ANJO PACIFICADOR

 

     Naquele bairro de classe média média, vizinho não muito distante de uma favela em vias de se tornar bairro, alguns fatos vinham chamando atenção nos últimos meses por uma estranha circunstância: todos os conflitos que ocorreram por ali, alguns bem carregados de violência, tiveram um desfecho surpreendente com agressores se retirando e litigantes desculpando-se uns aos outros. O mais curioso é que, a cada situação, o pacificador era um tipo diferente desconhecido nas redondezas.

     Argemiro, antigo morador da rua Espírito Santo, a principal do bairro, conhece bem essas ocorrências, algumas das quais ele presenciou; outras, conhece por ouvir falar. Daqui para a frente, os relatos são dele. Não palavra por palavra pois não houve gravação, mas uma reprodução do que falou sobre tais eventos.

     Pouco menos de seis meses atrás, estava eu com uns amigos no bar do Antonio, já me preparando para voltar pra casa, quando dois rapazes portando armas e parecendo drogados, exigiram tudo o que tínhamos; enfim, era um assalto. Estavam esses assaltantes em meio ao "serviço" e ameaçam atirar no Aristeu, que ensaiava uma resistência, quando surgiu não se sabe de onde, um cidadão de meia idade, cabelos longos e barba grisalhos, trajando roupas brancas. Destemidamente ordenou que os rapazes abaixassem as armas, olhando-os fixamente nos olhos. A ação desse estranho foi tão espantosa que eu e os demais ficamos estupefatos, principalmente porque os assaltantes ficaram paralisados e obedeceram àquela ordem. Em seguida, em obediência a uma nova ordem, devolveram tudo que haviam retirado. Foram-se, deixando as armas após ouvirem: "Tratem de arranjar outro meio de vida, eu não vou denunciá-los." Pegando as armas e retirando a munição, retirou-se sem dizer qualquer palavra. Soubemos, alguns dias depois, que um estranho entregara, naquela mesma noite, as armas e a munição na delegacia local.

     Cerca de três meses depois dessa inusitada ocorrência registrou-se, também, um fato muito estranho. Quem me contou foi o Vicente, vizinho da casa onde tudo aconteceu. Passava da meia-noite e, apesar do barulho da chuva forte que caía, ele ouviu um grito de mulher na casa vizinha. Correu à janela e pode observar que o casal do lado brigava violentamente e, sobre os gritos da mulher, se podia ouvir, também, o choro dos filhos. O que aconteceu depois, Vicente soube pela própria vítima, D. Esmeralda. Disse-lhe ela, que a certa altura daquela briga, já convencida de que o marido a mataria,  ouviram  uma  batida  forte  na  porta  da  frente.  Imaginando  ser  a polícia, todos silenciaram mas as batidas continuaram. O marido recompôs-se e foi abrir a porta.  Diante  dele  um  homem negro, semi-calvo, barba rala, de roupa branca, lhe dirige um olhar que logo o domina. Cabisbaixo, Ananias - o marido agressor, ouve o estranho dizer-lhe enérgica e calmamente: "O que você está fazendo é muito grave, muito mais ainda por estar embriagado.  Cesse a agressão, desculpe-se com sua mulher e prometa-lhe e a seus filhos que estas coisas não voltarão a ocorrer." Envergonhado, Ananias ajoelhou-se aos pés de Esmeralda e, abraçado às crianças, fez a promessa que lhe fora ordenada pelo estranho. Este  retirou-se em seguida deixando todos muito espantados, mas aliviados pela cessação das hostilidades. Aquele bendito intruso nunca mais foi visto nas redondezas.

     Mês passado, cerca de dez da noite de uma sexta-feira, Alcebíades e Aderbal se engalfinhavam numa briga extemporânea. Velhos conhecidos e antigos moradores do bairro, era estranho que pudessem ir às vias de fato por uma razão menor. Só mesmo um motivo muito sério - que só se soube depois, os levaria àquele grave desforço. O fato é que, não obstante os apelos e esforços dos que acorreram ao local da briga - entre eles, eu - a coisa poderia terminar com muitos ferimentos de parte a parte não fosse a intervenção de um estranho. Um homem de aparência asiática, quem sabe chinês, cabelos compridos amarrados sob a forma de rabo de cavalo, talvez já passando dos sessenta, todo de branco, surgiu do nada e ordenou, erguendo os braços e fixando o olhar sobre os contendores: "Parem imediatamente!" Ante o olhar estarrecido dos que se esforçaram para deter aquela briga violenta e, mais ainda, de Alcebíades e Aderbal, estes pararam imediatamente e se separaram. O estranho acrescentou: "Nem mesmo uma ofensa grave justificaria esta luta de vocês, mas posso assegurar-lhes que tudo não passou de intriga de um falso amigo;  não demora e saberão seu nome. Não é preciso que se desculpem agora, mas o façam tão logo estejam mais calmos. Quanto ao intrigante, a indiferença de vocês e seus amigos será o castigo que receberá." Após esse discurso, o estranho desapareceu da mesma forma que chegou. O falso amigo, identificado posteriormente, era o Ubaldo. Não se sabe bem por que motivo, insinuou junto a Alcebíades que sua mulher e Aderbal teriam tido um encontro que sugeria algo mais que relação de amizade familiar. O conselho do velho asiático foi seguido e Ubaldo está  "no gelo" desde aquele dia.

     Argemiro devolve a palavra a este narrador com o seguinte arremate: "Estes casos que contei não são nem de pescador nem de caçador, aos quais sempre se atribui exageros nas narrativas; quem duvidar, que apareça na rua Espírito Santo e confirme com o Aristeu, o Ananias, o Alcebíades ou o Aderbal."

     O leitor interprete como quiser. Há uma particularidade nas três intervenções: o estranho sempre aparece inesperadamente, está sempre de branco, domina os litigantes com o olhar fixo e, embora tenha feições diferentes, inclusive a cor da pele, parece ser a mesma pessoa. Seria um fantasma ou um Anjo Pacificador?

 

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