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Encontros e Desencontros do amor:aperitivos da vida

- um debate sobre referenciais de leitura do texto bíblico -

Tânia Mara Vieira Sampaio

Pastora e teóloga metodista

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Introdução à reflexão bíblica

Em tempos tão difíceis, com os problemas globais que já tínhamos no mundo, somado ao que ocorreu em 11 de setembro (não que seja novidade, a novidade esta na magnitude do que aconteceu) é um sinal do que o sistema de mercado está semeando. Em face aos desafios me movia entre as profecias, as orações e as palavras de Jesus e me senti motivada pela força e beleza do texto de Cântico dos Cânticos. São forças de vida que não podem seguir como segredo.

Cantares é um texto que, em sua poesia toma as melhores imagens, sons, aromas, sabores e saberes para afirmar a dignidade do corpo (o próprio e o do outro). Neste texto há um movimento de vida, uma dinâmica de dizer o bem sobre a vida que se expressa em sua materialidade e concretude no corpo. A mulher que lidera a maior parte do discurso, faz uma poesia assinalando a beleza de seu próprio corpo (1.5-8) e depois começa a desenhar as belezas do corpo de seu amado com todas as imagens e linguagens disponíveis na natureza (1.9-2.17).

Penso que o tempo que estamos vivendo é tempo de limites muito marcados. A vida, o corpo, o cuidado com os detalhes do cotidiano estão no marco da descartabilidade. Isto passa com os seres humanos, com os outros seres vivos, com o ecossistema de um modo geral, estão sendo descartados.

Cantares, é um texto que não faz muitas orações de pedido, nem discursos de denúncia. Tem uma outra dinâmica, a chave que pode nos ajudar a entrar no texto são as pessoas empobrecidas, vítimas de violência. Ainda que vivam em um tempo que proclama o mal para suas vidas elas seguem vivendo seu desejo e suas formas de afirmar a dignidade para seus corpos. Seguem fazendo seus bailes, suas comidas, suas festas, criando trabalhos informais de sobrevivência... uma descoberta dinâmica a cada dia.

Em Cantares o corpo proclama sua beleza, liberdade e pureza contra todo um sistema dominado pelos sacerdotes que estão dizendo que a pureza e a proximidade de Deus depende de passar (e pagar) pelos ritos sacrificiais. Os corpos de mulheres e homens, neste texto, estão todo o tempo descobrindo as brechas do controle para viver e dizer o bem e o amor sobre o próprio corpo e o do outro. E fazem poesia em profunda sintonia com a natureza e seu movimento. Em profunda interdependência com o ecossistema se fortalecem para anunciar sua resistência. Quiçá este texto nos ajude a visualizar revisões das leituras bíblicas e das nossas teologias que estão muito marcadas por uma racionalidade ocidental-branca-masculina. E tal racionalidade tem um histórico de subordinação da natureza, das mulheres, dos negros e indígenas – um processo de anulação e desrespeito à diversidade do ecossistema.

Cantares começa em capítulo um descrevendo o encontro do amor (cap. 1 e 2) no mesmo movimento que encerra o cap. 8, um convite a começar outra vez o caminho do amor, da fala que "empodera" os corpos.

 

Belezas disponíveis no texto

Em Cantares,

A terra é lugar de trabalho e é lugar de deitar o corpo para o descanso;

E é lugar de encontro para os corpos desfrutarem o prazer,

E é disputa de poder entre irmãos e irmã,

E é lugar de sombra que acolhe a chegada da vida,

E é espaço de animais diversos saltitarem...

É lugar de encontros e desencontros de vida!

Cantares anuncia na poesia cotidiana do encontro e desencontro dos corpos da amada e do amado, o jeito distinto de enfrentar conflitos. Esta maneira especial é a que queremos desfrutar ao estudar a Bíblia na busca de uma espiritualidade que resgate e dê razão de nossa esperança.

O texto não traz discursos fortes de denúncias e anúncios. O conflito do momento é pano de fundo que dá maior contundência às palavras. A gratuidade e fragilidade do cotidiano de corpos que se amam sobressai nesse poema. Há aqui outras sabedorias para a esperança que podemos aprender.

Neste livro, há um movimento novo, uma espiritualidade inusitada. Trata-se da dimensão de gratuidade das relações amorosas como contraponto ao tempo em que as liberdades para o corpo estavam cerceadas. Revisitar Cantares pode nos ajudar na construção de sentidos de uma nova espiritualidade.

Cantares é um conjunto de poemas significativos, com uma força de vida que não pode seguir como segredo, muito menos ser reduzido a alegorizações, como se fez ao longo da história da interpretação. Quebrar o silêncio do texto, frente às amarras teológicas, talvez se constitua em movimento aprendente - do dizer o bem sobre a vida por intermédio de uma postura integradora do ecossistema. Um convite eco-ético parece depreender-se das palavras e imagens tecidas nesse texto.

 

O tecido dos poemas estrutura-se em tramas de simplicidade

Um cancioneiro da paixão. Feito de encontros e desencontros; de desejo de estar junto e dificuldades para o amor acontecer. Fala de companhia e solidão, de ausências e presenças. Não dá para apressadamente tratar como teatro, como alegoria, como poemas de elogio ao amor universal. Fala do amor entre uma mulher e um homem. Do amor de Deus fala muito pouco. Não é necessário que o amor humano seja igualado ao amor de Deus para ter valor. O amor é, em si. E também é a relação de interdependência que promove.

O amor como expressão de gratuidade e não instrumento de ânimo para a luta se basta. Tal qual a poesia, é para ser saboreado e pronto. Um movimento de abertura para as transformações que a experiência gratuita do amor é capaz de fazer acontecer.

As ausências e as presenças são indicativas de caminho para a leitura do texto. Forte é a fala da mulher e suas amigas (as filhas de Jerusalém). Presente é a figura da mãe na casa que acolhe ou debaixo da macieira em que a apresenta como o lugar do amor e dá à luz. Parece haver uma memória coletiva de mulheres.

Extremamente positivas são as falas sobre o corpo, tecido das belezas mais singelas e dinâmicas que a natureza podia oferecer aos lábios da amada e do amado para dizerem um do outro, um para o outro das curvas e contornos do corpo que ardia de amor. O espaço fora da casa, em especial, o campo é lugar acolhedor do desejo e dos encontros, mais do que a casa. Lugar tomado pelo controle social e religioso de então.

Ausentes estão o pai, os sacerdotes. Supridos em alguns aspectos pelas figuras opressoras dos irmãos e violentas dos guardas da cidade. Não há anúncio de bodas, nem matrimônio, nem mesmo filhos na relação descrita dos amantes. De Deus, a fala é mais implícita do que explícita. Mulheres pouco falam sobre Deus, pouco sabem, pouco podem (mulheres pouco aprendiam os discursos que interpõe a presença de Deus, talvez suas linguagens teológicas estejam no texto mas não sabemos captar com nossa racionalidade patriarcal).

Corpo de mulher mal-dito pela impureza, mal-dito pela procedência étnica, mal-dito pelo Estado que o instrumentalizava na prostituição, mal-dito pelo empobrecimento... de seu tempo, aparece em Cantares em sua beleza auto-revelada ("sou negra e formosa" 1.8), em sua beleza apreciada pelo amado (>>>>).

Seguindo perguntas aproximativas do texto a exemplo de: Qual a sua dinâmica? Quem fala? De que fala? De que perspectiva aborda o amor pode-se identificar que o livro, a despeito de acréscimos redacionais, estrutura-se em 5 cânticos/ou poemas precedidos de uma breve introdução (1.1-4). O primeiro poema 1.5-2.7; o segundo poema 2.8-3.5; o terceiro poema 3.6-5.8; o quarto poema 5.9-8.4 e o quinto poema 8.5-8.14.

 

O contexto histórico que controla o corpo

O corpo, a terra, a vida estão sob controle. Códigos de pureza e impureza decretam aproximações ou distanciamentos de Deus. Dizem do poder e do não poder dos corpos na relação de uns com os outros e com tudo o que os cerca... Suores, odores, aromas, líquidos, vontades... estão sob controle dos rígidos códigos de pureza.

O lugar do texto. Seu tempo e espaço. Entre orações e profecias o pequeno livro está abrigado na Bíblia, possivelmente organizado no período pós-exílico, em torno de 400 a.C. Há aqui uma força revolucionária do corpo. Um texto sem dúvida subversivo! Erótico! Está no meio do período de domínio dos sacerdotes, como senhores das leis, da política e da pureza ritual desencadeiam uma profunda segregação dos estrangeiros, das mulheres e dos empobrecidos.

Sob uma teologia marcada pelos códigos de pureza e impureza ritual que controlavam o corpo em sua sexualidade, em sua classe social, em sua etnia, em seu gênero, em suas doenças... Fica evidente, em um período que ruma para uma organização escravista do trabalho, que o corpo é o lugar do poder. Sobre ele todo o controle e a mal-dição. O mesmo se pode observar na lógica sacrificial do mercado hoje.

Ofertas e sacrifícios precisam ser pagos para devolver ao corpo sua condição de pureza (e proximidade de Deus, talvez por isso os poemas de Cânticos sejam tão econômicos em sua menção a Deus). Sacrifícios que promovem prisão aos corpos, anunciam dívidas ao cotidiano do trabalho, retira das mulheres a maior parte dos dias de sua vida como tempos e espaços de beleza (cf. Lv 12 e 15). Tudo, ou quase tudo, na vida é impureza. É dívida. É escravidão. É religião e economia e política.

Cantares atravessa os projetos de reconstrução nacional do pós-exílio em paralelo à dominação de grandes impérios (persa,grego).

Mesmo em face desse jogo de poder, o texto diz o bem sobre a vida suspendendo tais concepções normativas e aprisionadoras dos corpos.

O discurso em Cantares é sexuado. A afirmação do corpo da mulher e do homem é uma constante. Os corpos posicionam-se. Não porque querem ser provocativos mas porque, nesta época, o controle sobre a vida passava pelo corpo. Este é o lugar do poder.

Silêncio, alegorizações e restrições litúrgicas fizeram com que um conjunto significativo de elementos que proclamam o bem sobre a vida e sua interdependência e mutualidade ficassem qual segredo aos nossos olhos e ouvidos.

Diante da ousadia desses poemas que exaltam a beleza dos muitos corpos humanos e do ecossistema, não é de surpreende-se que Cantares estivesse vestido de interpretações poderosas para "domar" o amor e direcioná-lo para o matrimônio e na seqüência para as analogias religiosas.

 

O tipo de discurso em Cantares e os paradigmas novos

A fala amorosa é aproximativa. É exercício de muitos dizeres, compõe-se de palavras inexatas, imprecisas. A fala amorosa faz uso de mediações, transfigurando tudo o que está à sua volta.

Sons, cheiros, sabores, texturas, cores tornam-se mediações para falar do corpo do amado e da amada, para anunciar a conexidade intrínseca entre seres humanos e ecossistema, para se interpenetrarem, se dizerem com beleza e poesia o que as palavras não conseguem captar dos sentidos.

O discurso amoroso é produção de conhecimento a partir dos sentidos do corpo. Olho não tem garras, um umbigo não pode ser taça, lábios não tem gosto de mel... no entanto, criam imagens da relação transcendendo as palavras, transgredindo as regras.

O texto na descrição do corpo amante e amado revela profunda harmonia/sintonia com o ritmo e demais "corpos" existentes no cosmos. O movimento da vida, das pessoas, animais, plantas conjugados pela dinâmica do ar, da água, da terra e do fogo, alternava dias e noites marcando a cadência do trabalho, do descanso, do prazer, do dizer, do sentir, do fruir, do sofrer, do dançar... Enfim, um movimento novo convidativo para revisões das racionalidades estruturadoras dos saberes, entre os quais o teológico.

Um desafio a não instrumentalizar a leitura bíblica

A cadência própria do discurso em Cantares provoca perguntas exigentes para a identificação do método de entrada no texto de tal maneira que suas belezas se abram a quem lê. Entre elas estão as seguintes interpelações:

Dá para não instrumentalizar a leitura do texto bíblico mas deixá-lo acontecer como simples fruição?

Dá para imaginar a leitura do texto bíblico tal qual a poesia: pura gratuidade que inunda a vida e descortina horizontes, reacende esperanças, inaugura energias e instaura redes de dignidade que tecem cotidianos mais amplos, os quais a racionalidade humana é incapaz de tocar plenamente?

Dá para ensaiar indagações pequenas, provisórias respostas e, uma grande dose de desejo de fazer acontecer uma leitura nova que nos surpreenda a todos e todas com sua espiritualidade de vida?

Nesse sentido, motivados pelo próprio jeito de Cantares, cabe observar a necessidade de questionar o método racional, sociológico, de confronto permanente com o sistema, como eixo único de leitura da Bíblia. Muito embora, se possa reconhecer a sua expressiva contribuição para uma leitura histórica e contextual do texto bíblico, tal método gradativamente foi mostrando seus limites.

Outras categorias de análise cooperaram com a ruptura da exclusividade da racionalidade econômico-social. Entre os caminhos epistêmicos de superação dos impasses, é fundamental explicitar que contribuições como as da teoria de gênero e da teoria da complexidade abriram horizontes.

A primeira, com suas ênfases nas relações sociais assimétricas não apenas entre homens e mulheres, mas demarcando a não homogeneidade destes grupos sociais, agregada às assimetrias étnicas e de classes sociais.

A segunda, que pensa o ecossistema em sua dimensão interdependente e complexa, no qual o ser humano inclui-se não como superior mas como distinto, inaugurando uma nova percepção que inclui relações de conexidade entre seres vivos diferentes na perspectiva de redes. Ambas as teorias têm impulsionado revisões conceituais de muitas ordens superando a fragmentaridade de nossas abordagens epistêmicas.

O movimento do corpo em silêncio, sem pressas em dar respostas, sem aflição por não saber a verdade, sem...uma infinidade de certezas está em melhor sintonia com a poesia de Cantares.

Por isso, ao invés de palavras-respostas a priori sobre o texto bíblico, sugere-se como caminho metodológico perguntas-escuta-contemplação das imagens do texto de Cantares. Uma dinâmica desprovida das respostas e aberto aos movimentos complexos que marcam a existência cotidiana das pessoas e da pluralidade de vidas do ecossistema, é caminho transgressor necessário para fruirmos a beleza desse texto.

Na afirmação intrigante de Ivone Gebara o debate espitemológico a partir do feminismo e da ecologia profunda nos desafia a arrumar os sentidos e os conhecimentos de um outro jeito (...) a captar de outra maneira os sentidos de nossa existência (...) a nunca deixar adormecer a energia inquiridora da mente; nunca deixar de questionar o que parece óbvio e definitivo. Contra dogmatismos ... o movimento da vida!

O movimento das palavras e imagens no texto de Cantares indica uma dinâmica que tece para frente e para traz, ora simbólicas ora reais, um emaranhado de poemas que se parecem ao amor: lugar de encontros e desencontros.

Dos eixos perceptíveis nessa "teia da vida" desejo sublinhar o de viver a gratuidade de relações como sinal de reconstrução de nossa percepção do ecossistema e não como proposta de abandonar esperanças e lutas.

Dessa forma, pode-se inaugurar na leitura da Bíblia uma revisão de posturas que a reduzem a um manual e a um conjunto de dogmas atemporais e universais; ou ainda, posturas que reforçam leituras que não permitem que a vida e seu ritmo cotidiano sejam vividos na gratuidade e fragilidade que lhes é peculiar - refém da dinâmica militante que reduz tudo a uma funcionalização para a luta.

 

Inaugurando novas percepções da realidade

Uma nova percepção da terra, em conexidade com seres humanos e demais seres vivos, à semelhança das descrições dos corpos em busca do amor pode nos devolver o fôlego. Animar nossos passos no momento de desafios cósmicos-globais que se nos apresentam e exigem uma reorganização da vida e das relações todas.

Os problemas globais que afetam a biosfera e a vida humana, são problemas que não podem ser entendidos isoladamente. São sistêmicos. Estão interligados e são interdependentes.

As teorias de gênero muito contribuíram para enfrentar a questão das desigualdades sociais baseadas nas diferenças de ordem biológica, com isso, chegou-se a interrogar milenares afirmações de inferioridade das mulheres em relação a homens, de negros em relação a brancos, do ecossistema em relação a seres humanos devido à natureza intrínseca de cada um destes seres.

O fato de não se ter o eixo econômico como exclusivo permitiu que as pessoas pudessem ser percebidas como seres não apenas constituídos de necessidades, mas de desejos e paixões, com todas as implicações para as relações humanas, sociais e ecossistêmicas que isto significa.

Diante das questões de fundo presentes no texto de Cantares deparamo-nos com os avanços e limites do debate antropológico. Isto é, se muito já se avançou na superação de concepções de mundo e relações de caráter androcêntrico para uma perspectiva antropocêntrica, esta última ainda guarda limites. Pois atinge a questão da descentralização da matriz cultural masculina como parâmetro para o humano, mas não altera a percepção de centralidade do humano para entender o ecossistema em suas relações.

Assim sendo, considerar a novidade da interdependência de tudo o que forma o ecossistema e produz vida requer pensarmos os seres humanos como parte dessa grande "teia da vida" e não o seu centro. Aproximamo-nos de uma visão que possivelmente terá que abdicar da concepção de centralidade, seja ela divina ou humana ou cósmica. Nesse caso, não mais teocêntrica, nem mais andro/antropocêntrica, nem qualquercoisacêntrica...

Afirma-se, portanto, provisoriamente uma concepção que "explode" o centro para dar lugar a uma concepção de relações de mútuas interdependências; sem que isto desqualifique o ser humano, mas o re-signifique na relação de perceber-se como parte necessária e com necessidades de toda a complexa e múltipla diversidade do que existe no ecossistema.

Este exercício foi vivido plenamente no discurso amoroso sobre o amado e a amada, que vivem o cotidiano inaugurando linguagens novas, movimentos de ampla conexidade e respeito com os muitos seres vivos e demais sinais do cosmos em contraste com os discursos normativos cerceadores do corpo.

As questões de poder

Na seqüência, encontra-se em profundo questionamento a concepção de poder hierárquica, que, historicamente, tem sido responsável por nortear relações que subordinam mulheres a homens, negros a brancos, ecossistema a seres humanos... Pede-se a inauguração de outra concepção de poder que se desenhe na perspectiva de redes pois se coadunam com concepções de conexidade e interdependência. Isto exige uma visão de poder na perspectiva de redes e não de hierarquias que se sobrepõem.

Em Cantares a fala do cotidiano invade o sagrado, o público e o espaço dominado pelos homens. As estruturas de poder de caráter androcêntrico e hierárquico sabem do amor e lhe designam espaços permitidos, controlados de expressão...sabem da capacidade subversiva das paixões que acordam os sentidos e a consciência e, mais que tudo inspira imagens e falas.

Esta distinta dança dos movimentos que se sucedem afirmando a vida contra as formas de morte e controle sobre o corpo, sobre a propriedade, sobre o trabalho no texto bíblico desafia-nos a entrar nestes poemas com novos olhares e indagações. Para além do recorte militante das questões sociológicas Cantares pode nos ajudar a aprofundar uma nova percepção na direção da integração de seres humanos e ecossistema e de seres humanos em relações sociais afirmando o poder como redes de construção da dignidade da "teia da vida", como a que se percebe na relva feita leito para o encontro do amor.

 

Em busca de conclusão: Cantares e as dinâmicas de resistência

Não precisamos ler a Bíblia sempre com uma finalidade antecipadamente justificada. Uma leitura para mera fruição pode nos abrir para belezas como a de Cântico dos Cânticos. Assim, como esse jeito de encontrar a vida nas palavras deste livro pode nos ensinar a ler outros textos bíblicos. Sem instrumentalizá-los para a luta ou para qualquer outra coisa, é possível que se constitua em espaços de graça e tenham graça. Fruição.

A novidade que talvez seja importante insistir é manter sempre de Cantares o olhar para o mundo, a percepção da realidade. Uma percepção desfrutada nas festas, nas delícias do amor, no aconchego dos lugares que fazem história popular de resistência... A percepção que anuncia as redes de mutualidade e interdependências entre os seres para a integridade da vida.

O olhar, a sensibilidade, a percepção de viver a vida sem abdicar do amor, do descanso, do dizer das belezas, da festa ainda que se tenha que resistir a diversas formas de opressão pode ser uma novidade que nos ajude hoje.

Pois as muitas lutas nos endureceram e nos fizeram perder a ternura, o brilho no olhar, não nos alegrar com a festa, não dedicar tempo para preparar a boa comida para receber amigos e família, abandonar o cuidado de brincar com as crianças seus jogos infantis, suas fantasias e faz-de-conta, adiar o namoro com o marido e a mulher (companheiros há tempos de muitas tarefas/ dívidas/ preocupações/ labuta comuns), esquecer de oferecer flores, de escrever o cartão, de convidar para o passeio, enfim, nos fizeram esquecer de preparar o lugar do amor...

Acredito que um novo olhar, um novo sabor e este, parece estar segredado nos poemas de Cantares.

O livro não é de luta. Traz canto, festa, dança, sofrimento, perdas, laços de amor, tempos de trabalho e de descanso. Lugares acolhedores dos corpos em contraste com as múltiplas prisões. Não há discursos, o amor é vivido intensamente. Não há propostas de inversão das posições assimétricas. Mas a vivência do amor é em si um grande convite à liberdade e à revisão das estruturas normativas que pretendem controlar o corpo. O tempo do amor corresponde ao tempo do cotidiano no qual tem trabalho, tem dificuldade, tem paixão, tem encontros e desencontros.

A sabedoria de Cantares, sabedoria da vida do povo. Sabedoria de minhas avós, de muitas avós. Sabedoria que não é muita instrução, mas é muita percepção, é sensibilidade e cuidado com o corpo, o próprio e o do outro se apresentam como desafio à nossa racionalidade. Dessa maneira, Cantares é um convite para nos iluminarmos pela dança leve do corpo de mulheres do povo, que em meio há tanta dureza não deixaram de amar.

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