O Dia do Juizo Final

Ragnarok

A convicção de que o universo todo caminha para um fim  é antiga e é, de fato, parte importante da tradição ocidental. Um quadro particularmente dramático do fim do mundo é-nos revelado pelos mitos propalados entre os povos escandinavos.A mitologia escandinava é um reflexo do rude ambiente subpolar em que os audazes nórdicos viviam. E um mundo em que homens e mulheres desempenham papéis secundários e no qual o drama se desenrola num conflito entre deuses e gigantes, conflito esse no qual os deuses aparecem em franca desvantagem.

Os "gigantes de gelo" (os longos e cruéis invernos escandinavos) são invencíveis: afinal de contas, e até dentro da sitiada fortaleza dos próprios deuses, Loki (o deus do fogo, tão essencial num clima nórdico) é tão cheio de truques e traiçoeiro quanto o próprio fogo. No final aparece Ragnarok, que significa "O destino fatal dos deuses". (Richard Wagner tornou este termo mais conhecido como Gõtterdãmmerung, ou "crepúsculo dos deuses", em sua ópera assim denominada.)

Ragnarok é a batalha final decisiva entre os deuses e seus inimigos. Seguindo os deuses vêm os heróis do Valhala que, na Terra, tinham morrido em combate. Seus oponentes são os gigantes e monstros de natureza cruel, liderados pelo renegado Loki. Um por um os deuses caem, embora os monstros e gigantes — inclusive Loki — também morram. Na luta, a Terra e o universo perecem. O Sol e a Lua são engolidos pelos lobos que os perseguiam desde a criação. A Terra pega fogo, arde e se fragmenta, num holocausto universal. Quase como um detalhe insignificante da grande batalha, a vida e a humanidade são extintas.
 
E esse, dramaticamente, deveria ser o fim — mas não é.De algum modo, uma segunda geração de deuses sobrevive; outro Sol e outra Lua passam a existir; uma nova Terra surge: um novo par humano vem à existência. Um anticlímax feliz se opõe à grande tragédia de destruição. Como isto pôde acontecer?
A lenda de Ragnarok, como a conhecemos hoje, é tomada dos escritos de um historiador islandês, Snorri Sturluson (1179-1241). Naquela época, a Islândia já tinha sido cristianizada e a lenda do fim dos deuses parece ter sofrido influência cristã. Havia, afinal de contas, lendas cristãs sobre a morte e regeneração do universo que há muito precediam a lenda islandesa de Ragnarok; por sua vez, as lendas cristãs eram influenciadas pelas dos judeus.

Expectativas Messiânicas

Enquanto o reino davídico de Judá existiu, antes de 586 a.C., os judeus estavam convictos de que Deus era o divino juiz que atribuía recompensas e punições aos indivíduos de acordo com seus méritos. As recompensas e punições eram aplicadas nesta vida. Esta certeza foi anulada.

Após o reino de Judá ter sido arruinado pelos caldeus sob Nabucodonosor, seu Templo destruído e muitos dos judeus levados para o exílio em Babilônia, começou a crescer, entre os exilados, um desejo da volta do reino e de um rei da velha dinastia de Davi. Na medida em que tais desejos, expressos abertamente, representavam traição para com os novos dirigentes não judeus, surgiu o hábito de apenas fazer-se alusões à volta do rei. Uns falavam do "Messias"; quer dizer, "'o ungido", já que o rei era ungido com óleo como parte do ritual de entronização.

A imagem do rei que retornava era idealizada como algo que prenunciava uma maravilhosa época dourada e, realmente, as recompensas da virtude eram removidas do presente (onde manifestamente não estavam ocorrendo) e transferidas para um futuro dourado.

Alguns versos descrevendo essa época dourada foram incluídos no livro de Isaías, que propagou as palavras de um profeta já atuante em 740 a.C. Os versos propriamente ditos provavelmente datam de um período posterior. Obviamente, para introduzir esta idade de ouro, os justos dentre a população deveriam ser elevados ao poder e os maus destituídos do poder ou mesmo destruídos. Assim:

"E ele (Deus) julgará as nações e convencerá de erro a muitos povos: os quais de suas espadas forjarão relhas de arados, e de suas lanças, foices; uma nação não levantará a espada contra outra nação, nem daí por diante se adestrarão mais para a guerra" (Isa. 2,4).(Nas citações bíblicas que ocorrem nesta obra foi adotado o texto da tradução da Vulgata pelo Matos Soares — 78 edição das Edições Paulinas (N. da Editora)

.... mas julgará os pobres com justiça, e tomará com eqüidade a defesa dos humildes da terra, e ferirá a terra com a vara da sua boca, e matará o ímpio com o sopro dos seus lábios" (Isa. 11,4).

O tempo passou e os judeus retornaram do exílio, mas isso não trouxe alívio. Havia hostilidade de seus vizinhos não judeus mais próximos e eles se sentiam indefesos em face do poder avassalador dos persas, então dominadores do país. Os profetas judeus tornaram-se mais incisivos, portanto, em seus escritos sobre a idade dourada vindoura e, particularmente, sobre a condenação que aguardava seus inimigos.

O profeta Joel, escrevendo ao redor de 400 a.C., disse: "Ai, ai, ai! que dia (terrível)! porque o Senhor está perto e virá como assolaçãoda parte do Todo-Poderoso" (Joel 1,15).

É o quadro da aproximação de um tempo específico quando Deus julgará o mundo inteiro: "Juntarei todas as gentes e conduzi-las-ei ao vale de Josafá, e ali entrarei com elas em juízo acerca de Israel, meu povo e minha herança ..."(Joel 3,2).

Esta foi a primeira expressão literária de um "Dia do Juízo Final", tempo em que Deus poria fim à presente situação do mundo. Tal noção se tornou mais forte e extremada no século 11 a.C., quando os selêucidas, dirigentes gregos que haviam sucedido na dominação persa depois de Alexandre Magno, tentaram suprimir o judaísmo. Os judeus, sob os macabeus, se rebelaram, e o Livro de Daniel foi escrito para apoiar a rebelião e prometer um futuro brilhante.
O livro baseava-se, parcialmente, em antigas tradições relativas a um profeta, Daniel. Da boca de Daniel vieram descrições de visões apocalípticas (Apocalíptico vem do grego e significa "revelação". Assim, qualquer coisa que é apocalíptica revela um futuro normalmente oculto aos olhos dos homens.). Deus (chamado como "o Ancião dos dias") faz sua aparição para punir os perversos:

"Eu estava, pois, observando estas coisas durante a visão noturna e eis que vi um (personagem) que parecia o Filho do homem, que vinha com as nuvens do céu e que chegou até ao Ancião dos (muitos) dias, e o apresentaram diante dele. E ele deu-lhe o poder, a honra e o reino; e todos os povos, tribos e línguas o serviram; o seu poder é um poder eterno que lhe não será tirado; e o seu reino não será jamais destruído" (Dan. 7,13-14).

Este "ser semelhante ao Filho do homem" se refere a alguém de forma humana, em contraposição aos inimigos de Judá, que haviam sido previamente representados sob a forma de diversas feras. A forma humana pode ser interpretada como representando Judá em abstrato, ou o Messias em particular.

A rebelião macabéia foi bem sucedida e um reino judeu restabelecido, mas isto também não trouxe a idade de ouro. Entretanto, os escritos proféticos mantiveram vivas as expectativas dos judeus durante os dois séculos seguintes: o Dia do Juízo Final permaneceu sempre como quase iminente; o Messias estava sempre para chegar; o reino da justiça estava sempre a ponto de ser estabelecido.

Os romanos sucederam os macabeus e, no reinado do imperador Tibério, houve um pregador muito popular na Judéia, chamado João Batista, cuja mensagem continha a seguinte. temática: "Fazei penitência porque está próximo o reino dos céus" (Mat. 3,2).

Com a expectativa universal assim constantemente reforçada, qualquer um que se proclamasse o Messias certamente teria seguidores; sob os romanos houve vários pretendentes que, politicamente, conduziram a nada. Dentre esses, contudo, figurava Jesus de Nazaré, a quem alguns humildes judeus seguiram e se mantiveram fiéis mesmo depois de Jesus ter sido crucificado sem que uma mão se erguesse para salvá-lo. Aqueles que acreditaram em Jesus como o Messias poderiam ter sido chamados de "messiânicos". Todavia, a língua dos seguidores de Jesus veio a ser o grego, na medida em que mais e mais gentios se convertiam e, em grego, a palavra para Messias é "Christos". Assim os seguidores de Jesus passaram a ser denominados cristãos

O sucesso inicial na conversão de gentios deveu-se às pregações missionárias carismáticas de Paulo de Tarso (o apóstolo Paulo) e, começando com ele, o cristianismo iniciou uma corrida de expansão que trouxe para a sua bandeira primeiro Roma, depois a Europa, depois grande parte do mundo.

Os primeiros cristãos criam que a chegada de Jesus o Messias (isto é "Jesus Cristo") significava que o Dia do Juízo Final estava prestes a vir. Ao próprio Jesus são atribuídas predições do iminente fim do mundo:

"Mas, naqueles dias, depois daquela tribulação, o Sol se escurecerá, a Lua não dará o seu resplendor; e as estrelas do céu cairão e se comoverão as potestades que estão nos céus. Então verão o Filho do homem vir sobre as nuvens com grande poder e glória... Em verdade vos digo que não passará esta geração, sem que se cumpram todas estas coisas. O céu e a terra passarão... A respeito, porém, daquele dia ou daquela hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem mesmo o Filho, mas só o Pai" (Mar. 13,24-27, 30-32).

Em aproximadamente 50 d.C., vinte anos após a morte de Jesus, o apóstolo Paulo ainda aguardava o Dia do Juízo Final de um momento para o outro:

"Nós, pois, vos dizemos isto, segundo a palavra do Senhor, que nós, os que estamos vivos, que fomos reservados para a vinda do Senhor, não passaremos adiante daqueles que adormeceram. Porque o mesmo Senhor, ao manto (de Deus), à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, descerá do céu, e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que vivemos, os que ficamos, seremos arrebatados juntamente com eles sobre as nuvens ao encontro de Cristo nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor. Portanto, consolai-vos uns aos outros com estas palavras. Quanto ao tempo e ao momento (desta segunda vinda de Jesus Cristo) não tendes necessidade, irmãos, que vos escrevamos. Porque vós sabeis muito bem que o dia do Senhor virá como um ladrão durante a noite" (I Tess. 4,15, 5,2).

Paulo, como Jesus, fazia notar que o Dia do Juízo Final viria logo, mas tinha o cuidado de não estabelecer uma data exata. O que ocorreu é que o Dia do Juízo Final não veio; os maus não foram punidos, o reino ideal não foi estabelecido, e aqueles que acreditavam que Jesus era o Messias tiveram que se contentar com a crença de que o Messias teria que vir uma segunda vez (a Parúsia ou "Segunda Vinda") e que então tudo que havia sido previsto ocorreria.

Os cristãos foram perseguidos em Roma, sob Nero e, em maior escala, mais tarde, sob o imperador Domiciano. Exatamente como a perseguição selêucida tinha gerado as promessas apocalípticas do Livro de Daniel nos tempos do Velho Testamento, assim as perseguições de Domiciano originaram as promessas apocalípticas do Livro do Apocalipse nos tempos do Novo Testamento. O Apocalipse foi provavelmente escrito em 95 d.C., durante o reinado de Domiciano.

Neste livro, confusa e detalhadamente, o Dia do Juízo Final é descrito. Narra-se uma batalha final entre todas as forças do mal e as do bem, num lugar chamado Har-Magedon, contudo os detalhes não são claros (Apoc. 16:14-16). Finalmente, porém, "E vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra desapareceram ..." (Apoc. 21,1).

E bem possível, portanto, que, qualquer que tenha sido a origem do mito escandinavo de Ragnarok, a versão que chegou a nós deva algo àquela batalha de Har-Magedon no Apocalipse, com sua visão de um universo regenerado. E o Apocalipse, por sua vez, deve muito ao Livro de Daniel.

 

 

Milenarismo

 

O Livro do Apocalipse introduziu algo novo:

"Vi, então, descer do céu um anjo que tinha a chave do abismo e uma grande cadeia na sua mão. E prendeu o dragão, a serpente antiga, que é o demônio e Satanás, e amarrou-o por mil anos; meteu-o no abismo, e fechou-o e pôs selo sobre ele, para que já não seduza mais as nações, até se completarem os mil anos; e depois disto deve ser solto por um pouco de tempo" (Apoc. 20,1-3).

Por que o demônio deva ter sua ação cerceada durante mil anos ou "milênio" e então solto "por um pouco de tempo" não está claro, mas pelo menos aliviou a aflição daqueles que criam que o Dia do Juízo Final se aproximava. Poder-se-ia sempre dizer que o Messias tinha vindo e que o demônio estava aprisionado, significando que o cristianismo podia resistir — mas a verdadeira batalha final e o verdadeiro fim viriam mil anos mais tarde.( De fato, é devido à prisão milenar de Satã que o termo "milênio" chegou a ser aplicado a um período de justiça ideal e felicidade futuras, freqüentemente usado ironicamente como algo que nunca acontecerá.)

Parecia natural supor-se que os mil anos tinham começado com o nascimento de Jesus, por isso no ano 1000 havia um clima de nervosa apreensão, mas passou — e o mundo não acabou.

As palavras de Daniel e do Apocalipse eram tão elípticas e obscuras, e a necessidade de crer tão grande, que permaneceu sempre possível uma releitura e reavaliação das vagas predições para levantamento de novas datas do Dia do Juízo Final. Até grandes cientistas, tais como Isaac Newton e John Napier, ocuparam-se com isso.Chamam-se "milenaristas" ou "milenarianos" aqueles que ten-taram calcular quando os cruciais mil anos se iniciariam e quando terminariam. Podem também ser chamados de "quiliastas", da palavra grega para "mil anos". Por estranho que pareça, o milenarismo, apesar dos repetidos desapontamentos, está agora mais fortalecido que nunca.

O movimento atual começou com William Miller (1782-1849), um oficial de exército que lutou na Guerra de 1812. Até então um cético, após a guerra ele se transformou no que hoje denominamos um cristão "que nasceu de novo". Começou com o estudo de Daniel e do Apocalipse e concluiu que a Parusia ocorreria em 21 de março de 1844. Apoiado, para tanto, em diversos cálculos por ele mesmo realizados, predisse que o mundo terminaria em chamas, segundo o modelo das lúgubres descrições do Livro do Apocalipse.

Teve por seguidores umas 100.000 pessoas, muitas das quais, no dia indicado, tendo vendido seus bens materiais, se reuniram na en-costa de uma colina para serem levadas para o alto ao encontro com Cristo. O dia transcorreu sem incidentes; Miller refez seus cálculos e estabeleceu 22 de outubro de 1844 como o novo dia — o qual também passou normalmente. Quando Miller morreu, em 1849, o Universo ainda estava em pleno funcionamento.

Entretanto, muitos de seus seguidores não se desencorajaram. Interpretaram os livros bíblicos apocalípticos de maneira que os cálculos de Miller indicassem o início de algum processo celestial ainda invisível à consciência terrena. Haveria ainda um outro "milênio" de espera e a real Parusia, ou "Segunda Vinda" de Jesus, foi postergada mais uma vez — porém, como sempre, para um futuro não tão distante.

Assim foi fundado o movimento adventista, que se subdividiu em várias seitas diferentes, incluindo os Adventistas do Sétimo Dia, que retornaram a costumes do Velho Testamento como o guardar o sábado (o sétimo dia).

Um dos que adotou as crenças adventistas foi Charles Taze Russell (1852-1916) que, em 1879, fundou uma organização que veio a se chamar Testemunhas de Jeová. Russell esperava a Parusia de um momento para o outro e predisse várias diferentes datas para isso, tal como Miller, decepcionando-se a cada vez. Morreu durante a Primeira Guerra Mundial, a qual deve ter-lhe parecido ser o começo das batalhas finais descritas no Apocalipse mas novamente o Advento não veio.

O movimento continuou a florescer, contudo, com Joseph Franklin Rutherford (1869-1942). Ele aguardava a Parusia com o empolgante slogan "Milhões vivendo agora jamais morrerão". Ele mesmo morreu durante a Segunda Guerra Mundial que, mais uma vez, deve ter-lhe parecido ser o início das batalhas finais descritas no Apocalipse — mas novamente o Advento não se seguiu.

No entanto, o movimento floresce de qualquer forma e, agora, alega agregar mais de 1 milhão de fiéis no mundo todo.
 
 
Extraido  do livro Escolha a Catastrofe de Isaac Asimov    ---   Edições Melhoramentos   ---   1979
 
 
 

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