A Deusa das Neves



Para os alpinistas ambiciosos , os altos picos da cordilheira dos Andes sempre se constituíram num desafio à
coragem e perícia dos escaladores e um convite à aventura. Foram estes os motivos que levaram os japoneses
Joshifuma Takeda e Iukishuga Hariuchi a virem para o Ocidente em busca das emoções da conquista de
montanhas invioláveis até mesmo para o condor , a ave da cordilheira que mais alto voa.

Eles  conheciam os relatos por outros andinistas sobre as dificuldades. Obstáculos que exigiriam uma técnica
apurada para escalar montes que atingem 6 e 7 mil metros de altitude como os que existem na cordilheira Real
que avança desde a Bolívia e estende-se por todo o oeste peruano . Aí estão os grandes monarcas do Peru,
desafiadores e temíveis , como os vulcões Misti , Chacani, Pichu-Pichu e Coropuna, este tão alto quanto o
Aconcágua   ---   o Teto das Américas   ---   que alcança 7.040 metros sobre o nível do mar . todos coroados
por imensos mantos de neve eterna e geleiras que descem pelos seus flancos  em direção aos estreitos vales e
que tornam sua escalada ainda mais exigente e emocionante.

Antes  de movimentare seus acampamentos , os japoneses fizeram um vôo de reconhecimento. Enquanto
sobrevoavam as cordilheiras , levantando  em mapas os caminhos mais acessíveis  para a escalada , iam
fotografando os abismos , penedos , cornijas e encostas. Mais tarde , escolheram um dos dificeis picos ao lado do
Coropuna para conquista-lo e registrar a façanha no livro de ouro dos alpinistas, pois essa culminância andina
ainda não tinha sido palmilhada por pés humanos. Os japoneses conseguiram sucesso e regressaram para suas
casas. Revelaram os filmes feitos e descobriram , surpresos, que sobre um dos cumes , a mais de  6 mil metros de
altitude , haviam documentado a existência de uma cidadela de muralhas inexpugnáveis. As construções pareciam
suspensas na beira do abismo , igual a cidadela de Machu Pichu, no vale do Urubambo , descoberta por Hiram
Birgham no começo do século.

Levadas para o jornal Asahi , do Japão , este publicou as fotos dos dois alpinistas , junto com um texto que
falava de uma nova cidade perdida dos incas encontrada por acaso. O periódico citava o inexplorado cume do
Pichu-Pichu como o local da descoberta segundo descrição  feita pelos fotografos. A noticia espalhou-se pelo
mundo , fazendo com que uma onda de excitação percorresse  arqueólogos , escaladores , aventureiros e,
sobretudo, despertasse a cobiça dos huaqueiros como são conhecidos no Peru os que se dedicam à pilhagem de
tesouros quase sempre existentes nestes achados espetaculares.

Os cientistas mostravam-se surpresos e incrédulos: Machu Pichu foi construída, depois de um trabalho que
desafia toda a técnica arquitetônica conhecida , numa altura de 2.600 metros. As muralhas fotografadas pelos
japoneses, no entanto , ao se aceitar sua localização no Pico Pichu-Pichu, deveria estar a mais de 5 mil metros
de altitude . Simone Waisnbard, autora do livro Tiahuanaco, 10.000 anos de Enigmas Incas, que relata em
sua obra como se processou esta descoberta , encontrava-se em Lima  quando as fotos foram divulgadas . Como
aconteceu com os cientistas do Peru, Waibard correu para verificar a documentação que havia chegado a uma
instituição arqueológica peruana , mandada pelos dois alpinistas . Nuvens que cobriam o monte dificultavam a
vegetação . Ao serem examinadas mais cuidadosamente , foi possível distinguir com clareza uma pirâmide
megalítica comdegraus escalonados e voltados para os declives vertiginosos da cratera do vulcão em repouso.

Para constatar o achado , organizou-se uma expedição para tomar de assalto o Pichu-Pichu , apesar dos
esforços sobre-humanos que essa tarefa exigia . Nada foi encontrado, porém , Simone Waisbard conta que o
diretor do museu da cidade de Arequipa , próxima  ao local indicado da descoberta , voou com o fotografo
Carlos Zarate Sandoval , num velho Stinson Fawcett , por sobre a cratera e os flancos do vulcão adormecido ,
num dia de muito sol e pouca névoa em torno dos altos picos , retornando desconsolados : também nada tinham
visto.
 

Soube-se depois que os japoneses enganaram-se de cume ; não era no Pichu-Pichu mas sim no Coropuna ,
local onde as tradições incaicas situam um magnifico templo do Sol que as fotos tinham sido feitas . Esta nova
localização , contudo , também seria desmentida a seguir pelo acaso .

Em 1963   ---   Simone Waisbard    quem relata o caso em seu livro    ---   alguns andinistas subiram ao
Coronado Grande , nas redondezas daqueles outros montes , para colocarem a efígie de San Martin de porras ,
santo peruano , no ponto mais alto da montanha . Durante a subida , os peregrinos começaram a avistar
sinalizações estranhas , gravadas nas rochas que emergiam das duras capas de gelo. Cinco dos andinistas , ao
cabo de algumas horas , deixaram num ponto abrigado das montanhas os companheiros de peregrinação que
demonstravam não ter mais forças para completar a escalada e incumbiram-se de prosseguir a piedosa missão de
conduzir a efígie do santo ao seu destino.

Enfrentando dificuldades sem conta e mal podendo respirar devio a extrema rarefação do ar nessa grande altitude
, ao procurar o melhor caminho para conquistar o cume , eles observaram que haviam outras figuras geométricas ,
igualmente gravadas m pontas de rochas que se salientavam de uma compacta lamina de gelo e que pareciam ser
indicações para se seguir adiante, pois este era , realmente, o melhor caminho. Intrigados , constataram que a
vereda mais segura em direção ao alto era a que os sinais pareciam indicar.

Estes desenhos repetiram-se em outras pontas de rochas , na medida em que subiam , nas cotas de 4.790 metros
e de vinte em vinte metros. Ao atingir os 5.350 metros , eles não puderam prosseguir pelo caminho assinalado e
bem mais suave para a escalada: houve um desmoronamento que bloqueou a senda, evidentemente provocado
pelos frequentes terremotos que abalam a região e sacodem estes gigantes da cordilheira.

Dando uma grande volta para transpor o obstáculo, os escaladores retomaram o mesmo caminho , um pouco
acima . Repentinamente , encontraram-se defronte a uma escada de lajes trabalhadas na rocha viva, com largura
de 2 metros . Compreenderam que estavam no limiar de uma grande descoberta, ou então , que uma surpresa os
aguardava  mais acima. Movidos por um súbito entusiasmo, prosseguiram e deram com uma pascana ,
denominação indígena dada a um lugar para repouso e abrigo nas montanhas . Havia , no mesmo lugar, uma pirka
ou circulo de pedras empilhadas , erguidas pelos índios em louvor aos espíritos das montanhas . Carlos Zarate , o
fotografo que voou com o diretor do museu  de Arequipa e que participava desta outra expedição , teve a
intuição de enfiar uma sonda no centro da pirka para ver qual a sua profundidade, pois suspeitava que ela emergia
de uma cova muito profunda e subia acima da superfície . Poderia ser um túmulo. A sonda penetrou como ele
esperava, mostrando não ter atingido o fundo . Os andinistas começaram a escavar o lugar , iniciando pela
demolição da pirka e removendo suas pedras da superfície. Em pouco tempo encontraram um túmulo inca ,
repleto de cerâmicas , objetos de cobre e ouro , tecidos , fragmentos de conchas e madeira trabalhada com
entalhes de baixo relevo.
 
 
Os jornais , mais tarde, encarregaram-se de divulgar os outros achados feitos pelos escaladores. Estes não
tinham ainda se refeito da surpresa causada pela descoberta do túnel pré-colombiano naquelas alturas   ---   o
que fez com que se esquecessem das canseiras   ---   quando , olhando para o alto , viram um mirante de
sentinelas . Indo até ele , verificaram  que o posto permitia controlar todas as passagens ou veredas que levavam
ao lugar. Presumiram que se encontravam no umbral de uma nova descoberta ainda mais importante.

Um posto de sentinelas só podia significar que deveria existir uma cidade ou uma construção importante. Subindo
, a expedição deu com um passadiço largo , com 7 metros de comprimento e cruzado por grandes portadas de
pedra trabalhada . Estupefatos , olharam em redor e sentiram desolação. A cidadela em que penetravam estava
recoberta de cinzas vulcânicas. Era uma pequena Pompéia dos Andes  e eles compreenderam que sob suas
botas seguramente estariam enterrados homens , mulheres e crianças que deviam estar naquelas alturas quando
foram surpreendidos pelo súbito despertar do vulcão. Lembram-se que a região, ao longo dos anos , sempre foi
sacudida por violentas erupções.

Os andinistas resolveram erguer acampamento no lugar para continuar fazendo escavações. Trabalhando com
suas picaretas de escaladores , abriram grossas chapas de gelo e romperam as crostas de lava para para
encontrar uma entrada. Foi assim que deram com o mausoléu da cidadela . Em seu interior, os compartimentos
construídos com pedras alinhadas, segundo a tradicional engenharia incaica e que formavam as habitações para
guardar múmias, tinham resistido à catástrofe. Eles avistaram em seu interior não só as múmias como uma
infinidade de objetos preciosos que estavam com elas e que os focos de suas lanternas iam revelando. Duante um
período relativamente
longo eles se dedicaram a inventariar o achado.

A bagagem funerária das múmias era das mais variadas e em grande quantidade. Encontrarm oferendas feitas aos
mortos para satisfazer sua alma na vida além-túmulo, como folhas de coca e preparados de lipta   ---   uma
mistura de cal virgem e cinzas da raiz da quinoa  que permitem separar a cocaína das folhas   ---   vasos com
alimentos secos e outros destinados a conter fumo e bebidas.   A descoberta mais surpreendente ainda estava
para ser feita.

 Examinando as múmias , seguiram pelos vários compartimentos da necrópole até sair num local onde encontraram
quarenta crânios humanos que se alinhavam em circulo ao redor de um ídolo de ouro puro da Deusa das Neves,
para a qual tinham sido exigidos sacrifícios humanos , como vieram a saber mais tarde.

Os arqueólogos do museu de Arequipa estimam que a Deusa das Neves tenha mais de 3 mil anos de existência.
Segundo eles, seu culto parece ter se originado nos rituais dos antigos povos kollas e puquinas, os quais
antecederam aos incas no altiplano.
 

O encontro feito pelos expedicionários do Coronado Grande , porém, reavivou o interesse sobre a tradição da
deusa e novas pesquisas começaram a ser feitas, principalmente devido ao fato de ter sido encontrada uma de
suas mais antigas imagens, Essas pesquisas concentraram-se na coleta de informações através da tradição oral
transmitida de geração em geração entre os yatiris ou chefes feiticeiros de clãs dos índios. Soube-se que
naquele tempos remotos, todos os anos , em datas fixadas pelos sábios amautas que detinham vastos
conhecimentos e sabiam ler os astros , organizavam-se sacrifícios humanos.
 

Nessas ocasiões , o povo ataviava-se com suas melhores vestes e jías e integrava uma longa procissão que partia
do sopé daquela montanha dirigindo-se lentamente ao seu cume, a mais de 5 mil metros de altura. Como é de se
supor , eles faziam a subida mascando a coca para aliviar a fadiga da ascensão e criar um clima de euforia que os
hinos religiosos entoados pela multidão tornavam ainda mais estimulantes . Eles carregavam as suas oferendas
para serem entregues ao vulcão e a Deusa das Neves , rogando aos grandes espíritos da montanha e a
divindade branca para aceitarem os presentes e retribuir com os favores de melhores colheitas , proteção contra
ataques de invasores e, sobretudo , dando-lhe felicidade.

Vasos de cerâmica foram examinados e neles os pesquisadores encontraram pinturas revelando detalhes dessa
procissão. Nessa fila dos crentes, logo após os sacerdotes e outros altos dignitários que iam na frente , seguia a
liteira carregada nos ombros pelo povo e que conduzia adolescentes que seriam sacrificados à deusa. Outro
exame no local da descoberta do altar do espirito das neves e ainda por desenhos em ceramica , encontrados
em vasos religiosos, verificou-se que os adolescentes que eram sacrificados com freqüência eram colocados numa
espécie de arca cavada numa pedra ou, então, encontrados numa das paredes do rochedo. Esses jovens, ao que
tuo indicava , eram previamente drogados com infusões de folhas de coca e de outras ervas alucinógenas que os
índios conhecem tão bem desde a mais remota antigüidade , com o propósito evidente de nada sofrerem durante
o ato do sacrifício . Aos és dos que seriam sacrificados , os seguidores do culto da deusa colocavam suas mais
preciosas oferendas , bem como os alimentos e as bebidas necessárias para a derradeira viagem que seria
empreendida pelos jovens escolhidos para agradar a divindade.

Ao redor deles eram colocados , também , os incensórios e as pequenas vasilhas com defumadores. A vitima,
dopada e adormecida, encostada num penedo ou sentada na urna megalítica , após as cerimonias religiosas das
oferendas , das preces e dos rituais propiciatórios, era aí deixada sob o frio da altitude, para que a deusa a
congelasse e recolhesse seu espirito para servi-la em seus domínios , como os adolescentes e as virgens eram
empregados nos templos dos homens.

Em outros vulcões onde ocorreram atos de sacrifício semelhantes , encontraram-se cadáveres congelados e
conservados sob duras placas de gelo. Eles foram desenterrados de suas sepulturas congeladas e levados para
museus , para exames. Não demonstravam na face quaisquer rictos ou sinais de sofrimento causados pela morte
pelo frio. Ao contrário; esses rostos mantém ainda com perfeição uma fisionomia serena , às vezes parecendo
sorrir. Evidentemente por efeito das drogas ingeridas que os dopavam e tornavam insensíveis a qualquer dor.

De qualquer maneira, isso não descarta a possibilidade de algumas outras vitimas humanas sacrificadas à Deusa
das Neves não terem sido mortas por congelamento e depois atiradas para dentro do vulcão ou até   ---   quem
sabe?   ---   ainda  vivas mas adormecidas, terem sido lançadas para a eternidade no fundo das crateras.
 

O culto da Deusa das Neves e os sacrifícios extremos que exigia difundiram-se entre todos os povos do altiplano
andino. Na maioria dessas cerimonias , contudo , são poucos os casos de morte violenta ou de que as pequenas
vitimas tenham acordado subitamente, despertadas pelo instinto de conservação e tentado escapar do terrível
sacrifício, debatendo-se ou morrendo com a face crispada pelo terror . Algumas múmias das regiões de Cuzco e
de Arequipa, contudo, foram achadas com sinais de violência no alto de cumes nevados.

Entre estas, relaciona-se a que foi encontrada pela missão arqueológica do alemão Dietrich Disselhof ao
Pichu-Pichu. Este monte fica próximo do Coronado Grande, portanto , perto do local onde foi encontrado o
primitivo ídolo da Deusa das Neves. Além de um cadáver , o arqueólogo encontrou um crânio e duas vértebras
cervicais pertencentes a uma jovem de quinze anos presumíveis . Havia uma ampla perfuração no lado direito do
osso parietal e, também , vestígios de glóbulos vermelhos intactos , evidencias bastante seguras de que houve
um sacrifício por morte súbita e violenta.
 

Quando as antigas culturas do altiplano foram subjugadas pelo Império inca, no inicio deste nosso milênio, seus
novos senhores impuseram sua civilização e o tipo de sociedade comunitária que utilizavam em todos os seus
domínios , bem como a religião incaica que venerava o Deus Sol. Eles não conseguiram , porém, fazer com que o
culto da Deusa das Neves e de outros espíritos que se encarnam nos montes, lagos , rios , arvores ou pedras e
que eram seguidos por aqueles povos cessasse.
 

O culto, por sinal, não só sobreviveu ao Império Inca quando ele foi desmantelado por Francisco Pizarro como
teria influenciado aos próprios povos incaicos , os quais viviam nos sopés de vulcões que também esculpiram
ídolos da divindade, oferecendo-lhes as mesmas honrarias dos sacrificios exigidos pelos amautas. A verdade é
que a tradição ainda vive entre os índios aimarás e quíchuas de hoje, embora não se tenha noticia de nenhuma
oferenda humana.

O sacrifício de animais caseiros como o lhama , alpaca , vicunha ou cordeiro tomaram o lugar do homem nas aras
erguidas nas altitudes nevadas. Igualmente hoje segue-se a tradição das cerimonias religiosas em honra da deusa
, como a procissão que sobe aos elevados vulcões entoando cânticos sagrados acompanhados por músicos que
sopram as zamponhas ou a flauta quena , dedilham as cordas de suas arpas indígenas e tocam seus tambores.

No século 20 , não há índio boliviano ou peruano que não tema e não renda homenagem ritualisticas a
Pachama-ma , a deusa das alturas , que parece ser uma derivação , nos tempos atuais da Deusa das Neves.
 
 

Extraído de um texto de  Durval Ferreira  -  1976

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