O DETECTOR DE MENTIRAS

 

     "Isabel, tenho de chegar tarde, o trabalho não ficou pronto e o cliente precisa dele amanhã cedo, beijinho." Fragoso pôs o telefone no gancho e sorriu marotamente para os colegas que o esperavam à saída do escritório. Era uma mentira, estava claro, mas como a mulher dele poderia saber? No máximo, desconfiar.

     Acontece que Nestor, um colega de Fragoso, vinha trabalhando, havia algum tempo, num dispositivo eletrônico capaz de denunciar uma mentira pelo simples tom de voz de quem a pronunciasse. Era um pequena antena que lembrava as varinhas mágicas que alguns nordestinos utilizam para localizar água no subsolo. A diferença é que esse nosso professor Pardal utilizava um varinha metálica ligada a um quase invisível microcomputador. Bastava que uma mentira fosse dita para que a anteninha balançasse. Foi isso o que aconteceu quando Fragoso falava com a mulher pelo telefone. Ao ver que o dispositivo funcionou naquele teste, Nestor deu-se por satisfeito mas nada revelou aos colegas.  

     Para que a invenção ficasse completa seria necessário um pequeno visor com uma escala, de 0 a 10, para permitir uma avaliação mais precisa da mentira. Este dispositivo ainda dependia de mais alguns estudos que Nestor ainda não havia concluído. O objetivo da escala seria determinar a intensidade ou a qualificação da mentira. Por exemplo, até 3 seria mentira leve ou parcial; de 4 a 7, a mentira seria caracterizada como meia mentira ou meia verdade e, finalmente, de 8 a 10, mentira grave, omissão total ou invenção. Tão logo  o detector ficasse pronto, era intenção de Nestor utilizá-lo experimentalmente entre colegas sem, contudo, revelar a real função do aparelho. Diria, talvez, que a varinha serviria para  determinar o estado de espírito da pessoa, uma brincadeira, nada mais que isso.

     Dois meses depois do primeiro teste, Nestor levou um susto que quase lhe causou um ataque cardíaco. Estava ele experimentando o produto final, com visor e tudo, quando a mulher - que estava próxima dele,  ligou a televisão exatamente na hora em que um político dos chamados "tradicionais" falava sobre suas intenções de candidato. O ponteiro do visor disparou até "nove"  rapidamente e a varinha tremia quase chegando a cair da mão de Nestor.  Este fato o surpreendeu por funcionar mesmo através da televisão, coisa que ele jamais imaginara pudesse ocorrer. Assim, pensou ele, o aparelho poderia funcionar  através do telefone,    do    rádio  e também da   Internet; o importante é houvesse uma voz para ser captada. Agora não tinha dúvidas, ele havia inventado um aparelho revolucionário e tinha tudo para patenteá-lo.

     Antes, porém, de tomar o caminho do registro da patente, Nestor realizou mais alguns testes; em todos, sem exceção, observou a eficiência da sua varinha mágica. Um desses testes ele fez com uma propaganda veiculada pela televisão. Bastou que a apresentadora do produto começasse a falar nas maravilhas do emagrecedor para que o ponteirinho disparasse, chegando a "dez", e a varinha ficasse agitada. Um outro teste ele fez num ônibus, sentando-se próximo de um casal - tudo indicava serem namorados, que fazia promessas recíprocas de fidelidade e dedicação. A varinha se agitou, mas não tanto, e o ponteiro não passou do "seis".  Estes testes deram a Nestor a segurança para buscar o registro oficial de seu invento.

     Uma pedra, infelizmente, obstruiu o caminho do nosso inventor. Tivera ele a idéia de fazer um último teste antes de partir para o registro, pois acrescentara mais um dispositivo no aparelho, que era um suave e intermitente silvo que acusava a captação da mentira e servia para situações em que fosse necessário colocá-lo num bolso ou numa bolsa. Além do mais era sua intenção cercar-se do máximo de certeza sobre a eficiência da varinha mágica. Assim é que, sabendo que um certo candidato - por sinal muito conhecido na cidade, iria responder a perguntas de seus possíveis eleitores, em reunião num clube local, Nestor apressou-se em lá comparecer. Havia um público considerável no salão nobre do clube mas, mesmo assim, Nestor conseguiu acomodar-se próximo do palco de onde falaria o candidato, de forma a testar a  sensibilidade do aparelhinho que, dissimuladamente, levava no bolso da jaqueta.        

     Eis que, já na primeira resposta dada pelo candidato, o aparelho começou a apitar e alguém chegou a confundir o som com o de um telefone celular. Um dos seguranças se aproximou do Nestor exigindo que ele desligasse o aparelho. O nosso professor Pardal, ingenuamente, disse que não se tratava de um celular mas sim de detector de mentiras. Para provar o que dizia, tirou o aparelho do bolso e mostrou que a anteninha se agitava, o ponteiro  chegava a "dez" e o apitinho não parava. "É mentira o que respondeu o candidato", disse Nestor, irritando o segurança que o  puxou pelo braço e o denunciou às outras pessoas da comitiva do candidato. Quando este tomou conhecimento do que se passava, interrompeu a entrevista e exigiu que nosso inventor lhe entregasse a varinha mágica e gritava  que iria processá-lo  por calúnia  e  difamação.  Por  interferência  de algumas pessoas moderadas a caso se encerrou, naquele dia, com a saída de Nestor do local levando seu aparelho mas, também, a certeza de que seria processado pelo candidato.

     Como pode observar o leitor, a pedra referida anteriormente foi na realidade uma pedrinha. A pedra mesmo, veio com a notificação que o oficial de justiça entregou ao Nestor dois dias depois. A ação rápida deveu-se, certamente, ao prestígio do candidato. Ao comparecer perante o Juiz, levando a varinha mágica, havia jornalistas, radialistas e repórteres de televisão com suas câmaras. Tudo isso pelo inusitado da ação, pois jamais alguém fora processado por ter chamado uma pessoa de mentirosa com base num dispositivo eletrônico inventado pelo próprio réu.

     "O senhor sabe do quê e por quem esta sendo processado?",  perguntou o Juiz, do alto de sua posição de magistrado. Nestor, sem se preocupar com a austeridade do ambiente, deu-lhe a seguinte resposta:   "Pelo que sei, foi do Dr. Porfírio Chaves quem me processou por causa da minha varinha mágica, quer dizer, do meu detector de mentiras. Mas eu não tenho culpa, o aparelho não mente, tenho certeza. Se V. Excia. quiser, eu posso fazer uma demonstração aqui mesmo." O juiz, um tanto intrigado com uma situação jamais vista, deu uma prova de boa vontade e disse que concordava, perguntando a Nestor como deveria fazer para experimentar o aparelho. "V. Exa. dirá duas frases, uma delas verdadeira. O meu aparelhinho, que ficará sobre sua mesa,  acusará quando disser a frase mentirosa,"  falou Nestor com a maior simplicidade deste mundo. O juiz, em seguida disse:  "Getúlio Vargas foi presidente do Brasil por duas vezes", o detector nem deu sinal de vida.   Após   alguns segundos  falou:  "No Brasil o índice de corrupção é muito baixo."  Mal acabou de pronunciar esta frase e a varinha começou a balançar, o apito disparou e o ponteiro chegou a "dez". Diante da prova cabal da eficiência do aparelho, o juiz  ficou em situação difícil parecendo não acreditar no que via. Talvez por isso mesmo não tenha tomado um decisão sobre a questão, prometendo fazê-lo num prazo máximo de três dias.

     Nestor aguardou, ansioso, pela decisão final pois a condição de sub judice não lhe permitia prosseguir no processo de licenciamento de sua invenção. Nesse ínterim o Juiz mergulhava em sua biblioteca à procura de elementos para que pudesse fazer um julgamento seguro. Afinal, o aparelho funcionava realmente, ele próprio pôde testemunhar. No entanto, a possibilidade de seu uso sem restrições por parte de quem o portasse poderia levar a constrangimentos  e,  muito  provavelmente, a conflitos. Com toda certeza quem fosse apanhado falando mentira reagiria e contestaria a eficiência do aparelho e, no auge de uma discussão, tentaria destruí-lo. Além do mais, os mentirosos apanhados em flagrante alegariam que seu direito à livre manifestação do pensamento estaria sendo bloqueado e, mais ainda, estaria havendo invasão de privacidade.

     Antes do prazo prometido,  contudo,  S. Excia. o  Dr. Ariosto Carvalhal, juiz encarregado da ação pôs por terra o sonho de Nestor, dando ganho de causa ao candidato. Embora não punisse material ou pessoalmente o réu, determinava na sentença que seu detector de mentiras, o tal aparelhinho, a varinha mágica, não poderia ser utilizado e, muito menos ser patenteado. Seu uso contraria o item X do Art. 5. da Constituição que estabelece que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, etc. etc.. Ora, se o tal aparelhinho desmascara publicamente qualquer pessoa, mesmo que denunciando uma mentira, está atentando contra os direitos individuais. Por conseguinte, Nestor só poderia utilizar sua invenção para brincadeiras em sua própria casa. A decisão judicial fez a alegria de muitos políticos e burocratas que já não precisavam temer a indiscrição e a sinceridade da varinha mágica.

     Decepcionado e triste, quase chorando, Nestor liga pra casa para informar à mulher a decisão. "Leonor, tudo bem, meu invento foi liberado." Nem bem completou a frase, o detector - que estava em sua mão direita, começou a apitar tristemente; a varinha a balançar sem muito empenho e o ponteiro indicava "três" sem muita vontade. Afinal, na verdade, era uma mentira, mas uma mentirinha de nada, apenas um jeitinho de se auto-consolar. 

 

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