CÓDIGO SECRETO

 

     Vários grupos de aposentados se reuniam naquela praça. Em geral para jogar cartas, damas, xadrez e outros passatempos. O que os passantes observavam era um clima mais ou menos calmo, de pouca conversa, e quando esta ocorria era sempre sobre problemas que os atingia, principalmente mazelas de saúde. Um grupo, entretanto, era sempre muito animado contrastando com os demais. A razão da diferença poucos conheciam.

     Um morador daquele bairro, recém chegado, iniciando seus tempos de aposentado foi o responsável pela diferença que os passantes observavam. Era Teodoro, um cearense beirando os setenta, atarracado e muito loquaz. Quando passou por aquela praça da primeira vez, sentiu-se atraído por um daqueles grupos. A princípio ficou  "peruando", quer dizer , assistindo o jogo e observando, mas contendo-se para não dar palpites. Após alguns dias voltou e se aproximou do mesmo grupo e, dessa vez, foi convidado a enturmar-se. Nada entendia de sueca, pôquer, ou outras modalidades de carteado. De damas, o jogo - e também das próprias - entendia bastante e no xadrez era um bom jogador embora não se considerasse um verdadeiro enxadrista. Participara, é certo, de algumas competições, mas não chegou a ganhar prêmios mais significativos que lhe garantissem o status próprio.

     Pela facilidade de comunicação, Teodoro logo fez camaradagem com o grupo e o conquistou após algumas partidas de xadrez que ganhou sem maior dificuldade apesar de ter "escondido o jogo" nas duas primeiras. Uma coisa, no entanto, desagradou Teodoro e o fez perder o interesse por aquele grupo. Eram velhos simpáticos, mas com um grave defeito a seu modo de ver: viviam falando de problemas de saúde. Mesmo quando jogavam não deixavam de mencionar a artrose de um, o problema renal de outro , as dificuldades de locomoção de um terceiro. Esse clima fez com que Teodoro fosse, pouco a pouco, se afastando de tal grupo.

     Após algum tempo, o nosso aposentado se aproximou de outro grupo e, para seu desencanto, observou que aquele negócio de falar de doenças parecia um regra entre os idosos. Para não ficar de fora e também não constranger os "colegas", após alguns dias de contato com o grupo fez uma proposta, a princípio recebida com ceticismo. Eis o que propôs Teodoro: Ninguém ficaria impedido de falar de suas mazelas de saúde ou das de quem quer que fosse. Todavia, para não deixar o clima pesado e mórbido, seria utilizado um vocabulário próprio, uma espécie de código em que tais enfermidades seriam mencionadas com nomes de flores.  E  todos  deveriam manter sigilo sobre ele, evitando  comentários sobre  o  assunto,  mesmo em casa. Assim, artrose seria "margarida", problemas de coluna receberiam o nome de "rosa", insuficiência renal seria "hortência", hipertensão arterial receberia o nome "camélia" e outras  enfermidades seriam  fulana , sicrana, etc. Pois foi este grupo reformulado por Teodoro que chamou a atenção deste narrador.

     Era comum ouvir nesse grupo, em meio a jogadas de cartas ou lances de xadrez ou dama, diálogos do tipo:   "Esta noite tive problemas com a 'hortência' ;  hoje, logo que acordei, a 'margarida' me obrigou a voltar pra cama  ;  a 'rosa', vira e mexe, me manda recado, parece que quer voltar; fulana anda pegando no meu pé  ou  a 'camélia' está me obrigando a comer comida sem sal, já não agüento mais!"

     Enquanto eram homens, não necessariamente idosos, que ouviam tais conversas, a coisa não passava de curiosidade. O problema começou quando algumas senhoras, em sua maioria idosas, ainda boas de ouvido, tiveram sua atenção chamada para aquelas animadas conversas envolvendo o nome de mulheres. Um delas, que era vizinha de D. Margarida, uma senhora beirando os setenta mas de muita vitalidade, comentou com ela o que ouvira. Não tinha dúvidas de que  'seu'  Esperidião, marido de Margarida  tinha falado muito nitidamente que  "esta noite tive problemas com a Hortênsia" e que um outro senhor, cujo nome ela não sabia, disse  "hoje, logo que acordei, a Margarida me obrigou a voltar pra cama".  Disse a vizinha, fechando o comentário:  "Que o Esperidião  fique contando lorota, vá lá, homem, mesmo velho, é tudo igual, mas dizer que a senhora anda de caso por aí, acho um absurdo."

     O quiproquó que se formou na casa do Esperidião na tarde daquele dia não foi brincadeira. Por mais que negasse as afirmações da mulher, não havia jeito de fazê-la acreditar na sua argumentação. Depois de muito bate-boca e lamúrias tipo  "eu jamais pensei que nesta idade tivesse que enfrentar coisas assim. Você é um velho safado!" e respostas como  "você está enganada, amanhã você vai lá e a gente esclarece tudo", os ânimos se acalmaram com o ultimato de D. Margarida : "hoje você vai dormir no sofá da sala e tem mais, quero saber que história é essa de um sem-vergonha da sua roda envolver o meu nome em safadezas."

     Na manhã seguinte, quando o Esperidião chegava com a mulher, coisa nunca antes acontecida, o grupo se espantou vendo a cara de desconsolo do amigo. Teodoro, o inventor do código, pressentiu o drama mas ficou na sua.   D. Margarida  ainda   pegou   o  comentário  do  velho  Diogo: "... já não suporto mais a comida sem sal da 'camélia’."  Foi o que bastou para que soltasse a língua: "Vocês são uma cambada de velhos sem-vergonha, já não se dão ao respeito, além de fazerem suas safadezas ainda ficam comentando pra todo mundo ouvir." A essa altura, pouco adiantaria uma explicação do Teodoro. Ele preferiu ficar calado, contendo-se pra não rir, e aguardou que a mulher do Esperidião acabasse o discurso. Passaram-se alguns minutos D. Margarida parece que se cansou, virou as costas e já ia se retirando quando Teodoro, liberando a gargalhada que vinha contendo, levantou-se, puxou-a pelo braço e disse-lhe : "É tudo brincadeira, D. Margarida." E contou-lhe toda a história do código secreto.

     Passados dois dias, o mesmo grupo volta às suas brincadeiras com um novo código secreto, em vez de flores, passarinhos. Assim, o velho Augusto reclamava de sua gota falando que o seu papagaio não lhe dava folga, o tranqüilo Epaminondas se queixava de sua artrose dizendo que seu canário o perturbava a noite toda e o neurastênico Egídio falava em esganar seu bem-te-vi, quer dizer, seu fígado rabugento. Com essa modificação, sugerida por D. Margarida e aceita por todos, o código secreto pôde funcionar sem complicações e o pândego Teodoro podia rir à vontade dessa sua armação.

 

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