A INCRÍVEL HISTÓRIA DE ZÉ DO ANJO

(CRER OU NÃO CRER, EIS A QUESTÃO)

                          

     José Ribamar da Silva, maranhense como indica o Ribamar, ganhou o apelido de "Zé do Anjo" por causa de  suas peripécias e as agruras por que passou  seu anjo da guarda. Quando saiu de Bacabal - mais precisamente  de  uma  pequena  vila nas proximidades dessa cidade maranhense, o nosso Ribamar tinha pouco mais de dezesseis anos e se viu forçado a migrar para o sul. Seu pai, viúvo, recém falecera e,  como a adivinhar que não permaneceria muito tempo entre os vivos, recomendara ao filho que se ficasse  sozinho  no mundo procurasse o tio Zacarias, seu irmão, que fazia algum tempo descera pra S.Paulo.  Dizia o pai que ele  trabalhava numa fábrica de automóveis, em S.Caetano.    

     Parecendo condoer-se das agruras do rapaz, logo “baixou” para ajudá-lo o seu anjo da guarda o qual jamais poderia imaginar, apesar  de sua vivência  celeste, o enorme sacrifício que seria dar cobertura às estripulias desse Ribamar.  A primeira tarefa  indigesta  -  apenas uma amostra do que viria pela frente,  aconteceu  quando da viagem do rapaz para S.Paulo, em  princípios de 1970. O pau-de-arara que o conduzia, junto a muitos outros conterrâneos, na  primeira  etapa  da viagem  no rumo de Teresina, no Piauí,  tombou numa curva já bem perto  do  Rio Parnaíba.  Pra sorte  da  maioria  dos  passageiros,  o  veículo corria  a pouca velocidade e a queda não lhes causou ferimentos mais graves; apenas Ribamar desapareceu na confusão que se seguiu. Um passageiro que saiu ileso do acidente dispôs-se a procurá-lo, apesar da escuridão da noite, indo encontrá-lo enganchado de cabeça para baixo no galho de uma árvore ribeirinha. Mais estranho que a posição do rapaz era o que ele falava para alguém invisível, como que respondendo às reprimendas que só ele ouvia:  "Não tive culpa, quando caí no mato fiquei meio tonto e tentei encontrar o resto do pessoal, mas segui na direção errada e rolei pela ribanceira. A sorte foi que alguém me segurou e me pendurou aqui." "Pois fui eu, seu anjo da guarda. Estava cochilando, acordei com o barulho do acidente e quando dei por sua falta corri rápido atrás de você, sorte sua que o encontrei logo. Se não ..."  Depois que conseguiu descer da árvore, muito assustado, não só com o acidente mas, principalmente, por estar conversando com um ser incorpóreo, Ribamar teve de ouvir mais algumas palavras desse ser invisível.  "Meu nome é Gabriel - aliás quase todos os anjos têm esse nome e não me pergunte por quê. Fui designado para dar total cobertura a você, não apenas nesta viagem, mas por toda a sua vida terrena. Uma condição, entretanto, tem de ser respeitada; sempre que você perceber algum risco iminente chame por meu nome, não importa onde você esteja. Se não fizer isso, lavo minhas mãos, quer dizer, não me responsabilizo pelo que venha a acontecer. Entendeu?"  Depois do sucedido, todos seguiram a pé até Teresina e se acantonaram numa praça até o dia amanhecer quando alguém, inspirado por Gabriel, providenciou o resgate do caminhão. A explicação dada por Ribamar para seu estranho diálogo com o invisível não convenceu  aqueles homens simplórios, que preferiram por tudo na conta de uma possível pancada na cabeça.

     Mesmo com  dinheiro contado, Ribamar conseguiu comprar uma passagem de ônibus para seguir, pelo menos, até Petrolina, em Pernambuco. O pouco que sobrou mal deu para um sanduíche de rodoviária. Dali pra frente tudo ia ficar por conta do amigo Gabriel. Por volta de nove da manhã, com o calor piauiense já avisando que não daria trégua, o ônibus partiu para uma viagem de, no mínimo, doze horas até aquela cidade pernambucana. Gabriel, como seria de se esperar de um anjo da guarda, acomodou-se no mesmo assento de Ribamar e, imaginando ter algumas horas de descanso, decidiu tirar uma soneca. Mas - e sempre existe um "mas", ia a tarde pelas duas horas quando já se aproximando de Picos, logo após a parada para almoço, o ônibus resolveu demonstrar seu cansaço e decidiu parar. Afinal, com mais de quinze anos de estrada, era natural que sentisse os efeitos daquela tarde calorenta. Sem previsão para retomada da viagem, pelo menos foi o que informou o motorista, alguns passageiros deixaram o veículo, entre esses Ribamar e seu invisível escudeiro.

     Após caminhar uns dois quilômetros, nosso herói deu com os costados nos arrabaldes de Picos, onde um circo mambembe completava sua instalação para estréia na noite daquele dia. Sem se fazer de rogado, Ribamar foi-se intrometendo no grupo que estendia a lona e, com grande disposição, deu uma ajuda significativa para que essa etapa fosse concluída. A recompensa não demorou: foi convidado a comer um pedaço de carne de sol  com os demais trabalhadores. Gabriel que,  por sua própria natureza, dispensava comidas e similares, alegrou-se por ver seu protegido alimentado e feliz junto àquela turma. E tudo estaria muito bem se não surgisse um convite inesperado que o fez arrepiar-se, apesar de anjo:  como o "partner" da atiradora de facas fora atacado de forte piriri, o dono do circo vendo a disposição de Ribamar, convidou-o para substituir o "artista" faltante. O convite foi aceito sem titubeio para desespero de Gabriel que já imaginava o trabalho que teria àquela noite. Principalmente  porque soube que o efetivo era mais baixo e mais magro do que seu protegido. Não havendo tempo para um treinamento com o novo alvo, a atiradora teria muita dificuldade para ajustar a direção das facas. Mas, pensava o anjo, são esses desafios  o que leva um ente como eu ser escolhido.

     Com uma platéia animada, de gente modesta e ávida por assistir a esses espetáculos que esporadicamente apareciam por ali, o função começou. A bandinha do Circo Brasil atacou uma daquelas  músicas habituais. Vieram os palhaços com suas roupas folgadas e caras muito pintadas, os malabaristas, o elefante do banquinho, enfim aquela seqüência de números tradicionais. Logo após o mágico, que era dublê de palhaço, e antecedendo o número final do domador de leões, o homem da cartola azul anunciou, em seguida ao rufar do tambor: "Senhoras e senhores, com vocês, Soraya, a maior atiradora de facas que já se apresentou no Nordeste!"  Numa  roupa cheia de brilhos, a artista faz uma reverência para a platéia e apresenta seu "partner", o destemido Zé Ribamar. A seu lado, Gabriel soprou-lhe no ouvido:  "Não se mexa, fique o mais calmo que puder, o resto deixe comigo."  Após o suspense habitual, o primeiro arremesso. A faca segue na direção na perna direita do nosso herói e, para sorte sua, fixa-se na tábua a uns poucos centímetros de seu corpo. Assim foram o segundo, o terceiro e o quarto, todos passando perto sem atingir o corpo de Ribamar. A essa altura, as facas já formavam um cruzeiro. A quinta faca seria arremessada entre o braço esquerdo e o corpo. O silêncio é total, Soraya se prepara, mira e arremessa.  Nessa fração de segundo ocorre o inesperado: a faca que, por um erro, seguia certeira para atingir o coração do Zé, se desvia nos centímetros finais e se fixa na tábua. Susto, aplausos e gritos de milagre, milagre, milagre. Muito emocionada, a atiradora se abraça a nosso herói que, muito calmamente, diz apenas :  "Foi nada não, dona. Foi Gabriel, meu anjo da guarda que desviou. Olha ele ali."  Soraya nada vê e faz um gesto de quem acha que o cara é meio pancada. Assim ou assado, passa a chamá-lo, dali em diante, de Zé do Anjo.  

     Entusiasmado com sua atuação, Zé do Anjo decide acompanhar o circo. Garantidos o que comer e onde dormir, juntando os trocados de suas "apresentações" que variavam segundo as circunstâncias, seguiu em frente. Durante cerca de três meses viajou por Petrolina, Senhor do Bonfim, Jacobina, Irecê, Barreiras e acabou dando com os costados em Brasília, mais precisamente em Sobradinho, uma cidade-satélite. Nesse tempo foi ajudante de domador, lavador de animais, "partner" da atiradora de facas - e nisso já era um craque graças à ajuda de Gabriel, fez figurações com os palhaços, enfim, efetivou-se como membro da equipe. O trabalho de maior risco para Gabriel nessa travessia foi quando, já a se aproximando da capital federal, a caravana circense deu abrigo a um grupo que se dizia retirante mas que, conforme se viu depois, eram remanescentes de uma turma de homens em armas, desarmados. Como era comum na ocasião, a repressão política era forte e não demorou muito para que a "troupe" fosse interceptada pois  aqueles   "retirantes"  já  vinham  sendo  seguidos  desde o interior baiano. O fato de o grupo perseguido ser composto, em sua maioria,  por jovens, levou os militares a incluir Zé do Anjo no grupo "subversivo"; afinal foi o único que, além dos "retirantes", não apresentou qualquer documento que o vinculasse ao grupo circense. E assim, acompanhado de Gabriel, que topava tudo menos envolver-se em questões políticas, lá se foi o nosso Zé arriscando-se a enfrentar os severos castigos a que eram submetidos os "subversivos". Pra sorte sua, mais uma vez, Gabriel agiu: soprou no ouvido do oficial encarregado do inquérito a verdadeira história de nosso herói. O militar, visivelmente atordoado, voltou ao grupo do circo e comprovou o depoimento do anjo. Muito intrigado com o que ouvira deste e  sua confirmação, voltou a quartel imaginando-se possuidor de poderes espirituais jamais imaginados e, mesmo enfrentando a incredulidade dos demais oficiais, mandou que se soltasse o Zé. Livre, pode ele comemorar com os companheiros, e o anjo também, a conquista do tri-campeonato de futebol. E viva o Brasil!

     Dois anos depois, Zé Ribamar já estava definitivamente integrado ao circo. Era um quase-artista e já se aventurava nos saltos do trapézio. Não levava muito jeito mas insistia.

     O circo, que se juntou a outro mais bem aparelhado, continuava na sua trajetória e depois de mambembear pelo triângulo mineiro e pelo noroeste paulista acabou por se arranchar nas proximidades da capital paulista. Num terreno baldio de Taboão da Serra, usualmente utilizado para esse fim, o Circo Brasil devidamente instalado, anunciou sua estréia para o sábado seguinte à chegada. Deslumbrado que andava com suas "perambulâncias" circenses, nosso Ribamar quase esquecera de seu objetivo inicial que era encontrar o tio. Mas, ao saber por intermédio de Soraya,  que a cidade em que se encontrava agora  não ficava muito distante de S. Caetano, pediu-lhe que o ajudasse a procurá-lo na primeira folga após a estréia.

     Tal como ocorrera em Picos, uma oportunidade surgiu para que Ribamar substituísse um titular. Aconteceu que um dos elementos do trio de trapezistas ficou impossibilitado de atuar e, por coincidência , em razão de um forte piriri. O agora Zé do Anjo, com coragem e também com irresponsabilidade, talvez confiando no seu guarda-costas celeste, assumiu que faria o número. Afinal, pensava ele:  "Os meus treinos não foram bons?  Só caí umas poucas vezes ... na rede!"  Gabriel, sabedor do risco e da ainda limitada capacidade do artista, ameaçou:  "Se você insistir nessa maluquice eu desisto, vou cuidar de alguém menos 'audacioso', estou cansado de tirar você de situações difíceis."    Ante  a  resistência  de  Zé em desistir, o anjo falou-lhe, peremptoriamente:  "Está bem, faça sua loucura e seja feliz."

     Circo lotado, os números preliminares apresentados e aplaudidos, e o homem de cartola dourada anuncia: "Senhoras e senhores, agora com vocês o grande trio de trapezistas de fama internacional Bill, Alice e - estreando nesta noite, Zé do Anjo!" Aplausos, e em seguida, silêncio. Iniciado o número, Bill e Alice fazem diversas acrobacias arriscadas e o Zé apenas no balanço aguardando sua vez e esperando que Gabriel desse as caras. Não demora e a parte mais arriscada vai começar. É o clímax, Bill está no topo, de um dos lados e se lança num dos balanços para pegar Alice que, saltando no outro balanço solta-o, gira no espaço e segura nas mãos de Bill, com absoluta precisão. O circo quase vem abaixo com os aplausos. Agora é a vez do nosso herói, Ribamar, o Zé do Anjo. Anjo, que anjo? Gabriel já se mandou! O mesmo que fez Alice deverá fazer o Zé.  Suspense.  Bill desce no seu balanço, Zé se atira, faz o giro e segura-se nas mãos de Bill com precisão absoluta. O público aplaude e, a pedidos, os dois decidem repetir o número. Tudo recomeça até que...Zé não conseguindo segurar-se com firmeza,  cai espalhafatosamente sobre a rede, sobe com o impulso e vai chocar-se violentamente no picadeiro. Mas, para espanto geral da platéia, levanta-se lépido e como se nada houvesse acontecido, curva-se para agradecer os aplausos e os gritos de milagre! milagre! Zé olha para o lado, certo de que Gabriel alí estava mas não sente sua presença. Cai em si e desmaia. Quando se recupera ouve: " Você é mesmo um cara de sorte, Gabriel me contou sua história e resolvi interferir a seu favor. Quando vi que ia se estatelar no chão, amorteci a queda,  mas não pretendo continuar, você é abusado demais"; era Rafael, um outro anjo, quem falava. A essa altura, José Ribamar da Silva colocou plural no apelido, passou a ser "Zé dos Anjos". E por mais que contasse essa história ninguém acreditava.

     A partir desse dia, o nosso Zé passou a ser mais cauteloso, afinal não era sempre que podia contar com anjos da guarda tão prestimosos, atentos e dedicados. Conseguiu localizar seu tio, contou-lhe suas incríveis aventuras mas reafirmou: "Vou continuar no circo, agora sou artista, tenho mais juízo e tenho certeza de  que Gabriel vai continuar me ajudando e, se por acaso não estiver presente, Rafael sempre dá um jeito. É uma questão de fé."

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