LUTA CONTRA O PASSADO

 

     Quando Péricles de Carvalho Sena chegou àquela pequena cidade do sul do Espírito Santo não despertou maior atenção. Embora não fosse grande o número de estranhos que chegava à cidade diariamente, sempre havia um ou outro. A maioria dos passageiros que desembarcava, contudo, era das cidades vizinhas ou mesmo moradores locais em viagem de retorno. Assim, reclamando muito do calor naquela tarde de março,  esse forasteiro deixou o ônibus e foi alojar-se no Hotel dos Viajantes, ali bem próximo. Iria, então, descansar da longa viagem desde Belo Horizonte fazendo três baldeações.

     Atenção mesmo despertou a obra que Péricles começou num terreno amplo às margens da estrada de saída da cidade na direção de Cachoeiro. Os comentários começaram na loja de materiais de construção de Zeca Boiadeiro onde foram feitas as primeiras compras de pedras, cimento e demais itens necessários às fundações do muro e da casa. Onde, também, Péricles buscou informações sobre os profissionais de que necessitaria, principalmente pedreiros e serventes. Muito reservado, Péricles não mencionou que tipo de construção estava iniciando mas fez questão de mostrar um documento da Prefeitura Municipal, obtido antes de chegar à cidade, pelo qual estava autorizado a iniciar a obra. A todos com quem conversara, ele deixou impressão favorável. Homem forte, já na casa dos cinqüenta, embora econômico em palavras, irradiava simpatia.

 

     Aos poucos a construção foi tomando forma. Após os muros em volta do terreno de oitocentos metros quadrados, menos de um mês após iniciadas as obras, já as paredes começavam a subir sobre fundações bem estruturadas. Os curiosos que iam até o local indagavam-se sobre o que estava sendo construído. Como residência era grande para um homem só - pelo menos assim pensavam, que ele vivesse só; seria uma escola, um hotel, uma fábrica? A placa da licença municipal não informava o objetivo da construção. Péricles, por sua vez, não  revelava sequer aos operários o que ali estava sendo levantado. Como ele próprio era o mestre-de-obras, não havia homem de confiança a quem revelasse o segredo.

     Passaram-se cerca de quatro meses e a construção tomou forma. Um prédio de dois pavimentos com várias salas e quartos amplos e demais cômodos de serviço. De arquitetura simples e funcional, chamava a atenção pela área construída, no pouco setecentos metros quadrados computando-se os dois pavimentos. Definitivamente, não parecia  que  fosse  apenas uma casa para moradia. Que seria, então ? A população local não demoraria muito para descobrir.

     O inverno chegara muito forte, bem diferente daquele a que estava acostumada a gente de Riacho do Sul - esse o nome da cidade. Era fim de julho, uma tarde muito fria, quando o carro da polícia civil estadual parou em frente ao prédio da delegacia local. A chegada desse carro chamou a atenção por ser um veículo do ano, bem diferente do velho opala que há anos circulava no lugar. Encapotados, dois agentes policiais saíram do veículo e entraram no prédio. Após cumprimentarem o detetive que os recebeu, foram acomodados na sala do delegado que, segundo lhes fora informado, logo estaria de regresso. De fato isso ocorreu, não se passaram dez minutos e o Dr. Eugênio Carvalhal, o delegado, chegava de Poço Fundo, um distrito próximo, naquele opala cansado. Os dois policiais se identificaram, era o inspetor Álvaro, da Polícia Federal e o detetive Ferdinando, da Polícia Civil do Estado.

     "Dr. Eugênio, esta é a foto de Sérgio da Fonseca Pontes que, segundo informações obtidas pela agência da PF em Belo Horizonte, deve estar por aqui ou em localidade próxima. Teria o colega ou alguém de sua equipe visto este cidadão? É um tipo forte, por volta de cinqüenta anos", falou o Inspetor Álvaro passando a foto, em seguida, ao delegado. "É evidente que, embora esta seja uma cidade pequena, não conhecemos todos os habitantes e mesmo os estranhos que aqui chegam. Mas, podemos investigar.  Trata-se  de  algum  delinqüente perigoso, assassino?", respondeu e perguntou o Dr. Eugênio. "Não, não se trata de assassínio, é crime financeiro, mas vultoso. Se puder, dê uma vasculhada amanhã. Nós vamos pro hotel, se descobrir alguma coisa ainda hoje, avise. Até amanhã", falou Álvaro, despedindo-se.  O Dr. Eugênio ficou olhando para a fotografia tentando lembrar-se de ter visto alguém parecido com esse Sérgio. Chamou o detetive Pedro, o que recebera  os    policiais    de fora,   mostrou-lhe  a foto e perguntou: - já viu esse cara alguma vez?

 

Na loja de Zeca Boiadeiro o assunto era a festa da cumeeira que ‘seu’ Péricles ia realizar no domingo seguinte. O madeiramento já estava quase pronto, era só assentar as telhas. O chope já estava encomendado e, "se não chover, vai ser um festão", dizia, empolgado o próprio Zeca. Os que ali estavam, depois do trabalho, eram,  na maioria, trabalhadores da obra em questão. A certa altura chega Pedro, o detetive, morador das imediações. Sabedor da festa, pergunta, curioso, se Zeca conhece bem o dono da construção. "É uma boa pessoa o ‘seu’ Péricles, não faz tanto tempo que chegou e já virou amigo de todo mundo", respondeu Zeca. Aquele  "não faz tanto tempo que chegou" despertou a atenção do detetive, homem experimentado na arte das investigações. No dia seguinte procurou o delegado.

     Tão ansioso ficou Pedro que nem esperou o delegado chegar para o expediente, foi procurá-lo em sua própria casa. Estava certo de ter descoberto, por mero acaso, o cidadão procurado. Quando falou da construção e de que não fazia muito que o tal Péricles tinha chegado a Riacho do Sul, o delegado admitiu que a pista era boa. Para confirmá-la, entretanto, precisava ter certeza da identidade do forasteiro. Recomendou ao auxiliar que mantivesse absoluto sigilo sobre o caso e disse que tomaria as providências adequadas.

     Não foi difícil para o delegado descobrir que o suspeito estava hospedado no Hotel dos Viajantes; afinal, este modesto estabelecimento seria o primeiro  local a ser procurado. Depois, conversando com os policiais Álvaro e Ferdinando,  Dr. Eugênio sugeriu que um dos dois buscasse aproximar-se do tal Péricles, ganhando-lhe a simpatia e convidando-o para um drinque. Dessa forma, talvez se  pudesse conseguir impressões digitais do procurado num copo ou outro objeto que ele tocasse. Se isso fosse conseguido, não seria difícil descobrir-lhe a verdadeira identidade. Caso o exame indicasse tratar-se de outra pessoa que não o suspeito, ninguém precisava ficar sabendo dessa tentativa.

     À noite desse mesmo dia, Álvaro aproximou-se de Péricles no refeitório do hotel dizendo-se interessado em construir uma casa naquela cidade. Sabedor de que ele estava levantando um pequeno prédio nas cercanias,  buscava informar-se sobre preço de terreno, mão de obra disponível e fornecedores de materiais. Evitando a todo custo dizer algo que pudesse revelar sua verdadeira condição de policial, Álvaro pode manter uma conversa com Péricles e atingir seu objetivo. À certa altura, o policial tomou os copos em que beberam água mineral e levou-os ao bar, alegando que o atendente estava ocupado em outra mesa, ele mesmo pediria outros para que pudessem tomar o vinho que  ele fazia questão de oferecer. É claro que ordenou que não tocassem no copo em que Péricles havia bebido. Despediram-se, recebendo Álvaro um convite para visitar a obra do suspeito.

     No dia seguinte ao amanhecer, Ferdinando partiu para Vitória levando o material para exame e fazer contato com Belo Horizonte visando identificar o dono das digitais então obtidas. Com os recursos da Internet, isto não seria dificil. Álvaro, é claro, permaneceu em Riacho do Sul para não causar estranheza.  Afinal, na conversa da noite anterior, ele não mencionara qualquer intenção de viajar na manhã seguinte.  Dois dias depois Ferdinando estava de volta.

     Acertaram na mosca. Péricles não era Péricles, era Sérgio. Sérgio da Fonseca Pontes, mineiro de Divinópolis, quarenta e nove anos, divorciado, economista, antigo funcionário de um tradicional banco fundado em Minas Gerais, com residência fixa em Betim, na grande Belo Horizonte. Diante da prova incontestável, só caberia uma providência: prendê-lo com base no mandado que havia sido expedido contra ele. Esta tarefa foi confiada ao Dr. Eugênio, o delegado. Surpreso, mas nem tanto, Péricles assustou-se ao ser procurado pelo policial e ser chamado de Dr. Sérgio. Tentou negar, tibiamente, que tivesse esse nome. Em seguida admitiu não chamar-se Péricles e, polidamente, pediu ao delegado que não o algemasse. Em seguida foram para a delegacia onde Sérgio da Fonseca Pontes, sem coação de qualquer tipo e na presença de um defensor público chamado pelo delegado Eugênio, assinou o termo de confissão que vai a seguir.

     "Não me surpreendi com minha prisão, esperava que isso acontecesse em algum momento.  Há pelo menos dois anos venho driblando o cerco policial, só tive descanso quando fiquei cerca de seis meses em Palmas, capital do Tocantins. Assino esta confissão sem sofrer qualquer pressão, salvo, é claro, o fato de ter sido preso. O delito original, o desfalque no banco, de cerca de seiscentos mil reais, ocorreu há quatro anos em Belo Horizonte, na agência Tupinambás. Utilizei indevidamente minha posição de confiança naquele estabelecimento e, via manobras eletrônicas, transferi para minha conta em outro banco, a importância citada. Devo reconhecer a agravante de tê-lo feito contra uma correntista idosa, viúva de um fazendeiro de Pitangui, cujos negócios a mim confiava. Após meu ato delituoso, ainda permaneci no banco por dois meses e, alegando desejo de ir para o interior do estado, pedi demissão. Cometi um segundo crime quando comprei a falsa identidade de Péricles de Carvalho Sena, lá mesmo em Minas Gerais. Em meu favor, se é que isso vale alguma coisa, afirmo que durante os vinte e cinco anos de minha vida profissional tive um comportamento absolutamente correto em todos os sentidos, tanto nos oito anos em que trabalhei na Mineradora X quanto nos dezessete de minha carreira no Banco Y até que cometesse a burrice do desfalque. Mais ainda, jamais portei uma arma mesmo na condição de fugitivo. Sei que a ninguém interessa saber as razões desse meu ato, todavia estando eu declarar toda a verdade sobre essa minha desdita, conto os antecedentes dessa verdadeira loucura. Casei-me aos vinte e sete anos com uma bela mulher, Anita; por quinze anos convivemos num relacionamento morno, às vezes litigioso. Imagino que a razão de nosso desacerto, com certeza porque não nos amássemos o suficiente, foi a frustração dela por não ter tido um filho em função de minha esterilidade descoberta após três anos de nosso casamento. Enfim,  divorciamo-nos quando eu estava com quarenta e dois anos. Dois anos depois conheci Ivone, divorciada, que virou a minha cabeça. Para acompanhá-la no seu jeito de viver, queimei todas as minhas economias e, pressionado por aquela vida pródiga, acabei por praticar o desfalque; antes já me endividara, o que contribuiu para o ato delituoso.  E, como diz o adágio - desgraça pouca é bobagem, essa mulher me deixou alegando não querer viver com um foragido da polícia. Assim, vivi esses últimos quatro anos até que, arrependido, decidi usar o resto do dinheiro que sobrou numa atividade benemérita. O prédio que eu estava construindo aqui em Riacho do Sul seria uma escola-oficina e abrigo para crianças carentes da região. Seria um instituição auto-suficiente com os serviços que prestaria. Ainda disponho de duzentos mil reais para colocar na obra. Acho que a viúva concordaria com esse meu gesto. Enfim, ironia da vida: fui apanhado quando tentava me redimir, acertar meu rumo."

     Com o carro da polícia que conduzia o falso Péricles passando em frente à obra que ele estava construindo, termina a história de um sujeito que não levava mesmo jeito para ser bandido.

 

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