artigo

A Cidade de Deus dos Adolescentes Negros

Texto de : MARIA DA PENHA NERY � Matr�cula: 04/42747

            �Cidade de Deus� � um filme brasileiro realizado em 2002, sob a dire��o de Fernando Meirelles e co-dire��o de K�tia Lund. No elenco est�o: Matheus Nachtergaele, Seu Jorge, Alexandre Rodrigues e Leandro Firmino da Hora.

O roteiro de Br�ulio Mantovani � baseado no livro hom�nimo do antrop�logo Paulo Lins. A hist�ria narra um per�odo de 20 anos nas vidas de um grupo de habitantes do conjunto habitacional Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, constru�do nos anos 60. Baseado em fatos reais, o filme retrata o crescimento do tr�fico, do crime organizado no Brasil e a intensifica��o da condi��o de gueto e da viol�ncia nas favelas.

No filme, h� o narrador Buscap� (Alexandre Rodrigues), menino da favela, que mostra a realidade do Brasil, o desperd�cio e o potencial de sua juventude. A veracidade tamb�m est� presente nos atores selecionados das regi�es pobres, tipos f�sicos negros e mesti�os, que estabelecem di�logos espont�neos. Meirelles consolidou a narrativa popular, e trouxe a beleza negra como uma nova refer�ncia est�tica-racial para o cinema nacional, ainda preso � est�tica branca e "global".

Por que no filme quase 100% dos adolescentes s�o negros? Porque a linguagem cinematogr�fica denuncia o que as pesquisas de institutos e universidades do pa�s escancaram em suas estat�sticas: a pobreza e a mis�ria brasileira � constitu�da em 70% por negros (categoria que engloba pretos e pardos). Dentre esses centros, o IBGE, o IPEA, o IDH, o DIEESE e o SEPIR  apontam que 45% da popula��o brasileira � negra, e vive uma situa��o de desvantagem s�cio-econ�mica e educacional alarmante quando comparado com a popula��o branca. Al�m disso, a discrimina��o dos negros no mercado de trabalho e em termos salariais � calamitosa (Santos, 2002).

A quest�o racial comp�e a hist�ria socio-econ�mica do pa�s. O negro, desde a escravid�o at� os dias atuais, sofre um racismo de resultados, explicitado nas pesquisas, e um racismo que revela um constrangimento sem proibir, e uma segrega��o sem separa��o. Quase n�o existe negros nos bairros nobres das cidades, nas universidades, logo no primeiro grau ele � exclu�do das escolas. Eles est�o invis�veis, por exemplo, na pol�tica, no sistema judici�rio, nos empregos de altos prest�gios, nos cargos de dirigentes empresariais e executivos do pa�s.

O que � ser crian�a/adolescente negro no pa�s? � nascer em fam�lias que tem grandes dificuldades de garantir conforto s�cio-econ�mico para os filhos, que acarretam uma s�rie de problemas emocionais e de pertencimento. � se diluir em um Estado que n�o consegue proteg�-los e, em sua maior parte, os mant�m exclu�dos da sociedade. Sem  v�nculos, ou com v�nculos frouxos, o que resta para muitos deles? Numa situa��o de extremo d�ficit de cidadania e de falta de dignidade, como sobreviver?

O filme �Cidade de Deus�, mostra alguns caminhos existenciais para os quais o adolescente negro se dirige. H� os adolescentes que, submetidos a tantas viol�ncias da sociedade capitalista e racista, buscar�o a afetividade e o poder, fatores  que estruturam o ser humano (Nery, 2003), em qualquer canto e de qualquer forma. Na rua, nos becos, nos pr�dios em constru��o ou abandonados. Ali, encontram os iguais: aqueles com quem eles podem minimamente se identificar e criar uma rede social (Moreno, 1974) peculiar, por meio da qual conseguir�o algum poder. Esse poder, de acordo com o filme, inevitavelmente est� atrelado � viol�ncia, que, com o passar dos anos se acirra, se banaliza, expande e vira barb�rie. E, assim, esses adolescentes negros vivem mais proximamente o desvio da margem (Selosse, 1988), que os encaminha para o universo da delinq��ncia. A rua, a descren�a no futuro, o desemprego ou o emprego humilhante, o olhar discriminat�rio e a a��o excludente da sociedade os jogar�o para a tenta��o do crime, do tr�fico e da guerra por territ�rios e dinheiro.

Com uma arma na m�o, o adolescente negro, nas condi��es sub-humanas, consegue um objeto transicional (Winnicott, 1983), que lhe dar� algum conforto e status social e lhe retirar� as amea�as advindas de tantas faltas, a que est� exposto cotidianamente.

O personagem �dadinho�, um p�bere, concretiza esses adolescentes que entram para o mundo da viol�ncia. Ele encontra prazer e poder em matar. Transforma-se no poderoso chefe do tr�fico �Z� Pequeno�, depois de tomar todas as bocas de drogadi��o da favela. � um homem endurecido, dominado pelo medo, consciente de que morrer� a qualquer momento. Ser homem, para ele, significa matar. Mas o fracasso no amor corr�i ainda mais sua auto-estima, conquistada na areia movedi�a do crime. Z� Pequeno se segura numa amizade (Ben�), do qual obt�m apoio afetivo, que lhe � t�nue. Mas, quando Ben� desaparece, parte do seu humano tamb�m morre e ele detona a guerra na favela.

O personagem �Buscap�, representa outros tipos de adolescentes, que, mesmo tendo modelos violentos e convivendo com o crime, lutam desesperadamente para manter sua margem  (Selosse, 1988) sob controle. Buscap� at� tenta ser bandido, mas seu cora��o carregado de esperan�a por um mundo melhor e o objeto transicional �m�quina fotogr�fica� vencem essa tentativa. Com a m�quina fotogr�fica, ele  dispara �tiros� e mata ou d� mais vida do que qualquer rev�lver. E assim, ele atende ao pedido do irm�o que, com tanto afeto, lhe disse: �Voc� n�o ser� como eu, essa vida de bandido n�o � para voc�, v� estudar e saia dessa!�.

O acesso �s armas � rotineiro, � uma imposi��o da sociedade, particularmente dos que deveriam estar a servi�o da produ��o da cidadania, mas, ao contr�rio, produzem o modus relacional da viol�ncia. O personagem Tio Sam, mancomunado com a pol�cia, vende armas. Trata-se de numa refer�ncia aos EUA, pa�s produtor de armas, que gasta tanto dinheiro em repress�o de drogas, mas � tolerante com o contrabando de armas para o terceiro mundo. Al�m da aquisi��o de armas sem obst�culos, o adolescente, ao se iniciar no neg�cio do tr�fico de drogas, � recompensado com o dinheiro e o ouro que vem dos drogaditos das classes m�dia e alta. H�, pois, uma espiral complexa de influ�ncias e interinflu�ncias grupais e de segmentos da sociedade, que exacerba o mundo da viol�ncia e das drogas.

Ao final do filme, os bandidos s�o mortos ou presos, mas h� crian�as que perpetuar�o suas li��es. O personagem Buscap� ganha realce, � inteligente e honesto, como a grande maioria dos moradores da Cidade de Deus, expostos  �s maiores priva��es, mas sempre dispostos a vencer pelo trabalho, explorado ou no sub-enprego.

Como efetivamente ajudar a refazer o caminho de muitos adolescentes que est�o soltos, abandonados, � merc� de v�nculos consolidados por um poder destrutivo? A popula��o negra, pobre e sofredora, a cada dia nos mostra que qualquer interven��o terap�utica (por parte de psic�logos e cientistas sociais) precisa ser pol�tica, cr�tica e emancipat�ria. Urge a conquista da dignidade de cada um e da comunidade, que fortalece a luta pelo bem estar social. Urge a necessidade de batalhar e executar pol�ticas sociais e afirmativas que efetivamente mudem o status quo socio-racial brasileiro.

A linguagem cinematogr�fica tamb�m nos traz perspectivas terap�uticas para os adolescentes que sofrem algum tipo de viol�ncia. Por exemplo, os filmes �a voz do cora��o� (Les Choristes), de Christophe Baratier, da Fran�a; �sociedade dos poetas mortos�, Dirigido por Peter Weir, dos EUA; �Mr. Holland - Ador�vel Professor� com dire��o de Dire��o: Stephen Herek, dos EUA, e �m�sica do cora��o�, de Wes Craven, dos EUA s�o exemplos de que a arte e o esporte, conjugados com a afetividade e a autoridade de um profissional que acredita no ser humano, s�o recursos s�cio-educativos e que contribuem para a terap�utica das rela��es humanas.

 Maria da Penha Nery
   
         Bras�lia - Setembro de 2004

 

BIBLIOGRAFIA:

Moreno, J. L. (1974). Psicodrama. S�o Paulo. Mestre Jou.

Nery, M.P. (2003). V�nculo e Afetividade. S�o Paulo, Agora.

Santos, Sales Augustos dos  (2002). Pesquisa: A��o Afirmativa ou Utopia Poss�vel. Bras�lia. ANPEd. 2� Concurso Negro e Educa��o

Selosse, J. (1988). Confer�ncia na Associa��o Francesa de centros m�dico-psico-pedag�gicos, publicado em 1989, p. 1-10, in Jacques Pain et Loick M. Villerbu (orgs). Jacques Selosse/Adolescence, violences et d�viances (1952-1995), �ditions Matrice, Vigneux, 1997. (Tradu��o de M. F�tima Olivier Sudbrack).

Winnicott, D. (1983). O Ambiente e os processos de matura��o. Porto Alegre, Artes M�dicas.

 

FILMES CONSULTADOS:

�Cidade de Deus� , dire��o: Fernando Meirelles, Brasil, 2002.

�A voz do cora��o� (Les Choristes), de Christophe Baratier, Fran�a, 2003.

�Sociedade dos poetas mortos�, Dirigido por Peter Weir, dos EUA, 1989.

Mr. Holland - Ador�vel Professor�, dire��o: Stephen Herek, dos EUA, 1995.

 �M�sica do cora��o�, de Wes Craven, dos EUA, 1999.


INTERNET:

        http://www.guiafloripa.com.br/drops7/filmes/cidade_de_deus.php3

        http://www.arteepolitica.com.br/criticas/cinema/cidade_Deus.htm

 

voltar

Hosted by www.Geocities.ws

1