VIAJANDO NA UTOPIA

    

     Após três meses de acalorados debates, com acusações cruzadas entre os representantes das diversas nações ali representadas, a Assembléia Geral da ONU decidiu aprovar, por unanimidade,  a proposta de  um pequeno país africano para que se convidasse a Sra. Fraternidade para presidir a Conferência Internacional que tratará das divergências e desigualdades entre os povos da Terra e entre os indivíduos desses mesmos povos. A intenção primeira de tal encontro é inserir tal tema nos objetivos da globalização que, até este ano de 2002, só tem privilegiado as  questões de natureza econômica.

     Comovida com o convite, a Sra. Fraternidade condicionou sua aceitação à extensão do mesmo a suas velhas companheiras senhoras Igualdade e Liberdade. Alega a ilustre convidada que, desde a Revolução Francesa e inspirado nos princípios que pregou o bom Nazareno há mais de dois mil anos, o trio tem lutado com afinco para solucionar os problemas que serão objeto de tal conferência. Os representantes encarregados de organizar o majestoso evento aceitaram as ponderações da Sra. Fraternidade e outorgaram-lhe o direito de escolher todos os seus assessores e de indicar os participantes  da sessão de abertura. Diante disso, mais comovida ainda, a Sra. Fraternidade aceitou em definitivo o convite.

     Com o fim de preparar-se adequadamente para o grande evento, a Sra. Fraternidade procurou logo  as amigas senhoras Igualdade e Liberdade para dar-lhes ciência desse compromisso e teve, como esperado, o assentimento delas. Em conjunto, definiram quem participaria da sessão de abertura e  que temas abordariam. Tais participantes entrariam após a leitura do texto que as senhoras F, I e L redigiriam em conjunto. A participação desses convidados se daria segundo uma sugestão da Sra. Boa Vontade, velha amiga desse trio. Conforme a idéia desta senhora,  voluntários por ela escolhidos representariam os personagens dos grupos Causas, Conseqüências e Soluções. No primeiro grupo estariam representados a Ambição, o Egoísmo, a Corrupção, a Riqueza, a Violência e a Guerra; no segundo, a Pobreza, a Ignorância, a Fome, a Doença, a Miséria e a Mendicância; no terceiro e último, os personagens seriam a Caridade(Amor), a Esperança, a Humildade, a Tolerância, a Solidariedade e o Altruísmo.

     Conhecedores da programação proposta pelo trio Fraternidade, Igualdade e Liberdade, os membros da comissão organizadora do evento aprovaram-na e concederam-lhe todo o primeiro dia para  as apresentações sugeridas .   E   assim, numa tarde de temperatura amena em Paris, na sede da UNESCO, abriu-se a Conferência Internacional Sobre Divergências e Desigualdades. Tal como em conferências anteriores, a expectativa da mídia era de que o evento seria, apenas, mais uma reunião internacional de resultados nulos. Não obstante, alguns comentaristas ressaltaram a novidade de que, pela primeira vez em toda a história, os diplomatas cediam a vez aos símbolos da condição humana.

     Assim foi que, sob as luzes e o foco das câmaras de televisão de todo o mundo, o trio F, I e L tomando formas humanas femininas mas com aparência etérea, assomou a tribuna e iniciou o discurso de abertura dos trabalhos. A voz suave,  porém enérgica, da Fraternidade silenciou todo o imenso auditório ao pronunciar as primeiras palavras de sua saudação: "Irmãos de todo o mundo" e, após os aplausos protocolares, prosseguir: "ouçam com atenção e boa vontade esta nossa mensagem. Os ideais que representamos de fraternidade, igualdade e liberdade tem perpassado toda a história da humanidade desde que o homem ganhou consciência de sua capacidade de pensar. Esses ideais, que povoaram mentes na velha Grécia e na Roma republicana; que estavam e estão na essência do pensamento Cristão, e de outras confissões religiosas espalhadas por nosso planeta, não têm obtido o êxito pelo qual seus  defensores vêm lutando ao longo de séculos e séculos. Ao contrário, o êxito tem sido alcançado pelas mentes movidas a egoísmo e ambição. Mesmo os grandes progressos científicos alcançados por seres humanos abnegados, o foram a despeito desses pensamentos predominantemente materialistas. É tempo de mudar o curso da história e não apenas registrar as suas deformações. O que os presentes ouvirão a seguir, sob a forma de jograis, são a manifestação personificada de sentimentos, bons e maus, e circunstâncias decorrentes dos conflitos humanos."

     Surge o primeiro grupo ostentando uma faixa onde se lê AS CAUSAS.  São figuras humanizadas com aparência igualmente etérea.  A uma só voz pronunciam: "Formamos o grupo das Causas e, desde que o mundo é mundo, temos sido, invariavelmente, os vencedores." E individualmente, sucedendo-se um ao outro: "Eu, a Ambição desmedida; Eu, o Egoísmo deletério; Eu, a Corrupção imoral; Eu, a Riqueza estéril; Eu, a Violência irracional; Eu, a Guerra assassina." E novamente em coro: "A nós pouco importam os resultados de nossos atos; enquanto a humanidade não nos punir, agiremos assim." Retira-se do palco o primeiro grupo sob aplausos emocionados da platéia.

     Surge o segundo grupo conduzindo uma faixa  onde  está  escrita  a  palavra  CONSEQÜÊNCIAS.  As seis figuras pronunciam em coro: "Somos o grupo das Conseqüências e, desde que o mundo é mundo, temos sido, invariavelmente, os perdedores." A seguir, cada um diz a sua fala: "Eu, a Pobreza indesejada; Eu, a Ignorância permanente; Eu, a Fome irreversível; Eu, a Doença demolidora; Eu, a Miséria absoluta; Eu, a Mendicância humilhante." Em grupo, a uma só voz: "Nossas forças são insuficientes para reverter esse quadro que nos condena por séculos e séculos. Resta-nos, apenas, a Esperança." Deixa o palco esse grupo tendo, igualmente, emocionado o auditório.

     O terceiro grupo traz um dístico em verde com a palavra SOLUÇÕES. Seguindo o mesmo formato das apresentações anteriores, o conjunto, a uma só voz, pronuncia: "Nós formamos o grupo otimista das Soluções e, desde que o mundo é mundo, pregamos no deserto, mas não desistiremos." Seguem-se as vozes individuais: "Eu, a Esperança imorredoura; Eu, a Humildade sincera; Eu, a Tolerância paciente; Eu, a Solidariedade amiga; Eu, o Altruísmo verdadeiro; Eu, A Caridade, irmã do Amor, a generosidade sem limites." Voltam ao coro e, juntos aos outros dois grupos, fecham sua apresentação: "Apesar de todos obstáculos que temos enfrentado e ainda enfrentaremos, temos esperança de que as coisas vão mudar. Os ideais de nossos mártires e o amor entre as criaturas ainda haverão de prevalecer." Mais ainda que em relação aos grupos precedentes, os aplausos são comovidos e demorados. Imagens ilustrando os temas abordados nessas apresentações e nas palavras introdutórias da Fraternidade, da Igualdade e da Liberdade são projetadas nos telões instalados no imenso auditório. A sessão de abertura é encerrada.

     A repercussão do inusitado evento foi extraordinária. Os jornais e as televisões de todo o mundo colocam em suas primeiras páginas e em seus noticiários fotos e reportagens em destaque. Os países dos diversos continentes, através de seus primeiros mandatários - presidentes, primeiros ministros e até mesmo ditadores, declaram-se dispostos a rever suas políticas econômicas, sociais e internacionais. Como resultado, poucos dias depois, a Assembléia Geral da ONU decide, sobrepondo-se às demais organizações internacionais, criar o Fundo Mundial de Erradicação da Miséria, a ser custeado com a cobrança obrigatória de um por cento sobre todo o movimento de capitais, privados ou estatais, e igual percentagem sobre os orçamentos militares de todos os países. Os recursos assim obtidos serão aplicados com o fim de eliminar da face da Terra, em cinco anos, as situações de fome e miséria; e, em  uma década, implantar em todo o mundo políticas que garantam condições básicas de vida em termos de habitação, saúde e educação.    Decidido  foi,  também,  criar  um  organismo policial e judiciário para fazer valer tal decisão e conter todos os litígios regionais, fronteiriços ou ideológicos e os governos ditatoriais.

 

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     Um aglomerado de pessoas me chama a atenção. Aproximo-me e ouço alguém dizer: - parece que morreu. Outro, por sua vez, contesta: "Que nada, tá só dormindo ou desmaiado; sei lá, acho que está de cara cheia." Após alguns instantes o cidadão desperta, senta-se e fica assustado com tantas pessoas à sua volta. "Foi nada não, gente, estou bem. Estava de olhos fechados mas não estava dormindo, foi apenas um devaneio; estava olhando essa beleza de mar, esse céu azul e, ao mesmo tempo comecei a pensar na violência, na fome, na miséria e a me perguntar se o mundo não poderia ser tão bonito em tudo, não apenas nas cores do céu e do mar." Não parecia ser um mendigo ou  estar embriagado, suas roupas eram comuns mas não trapos. Suas palavras eram bem coordenadas, parecia alguém que sabia do que falava ou pelo menos se preocupava com essas questões. Sei lá, acho que era um desses filósofos que não têm vez nem voz mas estão imbuídos  do sentimento do "amai-vos uns aos outros".  Ao menos em pensamento.

     Como foi possível saber o que sonhou esse homem? É simples. Depois que ficou sozinho, simpático a suas idéias, cheguei até ele e puxei conversa. E, então, ele me contou como foi esse devaneio. Deus o abençoe!

 

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