UM HOMEM DA PAZ

    

     Mestre Estevão chegou a Cachoeira do Sul faz pouco tempo. Artesão há longos anos, ganhador de prêmios até no exterior, veio para esta pequena cidade do interior de Minas Gerais para curtir em paz a solidão de sua viuvez. Aos cinqüenta e cinco anos, após um casamento de mais de trinta, viu partir sua querida companheira Luzia. Tentou permanecer nos mesmos ambientes em que ambos viveram por tanto tempo; mas não suportou, preferiu mudar de ares. Não tendo filhos ou parentes próximos, não lhe foi difícil buscar nova vida.

      Com algumas economias e o produto da venda de sua casa em Petrópolis, Estevão alugou uma pequena loja em Cachoeira, onde funcionara uma casa de móveis. O local lhe era muito conveniente pois possuía, nos fundos, uma casinha que serviria para sua residência e oficina. Enquanto estava hospedado no hotelzinho da cidade, o Central, fez algumas melhorias no imóvel concluindo-as com uma pintura geral. Os produtos que trouxera para venda, não muitos, estavam depositados no armazém de uma transportadora. Após transferi-los para a loja e arrumá-los adequadamente, abriu seu negócio ao público com o nome de  Luzia Artesanatos.

     Nos primeiros dias de funcionamento poucos fregueses compraram alguma coisa. A maioria observava os produtos expostos; um ou outro procurava saber se D. Luzia é quem fazia aqueles trabalhos e porque ela não aparecia na loja. Aos poucos, após conhecerem sua história, a curiosidade diminuiu e Estevão pôde, finalmente, ver o movimento ir crescendo devagarinho.  Contrariando os hábitos locais, só abria a loja às dez horas embora acordasse bem cedo. É que, entre sete  e a hora de abrir, trabalhava na oficina.

     Não passou muito tempo  para que Mestre Estevão notasse algo que diferenciava aquela cidade das outras pequenas comunidades do interior: era muito grande o número de pessoas que não se davam, que mantinham rixas antigas quando até mesmo ocorrera crime de morte. A família do Aristeu, dono da farmácia, não se dava com a de Felisberto, o homem do pequeno frigorífico local; Zeferino , o do bazar, proibia os filhos de conversarem com os de Salustiano, o dono da mercearia. Havia outros casos mais envolvendo as principais famílias do lugar. Comentava-se que alguns faziam compras em  Monte Alegre da Serra, a dez quilômetros dali, para não entrar  nas  lojas  de  seus  desafetos.  Segundo   lhe contou  Zé  da  Roda, um tipo popular da cidade, houve um dia em que um dos times de futebol do lugar jogou com braçadeira de luto e o adversário com gorro preto, ambos demonstrando que a rivalidade entre eles ia muito além das quatro linhas; uma coisa verdadeiramente ridícula, grotesca. Depois que tomou conhecimento dessas desavenças e malquerenças, Estevão chegou a pensar em mudar-se de novo; afinal, o que mais queria era viver em paz. Antes, porém, decidiu por em prática um plano que talvez desse certo ou, pelo menos, reduzisse aquele clima litigioso.

     Na primeira oportunidade que teve, num final de tarde, puxou conversa com um menino de seus quatorze anos que entrara em sua loja para perguntar o preço de uma miniatura de avião, em madeira. Conversa vai, conversa vem, ficou sabendo que seu nome era Carlinhos, filho caçula de ‘seu’ Aristeu. "É um bom preço,  mas posso dar um desconto se você aceitar uma sugestão." Um tanto intrigado o garoto indagou do que se tratava. "Estas pequenas flores, em papel, são muito resistentes e até parecem naturais. Ontem esteve aqui uma garota, acho que se chama Clarice, que só não levou um buquê de seis rosas porque  o dinheiro da mesada dela tinha acabado. Se você comprar três para dar de  presente a ela, faço tudo pelos quinze." Mal acabou de falar, Carlinhos emendou:  "O senhor tá doido, essa menina é filha de ‘seu’ Zeferino, do bazar, se meu pai sabe disso levo uma surra." "Mas por que?" indagou Mestre Estevão, acrescentando: "você não pode fazer um agrado pra ela?"  O garoto desfiou um rosário de razões, mas acabou por admitir que talvez pudesse se fosse escondido e ninguém soubesse que foi ele quem deu.  Não era intenção dele bancar o cupido de namorico, mas topou a contraproposta de Carlinhos. Recebeu os quinze reais e separou não três, mas seis flores de papel.

     No dia seguinte, Estevão viu Clarice quando voltava do colégio e chamou-a. "Você ainda está interessada nas flores?" indagou, acrescentando em seguida: "tenho uma surpresa". A garota se aproximou, meio desconfiada, mas respondeu que sim. "Aqui estão, são seis rosas e você não pagará nada." Clarice ficou mais desconfiada ainda e perguntou porque ele fazia isso. "Não se preocupe, o presente não é meu, é de um rapazinho que parece gostar de você." "Não, não posso receber presente de um desconhecido" e caminhou em direção à porta. “Olha, se você fizer segredo, eu digo o nome dele, foi Carlinhos."  Ao ouvir isso a garota reagiu indignada: "O filho de ‘seu’ Aristeu? o senhor tá maluco,  só se for pra eu levar uma surra." "Mas ele gosta de você e parece disposto a enfrentar a censura dos pais", Estevão ponderou tentando convencê-la. "Não é que eu desgoste dele, mas nossas famílias se detestam", Clarice insistiu na recusa. "Tá bem, você leva e diz que foi cortesia da  minha  loja,  assim  não brigam com você;  mas  sabe  que  é  presente do Carlinhos." . A garota, mesmo desconfiada, aceitou e pegou o buquê.

     Na tarde desse mesmo dia, Estevão andou pelo banco conversando com o gerente Licínio que, coincidentemente, também  havia pouco tempo chegara a Cachoeira do Sul. O fato de serem ambos de fora fez com se aproximassem. Ao fim do expediente foram ao bar S. Cristóvão - na verdade um pequeno restaurante onde, entre um tira-gosto e outro  e alguns copos de cerveja, falaram de suas perplexidades ante o clima inamistoso reinante no lugar. Ao final da conversa, Estevão estava convencido de ter ganho um aliado para a sua ‘cruzada pela paz’. À saída, um tanto receosos, cumprimentaram Salustiano que estava sentado, ostensivamente, de costas para Felisberto. Para Gumercindo, o dono do restaurante, esse tipo de situação era comum; embora pertencente a uma das famílias em litígio, procurava, na medida do possível, amenizar o clima em seu estabelecimento.

     Estevão teve uma idéia, logo apoiada por Licínio: realizar uma exposição de artesanato e enviar convites às senhoras da cidade. Traria para o evento um profissional de prestígio, seu amigo de Petrópolis, e ele próprio cuidaria de toda organização. Licínio prontificou-se a conseguir o patrocínio do banco na divulgação; pelo menos uma faixa decorativa na frente do local do evento ele, com certeza, conseguiria.  Convencido por ambos, Gumercindo dispôs-se a ceder um espaço contíguo ao restaurante, de pouco uso, para que a exposição fosse realizada.  Embora não fosse um grande salão, serviria aos propósitos que Estevão tinha em mente. E assim foi marcado o grande dia para dali a três semanas.

     Logo que os primeiros convites começaram a chegar, as discussões nas casas das principais famílias se iniciaram. "Se a família de fulano for, ninguém daqui vai", dizia um. "De jeito nenhum, onde aquela gente põe o pé, nós não vamos", diziam em outra casa. O pobre do Estevão que tinha o sonho de pacificar aquele pessoal, era alvo de uma das famílias: "Quem esse ‘artistinha’ pensa que é, o Papa, O Gandhi? ele que não se meta na nossa vida, vou arranjar um jeito de fazer esse cara desistir." Como foi possível saber-se desses comentários ? as paredes das casas têm ouvidos. Mesmo tomando conhecimento desses ‘desabafos’, Mestre Estevão não se abalou. Recebeu em sua casa o artesão convidado e ambos trataram de concluir os preparativos conforme programado. No dia marcado lá estava ele para abrir a exposição. Com o apoio ostensivo de Licínio,  e um tanto constrangido de Gumercindo, os três  mais Leonardo - o artesão de fora, postaram-se à porta à espera da chegada dos convidados.

     Surpreendentemente, a exposição foi um sucesso. Até as famílias que não se davam compareceram embora evitando os mesmos horários. Mesmo assim, Aristeu e Zeferino se esbarraram sem maiores conseqüências  salvo as caras feias que fizeram. Carlinhos, que saía quando Clarice chegava, não disfarçou a alegria de vê-la de novo, mesmo que rapidamente. Os trabalhos expostos foram muito elogiados, pelo menos era o que deixavam transparecer. E todos receberam um cartão azul com o desenho de uma pomba branca e os seguintes dizeres: "Nada no mundo vale o preço de viver em paz." Ao final, quando só estavam presentes os litigantes menos radicais e outros que eram alheios a essas desavenças, Estevão anunciou que iria dar um curso gratuito de artesanato para senhoras e quem mais quisesse e esperava que todos se interessassem. As vendas foram satisfatórias e alguns itens, principalmente flores de papel, esgotaram.  Ao final da tarde, fechado o salão,  indo agradecer a colaboração  de Gumercindo, Estevão ouviu dele esse comentário: "Você vai acabar recebendo o Nobel da Paz."

     O tempo foi passando, Mestre Estevão tornou-se mais conhecido e estimado; não apenas pelo trabalho artesanal de qualidade e a forma amistosa com que tratava todos, mas, sobretudo porque cada palavra ou gesto seu expressava  o desejo de aproximar as pessoas. Aos poucos, nas conversas que mantinha com os amigos Licínio e Gumercindo, tomava conhecimento de algum fato, ou mesmo indício, de que as coisas estavam mudando para melhor em Cachoeira do Sul. As notícias mais recentes davam conta de que na última reunião da Sociedade Comercial os assuntos foram debatidos em clima, senão amistoso, pelo menos não litigioso; e mais ainda, Carlinhos e Clarice andavam de namorico sem que suas famílias se opusessem.

     Dois anos se passaram desde a chegada de Mestre Estevão. Que diferença ! Convidaram-no para a festa de aniversário da cidade e, ainda por cima, prestaram-lhe uma homenagem dando-lhe o diploma de "amigo da cidade e da paz". Agradecendo a honraria, Estevão fez referência aos amigos que o apoiaram desde o início: Licínio, Gumercindo e Padre Honório, este sempre discretamente pois queria o entendimento, mas receava indispor-se com os litigantes de outros tempos.

     E um clima de paz passou a prevalecer em Cachoeira do Sul.

 

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