A PRIMEIRA VIAGEM DO ANJO

 

     A nave celeste trazendo em seu bojo o anjo Laducéu em sua primeira viagem, após vários giros em torno deste nosso planeta - a um só tempo maravilhoso e conturbado, desce numa região africana muito pobre; na verdade, miserável. Tendo ainda na mente as magníficas imagens do que vira - grandes mares, montanhas cobertas de neve, rios serpenteando em diversos continentes, florestas imensas, geleiras nos pólos, planícies e desertos imensos, fica perplexo e triste com o que vê. Ao contrário da visão à distância, o quadro agora é muito feio, são pessoas, criaturas de Deus, vivendo em condições subumanas. A fome, as doenças reinam nesse quadro. E pior: não longe dali, homens também pobres, em uniformes rotos, guerreiam para fazer prevalecer seus grupos políticos, étnicos ou tribais.  Com tristeza, Laducéu comenta para seu anjo- assistente:

     - Vão mal as coisas por aqui!

     Imaginou que aquele deprimente quadro talvez não passasse de uma exceção. Afinal, aquela beleza que vira à distância não poderia estar assim comprometida. Parte na direção do Oriente Médio. Não fosse a imaterialidade de sua nave, talvez tivesse sido atingida por um daqueles mísseis que árabes e judeus vivem a trocar; ou, após pousar nessa região conturbada, ser o alvo de um atentado terrorista, tão comum naquela guerra interminável. Sem nada entender, retoma sua viagem, agora na direção da América do Sul.

     Sobrevoa a decantada "cidade maravilhosa", hoje expandida para áreas enormes fora de seus limites.  Percebe, mesmo à distância, que há enormes agrupamentos de aparência muito pobre, em contraste com os imponentes edifícios existentes à beira-mar. Tais agrupamentos, em geral nos morros, são as favelas. Em toda a região são centenas desses agrupamentos. Laducéu ordena que a nave pouse nas proximidades de uma delas. Logo que desce presencia a um feroz tiroteio entre a polícia e alguns indivíduos encapuzados, do qual escapa por ser imune a esses danos materiais. Dali segue para outro ponto onde vê pessoas chafurdando no lixão, à procura de algo que preste, principalmente que possa servir  de alimentação. O quadro é degradante. Não muito longe desse tenebroso panorama, modernos automóveis circulam, indiferentes, pelas auto-estradas e avenidas. A umas poucas centenas de quilômetros dali - nada para Laducéu, acostumado às infinitas distâncias siderais, ele sobrevoa a megalópole S.Paulo. Circundando aquela floresta de concreto que se estende por quilômetros e quilômetros, as centenas de  favelas - os aglomerados de moradias muito pobres, desordenadas, formam um conjunto urbano que é muito parecido com o do Rio de Janeiro, salvo a inexistência do mar e dos morros.  Não foi necessário descer ao chão do lugar, Laducéu pode imaginar o contraste entre o núcleo exuberante e a periferia miserável; e o comentário se repete:

     - Estão realmente mal as coisas por aqui!

     O anjo dirige agora sua nave para o continente europeu. A meio da viagem, no entanto, é obrigado a fazer um pouso forçado no nordeste brasileiro. Ao que parece, mesmo as máquinas celestes dão pane! Espanta-se Laducéu com o quadro que vê: terra seca, gente muito pobre a carregar o pouco de água suja que ainda resta nos poços e açudes; o olhar triste das pessoas - sobretudo das crianças chega a comovê-lo. Intriga-o, principalmente, o contraste entre o que vira poucos segundos antes, muitas áreas verdes, irrigadas. Ele não entende o porquê da situação. Retoma sua viagem e logo atravessa o Atlântico, aterrissando nas cercanias de Paris. Faz uma breve visita à capital francesa, circulando  pelo Bois de Boulogne. Decepciona-se com que lhe surge diante dos olhos: ao contrário da beleza que vira do alto, com a torre Eiffel a apontar para o céu, o quadro é muito triste; prostitutas e viciados são os donos do lugar, mostrando um retrato deprimente da espécie humana. E tudo isso é controlado por outros representantes da mesma espécie que exploram seus semelhantes das áreas pobres, os quais sobrevivem às custas de produzir matérias primas para as drogas. Não escapa a Laducéu um novo comentário:

     - È uma pena, mas estão mesmo mal as coisas por aqui!

     Desapontado com os tristes contrastes sociais, políticos e com o radicalismo religioso de algumas minorias que, fanaticamente, induzem muitos de seus seguidores a matar-se como homens-bomba numa suposta guerra santa,  Laducéu decide retornar a suas plagas celestes. Lembrado, todavia, por seu assistente que ele não visitara o maior país do planeta em termos econômicos - os Estados Unidos, o anjo decide sobrevoá-lo exatamente no dia terreno de 11 de setembro de 2001. Ao sobrevoar Nova York na manhã desse dia custou a acreditar no que viu; rolos imensos de fumaça atingindo grande altura, a partir de dois imensos edifícios que não demoraram para desabar. A imagem dantesca espantou-o de vez; não suportou e partiu sem conhecer os detalhes de tal catástrofe:  que foi causada pela ação de homens fanáticos que conduziam aviões  e os arremessaram sobre tais edifícios provocando a morte de milhares de pessoas e ferimentos graves em outros tantos.

     Laducéu partiu confuso com tudo isso; ao mesmo tempo rico e pleno de belezas naturais, o planeta Terra estava vivendo dias terríveis com tantas lutas, incompreensões e desigualdades. Mesmo tomando conhecimento de muitos abnegados - homens e mulheres de grande espírito altruísta, e também de avanços científicos notáveis; das obras-primas da escultura, da pintura e da literatura espalhadas por todo o planeta, criadas por gênios inspirados pelo Pai, não lhe foi possível afastar a frustração com a espécie humana. Já atingindo os limites do espaço exterior, comenta para seu assistente:

     - E imaginar que nosso pai pensou fazer desse planeta um paraíso!

 

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