UMA DAMA DE OURO

 

 

"Pelo trabalho se conhece o artífice"                                                               

La Fontaine

 

     "Meus amigos, alunos de hoje e de ontem de D. Raquel, aqui estamos para prestar uma homenagem simples mas profundamente sincera a esta mulher de grande valor, esta verdadeira dama de ouro, por ocasião da passagem de seu sexagésimo aniversário. Está bem, ela não aparenta essa idade mas tem, e disso muito se orgulha." Estas foram as palavras iniciais do professor Alberto, ele também um seu ex-aluno, que foram interrompidas por palmas espontâneas da platéia. Sentada junto à extremidade direita da mesa sobre o palco, D. Raquel, na sua simplicidade, agradece os aplausos. O professor Alberto prossegue:  "Para fazer um retrospecto da vida de nossa homenageada, que ilustraremos com a apresentação de fotos e um vídeo que preparamos especialmente para este evento, chamamos a ex-aluna Teresa Carvalho, hoje prestigiada jornalista. É importante informar a vocês que tudo isso foi preparado contra a vontade de D. Raquel que, quando aparece no vídeo, desconhecia que estava sendo focalizada furtivamente. Com vocês, Teresa."

     As luzes são parcialmente apagadas para que as imagens a serem projetadas obtenham a nitidez adequada. No telão aparece, primeiro, a foto de uma jovem bonita e, em seguida, projetada ao lado da outra, nossa homenageada na plenitude de sua maturidade. Antes que Teresa inicie seu relato, novos aplausos são ouvidos. Enquanto acompanham as palavras da narradora, os leitores desta história - que, obviamente, não estavam presentes ao local do evento, imaginem ver as imagens que vão ilustrá-las. É o resumo de uma brilhante e bem sucedida caminhada.

     "De início informo que D. Raquel é solteira e feliz. Teve um casamento frustrado antes mesmo que se realizasse e desde então vive só e, repito, feliz. Quem duvida disso certamente não sabe avaliar do que é capaz uma pessoa de espírito elevado. O fato de viver só, não quer dizer que vive solitária; talvez sejam poucas no mundo as mulheres que têm a seu redor tantos amigos, que vão desde crianças a adultos de sua faixa etária. É, sem qualquer dúvida, uma predestinada. Mais que a beleza física que a idade apenas aperfeiçoou, sua alma é que encanta todos que com ela tem convivido. Mas, afinal, que fez essa mulher para receber tantos encômios? Parece que estou falando de uma santa !    Bem, se a coisa fosse levada para  lado religioso, certamente esse enquadramento se justificaria. Mas, não, trata-se simplesmente de uma mulher fora de série.

     "Nasceu na imperial Petrópolis, logo após iniciada a Segunda Grande Guerra. As notícias que se espalhavam pelo mundo afora assustavam a todos e muitos mais aos de origem judáica que já vinham sendo perseguidos, principalmente na Alemanha nazista. Seus pais, Levi e Sara Schwartzman, que haviam emigrado para o Brasil quando tal perseguição dera primeiros sinais na Polônia, com justa razão se preocuparam. Buscaram, então, radicar-se em alguma cidade menor onde pudessem ser esquecidos e onde o fato de serem judeus não os incomodasse. Assim foi que, com a filha ainda bem pequena, foram residir na pacata Vassouras, no centro-sul fluminense. A menina Raquel recebeu, pois, pelo menos até a adolescência, as influências da vida interiorana. Não fosse a circunstância trágica do desaparecimento de seus pais num desastre de automóvel,  talvez nossa heroína não estivesse recebendo hoje a homenagem que lhe prestamos. Esse triste acontecimento mudou o curso de sua vida.

     "Aos doze anos vê-se órfã. Por interferência de amigos da família é abrigada numa modesta instituição destinada a menores órfãos e que era mantida pela sociedade local mediante donativos e também pelos recursos obtidos com a escola que funcionava junto à casa. Entre os mantenedores da instituição estava  Laudelino Azeredo, comerciante tradicional da cidade, e sua mulher Mariana. Estes, ao perceberem os primeiros sinais de angústia na jovem Raquel, provocada por sua orfandade e ausência de laços familiares na cidade, tornaram-se, ainda que informalmente, seus tutores. Este apoio foi decisivo para ela que, estimulada pela nova condição, não apenas superou a crise existencial que vivia como passou a colaborar com os professores na educação das crianças menores. Muito importante, também, para essa recuperação foi o apoio que Raquel recebeu da Irmã Elvira, a freira que dirigia o orfanato. Esse apoio, inspirado na fé cristã, contribuiu de certa forma, para que a menina passasse a apreciar a prática religiosa da Irmã. Essa influência viria a ter um papel decisivo alguns anos depois. 

     "O empenho de Raquel foi de tal ordem que, ao concluir o curso científico aos dezoito anos, teve de enfrentar um dilema para ela crucial: para continuar os estudos em nível superior, que era não apenas seu desejo mas o de todos os que cuidavam da instituição, teria de abandonar  suas atividades ligadas à educação das crianças do orfanato. Abnegada e pensando muito mais no próximo que em si mesma, admitia renunciar àquele    aprimoramento    para    não    prejudicar   suas   ações    caritativas. Compreendendo esse dilema, e visando a conciliar os anseios do coração de Raquel, os Azeredo e a Irmã Elvira conseguiram que ela fosse concluir seus estudos numa outra instituição religiosa, onde poderia continuar sua dupla atividade de estudante e colaboradora na manutenção. Assim, já vendo aproximar-se o fim da década de 1950, Raquel se desloca para Taubaté, no vale do Paraíba paulista para dar, talvez, o rumo definitivo de sua vida. Cursou, consecutivamente, Pedagogia e Assistência Social.

     "Por uma circunstância muito especial de sua família, que não cabe citar aqui, o casal Azeredo é levado a mudar-se para o Maranhão. Afastar-se daquela família foi para Raquel muito doloroso. Tal separação ocorreu quando ela estava prestes a formar-se como assistente social,  e fez com que ela, num preito de gratidão àquele casal - seus segundos pais, adotasse o sobrenome Azeredo. Foi por essa ocasião, que Raquel, certa noite, ouviu uma voz, vinda não tinha idéia de onde - quem sabe de seu próprio íntimo? Estava ela na varanda de uma casa de fazenda, que se debruçava sobre o rio Paraíba do Sul. Após reler uma carta de D. Mariana, admirava as estrelas e ao mesmo tempo fazia cogitações sobre seu futuro, quando tudo aconteceu.  "Raquel, você tem uma bela trajetória pela frente, mas para isso não poderá ter outros compromissos senão com as causas a que você já se dedica." Sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo e, após alguns minutos, refeita do susto, pôde avaliar o que lhe ocorrera; certamente tinha sido uma mensagem celeste. Este fato sobrenatural, hoje se diria parapsicológico, fê-la  comprometer-se de vez  com a causa religiosa que já vinha adotando desde que conviveu com a Irmã Elvira. Sem renegar o judaísmo de seus pais, aceitou os princípios do catolicismo, batizando-se com o nome de Raquel Azeredo. Em nome dessa causa e na convicção de que não teria como conciliar a vida conjugal com a prática que a que se devotava, rompeu um noivado com um jovem fazendeiro do sul fluminense. Para tristeza deste que, compreendendo as razões de Raquel, aceitou o rompimento mas permaneceu seu amigo até os dias de hoje. 

     "Os anos que se seguiram testemunharam a luta permanente dessa mulher em todas as atividades que se relacionavam com a educação dos jovens, principalmente daqueles a quem faltavam os pais ou quem deles cuidasse. Suas campanhas, apoiadas sempre no espírito de solidariedade e na fé cristã, conseguiram resultados marcantes embora enfrentando percalços aqui e ali. Milhares foram seus alunos e muitas dezenas seus colegas de batalha em quase três gerações. Mais que minhas palavras falam as imagens que vocês acabaram de ver.  O fato de que sempre inundou de alegria suas ações e os corações dos que as receberam fez dessa mulher merecedora do título que agora  lhe concedemos de Dama de Ouro."                               

     Os aplausos que se seguiram fizeram incontidas as lágrimas que os olhos de Raquel já  insinuavam desde que a solenidade começara. Ao se aproximar da beira do palco, pode a platéia ver que a homenageada se deslocava sobre uma cadeira de rodas. As palmas se intensificam e todos se põem de pé. Na sua simplicidade e genuína sinceridade, ela disse apenas essas palavras:  "Sou feliz porque pude fazer outras pessoas felizes e, em alguns casos, diminuir o sofrimento de alguns. Dou graças a Deus por tudo e, de coração, agradeço a vocês."

 

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