêlo da pantera, e bastaria talvez um certo olhar... O homem desperto seria o homem dêsse olhar.

Se existe um estado de vigilia, falta edificar um andar no edificio da psicologia moderna. Eis, no entanto, quatro documentos que fazem parte da nossa época. Não os escolhemos, por nos faltar tempo para uma verdadeira escolha. Falta elaborar uma antologia dos testemunhos e estudos modernos sôbre o estado de vigília. Seria muito útil. Estabeleceria comunicações com a tradição. Mostraria a permanência do essencial no nosso século. Esclareceria certos caminhos do futuro. Os literatos encontrariam aí uma chave, os investigadores de ciências humanas sentir-se-iam estimulados, os cientistas veriam nisso o fio que corre através de tôdas as grandes aventuras do espírito, e sentir-se-iam menos isolados. Bem entendido, ao reunir êsses documentos que estão ao alcance das nossas mãos, as nossas pretensões são mais modestas. Queremos apenas fornecer breves indicações sôbre uma psicologia possível do estado de vigília nas suas formas elementares.

1° — Excertos das opiniões do chefe de escola George Ivanovitch Gurdjieff, recolhidas pelo filósofo Ouspensky;

"Para compreender a diferença entre os estados de cons-ciência é necessário voltar ao primeiro, que é o sono. É um estado de consciência interamente subjetivo. O homem mergulha nos seus sonhos — pouco importa que dêles conserve ou não a recordação. Mesmo se algumas impressões reais atingem o homem adormecido, tais como sons, vozes, calor, frio, sensações do seu próprio corpo, elas só despertam nêle imagens fantásticas. Depois o homem acorda. A primeira vista é um estado de consciência completamente diferente. Ele pode mover-se, falar com outras pessoas, fazer projetos, ver perigos, evitá-los etc. Parece razoável pensar que se encontra numa situação melhor do que enquanto dorme. Mas se nós vemos as coisas um pouco mais a fundo, se lançarmos um olhar ao seu mundo interior, aos seus pensamentos, às causas das suas ações, comprenderemos que está quase no mesmo estado que quando dorme. E mesmo talvez pior, porque no sono está passivo, o que quer dizer que nada pode fazer. Pelo contrário, no estado de vigília pode agir sem interrupção e os resultados das suas ações repercutir-se-ão nêle e naquilo que o rodeia. E no entanto não se recorda de si. É uma máquina, tudo lhe acontece. Não pode fazer parar a vaga dos seus pensamentos, não pode controlar a imaginação, as suas emoções, a sua atenção. Vive num mundo subjetivo de "eu gosto", "não gosto", "isto agrada-me", "aquilo não me agrada", "desejo", "não desejo", quer dizer, um mundo feito daquilo de que julga gostar ou não gostar, desejar ou não desejar. .Não vê o mundo real. O mundo real está-lhe vedado pelo muro da própria imaginação. Ele vive no sono. Dorme. E aquilo que chama a sua "consciência lúcida"
E aquilo que chama a sua "consciencia lúcida" não é mais que sono — e um sono muito mais perigoso que o seu sono da noite, na cama.

"Consideremos qualquer acontecimento da vida da humanidade. Por exemplo, a guerra. Há guerra neste momento. O que quer isto dizer? Isto significa que vários milhares de adormecidos esforçam-se por destruir vários milhares de outros adormecidos. Recusar-se-iam a isso, evidentemente, se despertassem. Tudo o que atualmente se passa é devido a êsse sono.

"Estes dois estados de consciência, sono e estado de vigília vulgar, são tão subjetivos um como o outro. Só quando começa a recordar-se de si próprio é que o homem pode na verdade despertar. Em seu redor tôda a vida adquire então um aspecto e um sentido diferente. Ele a vê como uma vida de pessoas adormecidas, uma vida de sono. Tudo o que as pessoas dizem, tudo o que fazem, dizem-no e fazem-no durante o sono. Nada disso, portanto, pode ter qualquer valor. Apenas o despertar e o que leva ao despertar pode ter um real valor."

"Quantas vêzes já me perguntaram se não seria possível fazer parar as guerras? Evidentemente que seria possível. Bastaria que as pessoas despertassem. Isso parece bem fácil. No entanto, nada seria mais difícil, porque o sono é trazido e man-tido por tôda a vida ambiente, por tôdas as condições da ambiencia.

"Como despertar? Como escapar a êsse sono? Estas perguntas são as mais importantes, as perguntas vitais que um homem se deve pôr. Mas, antes de as pôr, deverá convencer-se da veracidade do seu sono. E só lhe será possível convencer-se tentando despertar. Quando tiver compreendido que não se recorda de si próprio e que a lembrança de si significa até certo ponto um despertar; quando tiver visto por experiência quanto é difícil recordar-se de si mesmo, então êle compreenderá que para despertar não é suficiente desejá-lo. Mais rigorosamente, diremos que um homem não pode despertar por si mesmo. Mas se vinte homens combinarem que o primeiro entre êles a acordar acordará os outros, já têm uma probabilidade. No entanto, isso também é insuficiente, porque êsses vinte homens podem adormecer ao mesmo tempo, e sonhar que despertam. Não é portanto suficiente. É necessário mais ainda. Esses vinte homens devem ser vigiados por um homem que não esteja adormecido ou que não adormeça tão fàcilmente como os outros, ou que vá dormir conscientemente quando fôr possível, quando disso não resulte qualquer mal nem para êle nem para os outros. Devem procurar um homem dêsses e contratá-lo para que os desperte e não lhes permita tornar a cair no sono. Sem isso é impossível despertar. E isso que importa compreender.

"É possível pensar durante um milhar de anos, é possível escrever bibliotecas inteiras, inventar teorias aos milhões e tudo isso durante o sono, sem qualquer possibilidade de despertar. Pelo contrário, essas teorias e êsses livros escritos ou fabricados por adormecidos terão simplesmente como resultado arrastar outros homens para o sono e assim indefinidamente.

"Não há nada de nôvo na idéia do sono. Quase desde a criação do mundo, foi dito aos homens que êles estavam adormecidos, e que deveriam despertar. Quantas vêzes lemos, por exemplo, nos Evangelhos : "Despertai", "velai", "não fiqueis a dormir!" Os discípulos de Cristo, mesmo no jardim de Getsémani, enquanto o seu Mestre rezava pela última vez, dormiam. Isto diz tudo. Mas compreendem-nos os homens? Tomam o fato como uma figura de retórica, uma metáfora. Não vêem de forma nenhuma que isto deve ser tomado à letra. E também aqui é fácil compreender por quê. Ser-lhes-ia necessário despertar um pouco, ou pelo menos tentá-lo. De fato, foi-me várias vêzes perguntado por que motivo os Evangelhos nunca falam do sono... Fala-se em tôdas as páginas. Isto apenas prova que as pessoas lêem os Evangelhos a dormir."

"Em regra geral, que é necessário para despertar um homem adormecido? É necessário um bom choque. Mas quando um homem está profundamente adormecido, um único choque não é suficiente. Um longo período de choques incessantes torna-se necessário. Por conseqüência, é preciso alguém para administrar êsses choques. Eu já disse que o homem desejoso de despertar deve procurar o auxílio que se encarregará de sacudi-lo durante muito tempo. Mas quem pode êle procurar, se tôda a gente dorme? Ele procura alguém que o desperte, mas êsse também adormece em breve. Qual será a sua utilidade? Quanto ao homem realmente capaz de se manter desperto, recusará provàvelmente perder o seu tempo a despertar os outros: pode ter trabalhos muito mais importantes.

"Há também a possibilidade de despertar por processos mecânicos. Pode usar-se um despertador. A desgraça quer que nos habituemos, depressa demais, a qualquer despertador: deixamos de ouvi-lo, muito simplesmente. São portanto necessários vários despertadores, com campainhas diferentes. O homem deve literalmente rodear-se de despertadores que o impeçam de dormir. E aqui surgem mais dificuldades. Os desperta-dores precisam de corda; para lhes dar corda é preciso lembrar-se; para nos lembrarmos é necessário acordar várias vêzes. Mas eis o pior : um homem habitua-se a todos os despertadores e, após um certo tempo, ainda dorme melhor. Por conseqüência, os despertadores devem ser continuamente mudados, é necessário inventar constantemente novos. Com o tempo, isto pode auxiliar um homem a acordar. Ora, há muito poucas probabilidades de que êle faça todo êsse trabalho de inventar, dar corda e mudar todos êsses despertadores por si mesmo, sem auxílio exterior. É muito mais provável que ao começar êsse trabalho êle não tarde em adormecer e que, durante o sono, sonhará que inventa despertadores, que lhes dá corda, que os muda — e, como já disse, cada vez dormirá melhor.

"Portanto, para despertar é preciso uma conjunção completa de esforços. É indispensável que haja alguém para despertar o adormecido; é indispensável que haja alguém para vigiar aquêle que acorda; é, necessário ter despertadores, e é igual-mente necessário inventar constantemente novos.

"Mas para levar a bom têrmo êsse empreendimento e obter resultados, devem trabalhar várias pessoas em conjunto."Um homem sòzinho nada pode fazer.'Antes de mais nada, precisa de auxílio. Mas um homem sòzinho não pode contar com auxílio. Aquêles que são capazes de auxiliar avaliam o seu tempo por um preço muito alto. E naturalmente preferem ajudar, digamos, vinte ou trinta pessoas desejosas de despertar, a uma única. Além disso, como já disse, um homem pode muito bem enganar-se a respeito do seu despertar, tomar como despertar aquilo que não passa de um nôvo sonho. Se algumas pessoas decidem lutar em conjunto contra o sono, despertar-se-ão mutuamente. Acontecerá muitas vêzes que uma vintena dentre elas dormirá, mas a vigésima primeira despertará, e acordará as outras. Dar-se-á o mesmo com os despes tadores. Um homem inventará um despertador, um segundo in-ventará outro, após o que poderão fazer uma troca. Todos juntos podem ser de grande auxílio uns para os outros, e sem êsse auxílio mútuo nenhum deles pode conseguir seja o que fôr.

"Portanto, um homem que pretende despertar deve procurar outras pessoas que desejem igualmente acordar, a fim de trabalhar com elas. Mas isto é mais fàcilmente dito que feito,porque o empreendimento de tal trabalho e a sua organização exigem um conhecimento que o homem vulgar não possui. O trabalho deve ser organizado e deve haver um chefe. Sem essas duas condições, o trabalho não pode dar os resultados esperados, e todos os esforços serão vãos. As pessoas poderão torturar-se; mas essas torturas não as farão despertar. Parece que para certas pessoas nada é mais difícil de compreender. Por si mesmas e por sua iniciativa podem ser capazes de grandes esforços, mas os seus primeiros sacrifícios devem ser de obedecer a outro : nada no mundo conseguirá persuadi-las.

"E não querem admitir que todos os seus sacrifícios, neste caso, de nada servem.

"O trabalho deve ser organizado. E só o pode ser por um homem que conheça os seus problemas e os seus objetivos, que conheça os seus métodos, tendo êle mesmo passado, no seu tempo, por semelhante trabalho organizado."
 
 
 

                            II — Os Meus Primeiros Tempos Na Escola Gurdjieff

"Pegue num relógio, diziam-nos, e olhe para o ponteiro grande tentando conservar a percepção de si mesmo e concentrar-se neste pensamento: "Eu sou Louis Pauwels e estou aqui neste momento". Tente pensar apenas nisto, siga simplesmente osmovimentos do ponteiro grande permanecendo consciente de si mesmo, do seu nome, da sua existência e do local onde se encontra."

No princípio, isto parecia simples e até um pouco ridículo.Evidentemente que posso manter presente no espírito a idéia de que me chamo Louis Pauwels e de que estou aqui, neste momento, vendo deslocar-se muito lentamente o ponteiro grande do meu relógio. Depois apercebo-me de que esta idéia não se mantém muito tempo imóvel em mim, que começa a tomar mil formas e a correr em todos os sentidos, como os objetos que Salvador Dali pintava, transformados em lama movediça. Mas tenho ainda de reconhecer que não me pedem que mantenha viva e fixa uma idéia, mas uma percepção. Não me pedem apenas que pense que existo, mas que o saiba, que tenha dêsse fato um conhecimento absoluto. Ora, eu sinto que isso é possível e que poderia produzir-se em mim, trazendo-me qualquer coisa de nôvo e importante. Descubro que mil pensamentos ou sombras de pensamentos, mil sensações, imagens e associações de idéias perfeitamente estranhas ao objeto do meu esfôrço me assaltam sem cessar e me desviam do esfôrço que faço. Por vêzes é o ponteiro que prende tôda a minha atenção e, ao olhá-lo, perco-me de vista. Por vêzes é o meu corpo, uma crispação da perna, um pequeno movimento na barriga que me faz deixar a agulha e ao mesmo tempo a minha própria pessoa. Por vêzes ainda creio ter feito parar o meu pequeno cinema interior, eliminando o mundo exterior, mas apercebo-me então que acabo de mergulhar numa espécie de sono do qual o ponteiro desapareceu, do qual eu próprio desapareci e durante o qual as imagens continuam a sobrepor-se umas às outras, assim como as sensações, as idéias, como que atrás de um véu, como num sonho que se desenvolve por conta própria enquanto durmo. Por vêzes, finalmente, numa fração de segundo, estou olhando êsse ponteiro, sou totalmente, plenamente. Mas, na mesma fração de segundo, felicito-me por tê-lo conseguido; se assim o posso dizer, o meu espírito aplaude, e imediatamente a minha inteligência, apossando-se da vitória para dela se congratular, com-promete-a irremediàvelmente. Finalmente, despeitado mas sobretudo esgotado, fujo à experiência com precipitação, pois parece-me que acabo de viver os minutos mais difíceis da minha existência, que acabo de ser privado de ar até o limite da resistência.

Como aquilo me pareceu longo! Ora, não se passaram mais de dois minutos e, em dois minutos, só tive uma verdadeira percepção de mim mesmo durante três ou quatro súbitas e imperceptíveis revelações.Eu devia portanto admitir que nós quase nunca estamos conscientes de nós mesmos e que quase nunca temos consciência da dificuldade de ser consciente.O estado de consciência, diziam-nos, é de início o estado do homem que sabe enfim que não está quase nunca consciente e que, portanto, aprende pouco a pouco quais são os obstáculos que se opõem, nêle próprio, aos esforços que faz. A luz daquele pequenino exercício sabem agora que um homem pode ler uma obra, por exemplo, aprovar, aborrecer-se, protestar ou entusiasmar-se, sem ter a mínima consciência do fato de que êle é e portanto sem que nada da leitura se dirija verdadeiramente a si mesmo. A sua leitura é um sonho acrescentado aos seus próprios sonhos, um fluxo no fluxo perpétuo do inconsciente. Pois a nossa verdadeira consciência pode estar -- e está quase sempre — completamente ausente de tudo o que fazemos, pensamos, queremos, imaginamos.

Compreendo então que há muito pouca diferença entre o estado em que estamos durante o sono e aquêle em que nos encontramos no estado de vigília comum, quando falamos, agi-mos etc. Os nossos sonhos tornaram-se invisíveis, como as es-trelas quando o dia nasce, mas continuam presentes e nós continuamos a viver sob a sua influência. Nós apenas adquirimos, após o despertar, uma atitude crítica para com as nossas próprias sensações, pensamentos mais bem coordenados, ações mais disciplinadas, maior vivacidade de impressão, de sentimentos, de desejos mas continuamos na não-consciência. Não se trata do verdadeiro despertar, mas do "sono desperto", e é nesse estado de "sono desperto" que se desenrola tôda a nossa vida. Ensinavam-nos que era possível despertar completamente, adquirir o estado de consciência de nós mesmos.

Nesse estado como o entrevi durante o exercício com o relógio, era-me possível ter, a respeito do funcionamento do meu pensamento, do desenrolar das imagens, idéias e sensações, dos sentimentos e dos desejos, um conhecimento objetivo. Nesse estado, eu podia tentar e desenvolver um esfôrço real para examinar, suspender de tempos em tempos e alterar êsse desenrolar. E êsse próprio esfôrço, diziam-me, criava em mim uma certa subsistência. Esse próprio esfôrço não chegava aqui ou ali. Bastava-lhe ser para que se criasse e acumulasse em mim a própria subsistência do meu ser. Era-me dito que poderia então, possuindo um ser fixo, alcançar a "consciência objetiva" e ter assim, não apenas de mim mesmo, mas dos outros homens, das coisas e do mundo inteiro, um conhecimento totalmente objetivo, um conhecimento absoluto.

Monsieur Gurdjieff . Ed. du Seuil, Paris, 1954.
 
 

                            III — A NARRATIVA DE RAYMOND ABELLIO

 

Quando, na atitude "natural" que é a da totalidade dos sêres existentes, eu "vejo" uma casa, a minha percepção é espontânea, é essa casa que eu percebo e não a minha própria percepção. Pelo contrário, na atitude "transcendental" é a minha própria percepção que é percebida. Mas essa percepção da percepção altera radicalmente o estado primitivo. O estado vivido, ingênuo a principio, perde a sua espontaneidade precisamente pelo fato de a nova reflexão tomar como objeto o que a principio era estudo, e não objeto, e de, entre os elementos da minha nova percepção, figurarem não apenas os da casa como casa, como ainda os da própria percepção como fluxo vivido. E o que importa essencialmente nessa "alteração" é que a visão concomitante que eu tenho, nesse estado bi-reflexivo, ou antes, reflexo-reflexixo, da casa que foi o meu motivo original, longe de estar perdida, afastada ou embrulhada por essa interposição da "minha" percepção segunda perante a "sua" percepção primária, encontra-se paradoxalmente intensificada, mais nítida, mais presente, mais carregada de realidade objetiva do que antes.

Achamo-nos aqui perante um fato injustificável para a pura análise especulativa: o da transfiguração da coisa coma fato de consciência, da sua transformação, como diremos depois, em "sôbre-coisa", de sua passagem do estado de ciência ao estado de conhecimento. Esse fato é geralmente desconhecido, embora seja o mais impressionante de tôda a experimentação fenomenológica real. Tôdas as dificuldades com que a fenomenologia vulgar esbarra, como, aliás tôdas as teorias clássicas do "conhecimento", residem no fato de elas considerarem o conjunto consciência-conhecimento (ou mais exatamente consciência-ciência) capaz de esgotar sõzinho a totalidade do vivido, quando na realidade seria necessário considerar a tríade conhecimento-consciência-ciência a única que permite um verdadeiro enraizamento ontológico da fenomenologia. E, decerto, nada pode tornar evidente essa transfiguração, exceto a experiência direta e pessoal do próprio fenomenologista. Mas ninguém pode pretender ter compreendido a verdadeira fenomenologia transcendental se não tiver praticado essa experiência com êxito e não tiver sido êle próprio "iluminado". Mesmo que fôsse o dialético mais sutil, o logístico mais hábil, aquêle que não a viveu, e que portanto não viu outras coisas sob a aparência das coisas, só pode fazer discurso sôbre a fenomenologia, mas não assumir uma atividade realmente fenomenológica. Tomemos um exemplo mais preciso. Tão longe quanto as minhas recordações podem ir, sempre soube distinguir as côres, o azul, o vermelho, o amarelo. A minha vista as via, tinha a experiência latente. Claro, o meu "ôlho" não fazia interrogações a respeito delas, e aliás como poderia fazer interrogações? A sua função é ver, não se ver na função de ver, mas o meu próprio cérebro estava como que adormecido, não era de forma nenhuma o ôlho do ôlho, mas um simples prolongamento dêsse órgão. Portanto, eu dizia simplesmente, e quase sem pensar: isto é um belo vermelho, um verde um pouco apagado, um branco brilhante.

Um dia, há alguns anos, ao passear pelas vinhas valdenses das encostas que dominam o lago Leman e que formam um dos mais belos recantos do mundo, tão belo mesmo e tão vasto que o "Eu", à fôrça de ali ser dilatado, se sente dissolvido e, bruscamente, se reapossa de si mesmo e se exalta, deu-se um súbito e para mim extraordinário acontecimento. O ocre da encosta abrupta, o azul do lago, o roxo dos montes de Sabóia, e ao fundo as geleiras resplandescentes do Grand-Combin, vira-os eu cem vêzes. Soube pela primeira vez que nunca os olhara. No entanto vivia ali há três meses. E, claro, desde o primeiro instante, aquela paisagem deslumbrara--me, mas o que em mim lhe respondia não era mais que uma exaltação confusa. Claro, o "Eu" do filósofo é mais forte que tôdas as paisagens. O sentimento angustiante de beleza não passa de um assenhoramento pelo "Eu", que se fortifica, da distância infinita que dela nos separa. Mas naquele dia, bruscamente, soube que eu próprio criava aquela paisagem, que ela nada era sem mim : "Sou eu que te vejo, e que me vejo a ver-te, e que, ao ver-me te faço". Este verdadeiro grito interior é o grito do demiurgo quando da "sua" criação do mundo. Não é apenas a suspensão de um "antigo" mundo mas a projeção de um "nôvo". E nesse momento, de fato, o mundo foi recriado. Nunca eu vira semelhantes côres. Eram cem vêzes mais intensas, mais matizadas, mais "vivas". Senti que acabava de adquirir o sentido das côres, que interpretava as côres, que nunca até ali vira realmente um quadro ou penetrara no universo da pintura. Mas soube igualmente que, por esse chamamento da minha consciência, por essa percepção da minha percepção, conseguira a chave dêsse mundo da transfiguração que não é outro mundo misterioso, mas o verdadeiro mundo, aquêle de que a "natureza" nos conserva exilados. Nada de comum, evidentemente, com a atençao. A transfiguração é completa, a atenção não. A transfiguração conhece-se na sua suficiência certa, a atenção tende para uma suficiência eventual. Não se pode dizer, evidentemente, que a atenção seja vazia. Pelo contrário, é não-vazia. Mas o não-vazio não é a plenitude.

Quando regressei à aldeia, nesse dia, as pessoas com quem cruzei estavam na sua maior parte "atentas" ao seu trabalho : no entanto tôdas me pareceram sonâmbulas.
 

Raymond ABELLIo: Cahiers du Cercle d'Études Métaphysiques. (Publicação interior — 1954).
 
                                      O Admirável Texto de Gustav Meyrinck

 

A chave que nos tornará mestres da natureza interior ficou enferrujada desde o dilúvio

Ela chama-se : velar.

Velar é tudo.

O homem está firmemente convencido de que vela; mas, na realidade, é apanhado numa rêde de sono e de sonho que êle próprio teceu. Quanto mais apertada é essa rêde, mais poderosamente reina o sono. Aquêles que estão presos nas suas malhas são os adormecidos que caminham através da vida como rebanhos de animais levados para o matadouro, indiferentes e sem pensamentos.

Os sonhadores vêem através das malhas um mundo quadriculado, só distinguem aberturas enganadoras, agem em conseqüência e não sabem que êsses quadros são apenas os fragmentos insensatos de um todo enorme. Esses sonhadores não são, como talvez o suponhas, os lunáticos e os poetas; são os trabalhadores, os sem-repouso do mundo, os possessos da loucura de agir. Assemelham-se a escaravelhos feios e laboriosos que se arrastam ao longo de um cano liso para nele mergulharem ao chegar lá em cima. Dizem que velam, mas aquilo que julgam uma vida não é na realidade senão um sonho, determinado antecipadamente nos mínimos pormenores e subtraído á influência da sua vontade.

Existiram e ainda existem alguns homens que souberam que sonhavam, os pioneiros que avançavam até aos baluartes atrás dos quais se esconde o eu eternamente desperto — videntes como Descartes, Schopenhauer e Kant. Mas êles não possuíam as armas necessárias para a tomada da fortaleza e o seu apêlo ao combate não acordou os adormecidos.

Velar é tudo.

O primeiro passo para êsse objetivo é tão simples que qualquer criança pode fazê-lo. Só aquêle que tem o espirito falsificado esqueceu como se caminha, e mantém-se paralisado sôbre os seus dois pés, pois não se quer privar das muletas que herdou dos seus antecessores.

Velar é tudo.

Vela em tudo o que fazes! Não te julgues já desperto. Não, tu dormes e sonhas.

Reúne tôdas as tuas fôrças e espalha um instante pelo teu corpo este sentimento : agora, eu velo !

Se o conseguires, reconhecerás imediatamente que o estado no qual te encontravas surge então como uma modôrra e um sono.O primeiro passo hesitante do longo, muito longo percurso que leva da servidão ao completo poder.

Desta forma avança, de despertar em despertar.

Não existe pensamento tormentoso que desta maneira não possas banir. Ele fica para trás e já não te pode atingir. Estendes-te sôbre êle como a copa de uma árvore se eleva por sôbre os ramos secos.

As dores afastam-se de ti como fôlhas mortas quando essa vigília se apossa igualmente do teu corpo.

Os banhos gelados dos brâmanes, as noites de vigília dos discípulos de Buda e dos ascetas cristãos, os suplícios dos faquires não são mais que os ritos estereotipados indicando que ali se erguia outrora o templo daqueles que se esforçavam por velar.

Lê as Escrituras Sagradas de todos os povos da Terra. Em cada uma delas passa como um fio vermelho a ciência dissimulada da vigília. É a escada de Jacó, que combate tôda a "noite" com o anjo do Senhor, até que chegue o "dia" e obtenha a vitória.

Deves subir, um após outro, os degraus do despertar, se queres vencer a morte.

O degrau inferior já se chama: gênio.

Como devemos chamar os degraus superiores? Ficam desconhecidos da multidão e são tidos como lendas.

A história de Tróia foi considerada uma lenda, até que final-mente um homem arranjou coragem de investigar por si mesmo.

Sôbre êsse caminho da vigília, o primeiro inimigo que encontrarás será o teu próprio corpo. Ele lutará contigo até o primeiro cantar do galo. Mas se vislumbrares a luz da vigília eterna que te afaste dos sonâmbulos que supõem ser homens e ignoram que são deuses adormecidos, então o sono do teu corpo desaparecerá também e o Universo submeter-se-á a ti.

Então poderás operar milagres, se quiseres, e já não estarás reduzido, coma um humilde escravo, a esperar que um cruel e falso deus seja suficientemente amável para te cumular de pre-sentes ou te cortar a cabeça.

Há evidentemente a felicidade do bom cão-fiel: servir um amo. Ela deixam de existir para ti — mas sê franco para contigo mesmo: gostarias, mesmo agora, de trocar o lugar com o teu cão?

Não te deixes apavorar pelo medo de não atingir o objetivo nesta vida. Aquêle que descobriu este caminho regressa sempre ao mundo com uma maturidade interior que lhe torna possível a continuação do seu trabalho. Ele nasce como "gênio".

O caminho que te mostro está semeado de acontecimentos estranhos : mortos que conheceste hão de erguer-se e falar-te ! São apenas imagens. Silhuetas luminosas aparecer-te-ão para te abençoar. São apenas imagens, formas exaltadas pelo teu corpo que, sob influência da tua vontade transformada, morrerá de uma morte mágica e se tornará espírito, tal como o gala, atingido pelo fogo, se dissolve em vapor.

Quando tiveres abandonado em ti o cadáver é que então poderás dizer : agora o sono afastou-se de mim para sempre.

Então dar-se-á o milagre em que os homens não acreditam — porque, enganados pelos seus sentidos, não percebem que matéria e fôrça são a mesma coisa -- nem compreendem, esse milagre que, mesmo se o enterrarem, não haverá cadáver no caixão.

Só então poderás diferenciar o que é realidade ou aparência. Aquêle que encontrares só poderá ser um dos que seguiram o caminho antes de ti.

Todos os outros são sombras.

Até ali tu não sabes se és a criatura mais feliz ou a mais infeliz. Mas nada receies. Nem um sequer dos que seguiram pelo caminho da vigília, mesmo se alguma vez se perdeu, jamais foi abandonado pelos seus guias.

Quero dar-te um sinal pelo qual poderás reconhecer se uma aparição é realidade ou miragem : se ela se aproxima de ti, se a tua consciência se perturba, se as coisas do mundo exterior são vagas ou desaparecem, desconfia.

Acautela-te ! A aparição não passa de uma parte de ti mesmo. Se não a compreendes, é apenas um espectro sem consistência, um gatuno que consome uma parte da tua vida.

Os gatunos que adquirem a fôrça da alma são piores do que os gatunos do mundo. Atraem-te como fogos-fátuos nos pântanos de uma esperança enganadora, para te deixarem só nas trevas e desaparecerem para sempre.

Não te deixes cegar por nenhum milagre que êles pareçam fazer por ti, por nenhum nome sagrado que se dêem, por nenhuma profecia que exprimam, nem mesmo se esta se realizar; êles são os teus inimigos mortais, expulsos do inferno do teu próprio corpo e com os quais tu lutas pelo domínio.

Sabe que as fôrças maravilhosas que êles possuem são as tuas próprias — desviadas por eles para te manterem na escravatura. Eles não podem viver fora da tua vida, mas se os venceres ficarão aniquilados, como ferramentas mudas e dóceis que poderás empregar segundo as tuas necessidades.

Inúmeras são as vítimas que êles fizeram entre os homens. Lê a história dos visionários e dos sectários e compreenderás que o caminho que segues está semeado de crânios.

Inconscientemente, a humanidade ergueu contra êles um muro: o materialismo. Esse muro é uma defesa infalível, é uma imagem do corpo mas é também o muro de uma prisão que dissimula a vista.

Atualmente estão dispersos e a fênix da vida interior. ressuscita das cinzas nas quais estêve deitada durante muito tempo, como morta, mas os abutres de outro mundo também começam a bater as asas. E por isso que deves tomar cuidado. A balança sôbre a qual deporás a tua consciência mostrar-te-á quando podes ter confiança nessas aparições. Quanto mais desperta ela estiver, mais se inclinará a teu favor.

Se um guia, um irmão de outro mundo espiritual te quer aparecer, deve poder fazê-lo sem despojar a tua consciência. Podes pousar a mão sôbre êle como Tomé, o incrédulo.

Seria fácil evitar as aparições e seus perigos. Basta conduzires-te como um homem vulgar. Mas que ganhas com isso? Continuas a ser um prisioneiro na jaula do teu corpo até que o carrasco "Morte" te conduza ao cadafalso.

O desejo dos mortais de verem os sêres sobrenaturais é um grito que desperta até os fantasmas do inferno, porque semelhante desejo não é puro; — porque é mais avidez do que desejo, porque quer "tomar" de qualquer maneira em vez de gritar para aprender a "dar".

Todos aquêles que consideram a Terra como uma prisão, tôdas as pessoas piedosas que imploram a libertação evocam sem se aperceberem o mundo dos espectros. Faze-o também tu mesmo. Mas conscientemente.

Para aquêles que o fazem inconscientemente existirá uma mão invisível que os possa retirar do pântano onde se atolam? Eu não o acredito. Quando sôbre o caminho do despertar atravessares o reino dos espectros, reconhecerás pouco a pouco que êles são simplesmente pensamentos que de súbito poderás ver com os teus próprios olhos . Eis por que te são estranhos e parecem ser criaturas, pois a linguagem das formas é diferente da do cérebro.

Então chegou o momento em que a transformação se dá : os homens que te rodeiam transformar-se-ão em espectros. Todos aquêles que amaste serão, de súbito, larvas. Mesmo o teu próprio corpo.

Não se pode imaginar mais terrível solidão que a do peregrino no deserto, e quem não sabe encontrar aí a fonte da vida morre de sêde.

Tudo o que aqui te digo se encontra nos livros dos homens piedosos de todos os povos : a vinda de um nôvo reino, a vigília, a vitória sôbre o corpo e a solidão.

E no entanto um abismo intransponível nos separa dessas pessoas piedosas : elas supõem que se aproxima o dia em que os bons entrarão no paraíso e os maus serão atirados para o inferno. Nós sabemos que um tempo virá em que muitos despertarão e serão separados dos adormecidos que não podem compreender o que significa a palavra vigília. Nós sabemos que não existe o bom e o mau, mas apenas o exato e o falso. Eles crêem que velar significa manter os seus sentidos lúcidos e os olhos abertos durante a noite, de forma que o homem possa fazer as suas orações. Nós sabemos que a vigília é o despertar do eu imortal e que a insônia do corpo é uma conseqüência natural. Eles crêem que o corpo deve ser descurado e desprezado porque é pecador. Nós sabemos que não existe pecado; o corpo é o começo da nossa obra e viemos à Terra para transformá-lo em espírito. Eles crêem que deveríamos viver na solidão com o nosso corpo para purificar o espirito. Nós sabemos que o nosso espírito deve primeiramente isolar-se para transfigurar o corpo.

Só a ti cabe a escolha do caminho a tomar: ou o nosso ou o deles. Deves agir segundo a tua própria vontade.

Não tenho o direito de te aconselhar. É mais salutar colhêr segundo a tua própria decisão um fruto amargo de uma árvore, do que ver pendurar um fruto doce aconselhado por outrem.

Mas não faças como muitos que sabem que está escrito : examinai tudo e só conservai o melhor. E preciso ir, nada examinar e agarrar a primeira coisa que aparecer.

Extraido do livro O Despertar  dos Mágicos de L.Pauwels e J.Bergier -  Difusão Européia  do Livro  -   1959
 
 

 

 

 
 
 

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