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Sobre a Leitura Popular da Bíblia

Carlos Mesters

Francisco Orofino

Neste artigo abordamos a leitura popular da Bíblia que se faz nas Comunidades Eclesiais da Base da América Latina. É bom lembrar que elas são apenas uma minoria. A grande maioria dos cristãos e a maior parte das igrejas têm outro jeito de olhar a Bíblia. Muitos deles fazem uma leitura mais tradicional e mais fundamentalista. Porém, o impacto e a irradiação da leitura feita nas Comunidades Eclesiais de Base são grandes e significativos para a vida das igrejas e para a caminhada do movimento popular.

Este artigo é como uma fotografia que fixa a posição de uma pessoa num determinado momento da sua vida. Uma vez feita, a fotografia não muda mais. Mas a pessoa fotografada continua mudando e crescendo. Ela não para. Talvez nem se lembre mais da fotografia. Pode até ser que, depois de alguns anos, ela nem se reconheça mais nesta fotografia que aqui apresentamos com muito respeito e carinho.

1ª PARTE

DEZ CARACTERÍTICAS DA LEITURA POPULAR DA BÍBLIA NA AMÉRICA LATINA

Como entrada no nosso assunto apresentamos aqui dez pontos que, de certo modo, oferecem uma visão global da leitura popular e são um resumo de tudo que vamos dizer.

1. A Bíblia é reconhecida e acolhida pelo povo como Palavra de Deus. Esta fé já existia antes da chegada da leitura popular da Bíblia. É nesta raiz ou tronco bem firme da fé popular, que enxertamos todo o nosso trabalho em torno da Bíblia. É o que caracteriza a leitura que fazemos da Bíblia na América Latina. Sem esta fé, todo o processo e todo o método teriam de ser diferentes. "Não es tu que sustentas a raiz, mas a raiz sustenta a ti" (Rm 11,18).

2. Ao ler a Bíblia, o povo das Comunidades traz consigo a sua própria história e tem nos olhos os problemas que vem da realidade dura da sua vida. A Bíblia aparece como um espelho, sím-bolo (Heb 9,9; 11,19), daquilo que ele mesmo vive hoje. Estabelece-se, assim, uma ligação profunda entre Bíblia e vida que, às vezes, pode dar a impressão aparente de um concordismo superficial. Na realidade, é uma leitura de fé muito semelhante à leitura que faziam as comunidades dos primeiros cristãos (At 1,16-20; 2,29-35; 4,24-31) e os Santos Padres nos primeiros séculos das igrejas.

3. A partir desta nova ligação entre Bíblia e vida, os pobres fazem a descoberta, a maior de todas: "Se Deus esteve com aquele povo no passado, então Ele está também conosco nesta luta que fazemos para nos libertar. Ele escuta também o nosso clamor!" (cf. Ex 2,24; 3,7). Assim vai nascendo, imperceptivelmente uma nova experiência de Deus e da vida que se torna o critério mais determinante da leitura popular e que menos aparece nas suas explicitações e interpretações. Pois o olhar não se enxerga a si mesmo.

4. Antes de o povo ter esse contato mais vivido com a Palavra de Deus, para muitos, sobretudo na igreja católica, a Bíblia ficava longe. Era o livro dos "padres", do clero. Mas agora ela chegou perto! O que era misterioso e inacessível, começou a fazer parte da vida quotidiana dos pobres. E junto com a sua Palavra, o próprio Deus chegou perto! "Vocês que antes estavam longe foram trazidos para perto!" (Ef 2,13) Difícil para um de nós avaliar a experiência de novidade e de gratuidade que tudo isto representa para os pobres.

5. Assim, aos poucos, foi surgindo uma nova maneira de se olhar a Bíblia e a sua interpretação. A Bíblia já não é vista como um livro estranho que pertence ao clero, mas como nosso livro, "escrito para nós que tocamos o fim dos tempos" (1 Cor 10,11). Às vezes, para alguns, ela chega a ser o primeiro instrumento para uma análise mais crítica da realidade que hoje vivemos. Por exemplo, a respeito de uma empresa opressora do povo, o pessoal da comunidade dizia: "É o Golias que temos que enfrentar!"

6. Está em andamento uma descoberta progressiva de que a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo principal da leitura da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. Descobre-se que Deus fala hoje, através dos fatos. Por exemplo, neste ano de 2001, em que as comunidades refletem sobre os Atos dos Apóstolos, percebe-se um entusiasmo muito grande. Não é tanto por causa das coisas novas que eles descobrem em Atos, mas muito mais por causa da confirmação que Atos lhes oferece de que a caminhada que estão fazendo é uma caminhada bíblica. A Bíblia ajuda a descobrir que a Palavra de Deus, antes de ser lida na Bíblia, já existia na vida. "Na verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia" (Gn 28,16)!

7. A Bíblia entra por uma outra porta na vida do povo: não pela porta da imposição autoritária, mas sim pela porta da experiência pessoal e comunitária. Ela se faz presente não como um livro que impõe uma doutrina de cima para baixo, mas como uma Boa Nova que revela a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo. A Bíblia confirma a caminhada que o povo está fazendo e, assim, o anima na sua esperança. Os que participam dos grupos bíblicos, eles mesmos se encarregam de divulgar esta Boa Notícia e atraem outras pessoas para participar. "Venham ver um homem que me contou toda a minha vida!" (Jo 4,29). Por isso, ninguém sabe quantos grupos bíblicos existem. Só Deus mesmo!

8. Para que se produza esta ligação profunda entre Bíblia e vida, é importante: a) Ter nos olhos as perguntas reais que vêm da vida e da realidade sofrida de hoje, e não perguntas artificiais que nada têm a ver com a vida do povo. Aqui aparece a importância de o estudioso da Bíblia tem convivência e experiência pastoral inserida no meio do povo. b) Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem e hoje. Aqui aparece a importância do uso da ciência e do bom senso tanto na análise crítica da realidade de hoje como no estudo do texto e seu contexto social. c) Ter uma visão global da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras e que esteja ligada com a situação concreta das suas vidas. Lendo assim a Bíblia, produz-se uma iluminação mútua entre Bíblia e vida. O sentido e o alcance da Bíblia aparecem e se enriquecem à luz do que se vive e sofre na vida, e vice-versa.

9. A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade envolvente que compreende não só a contribuição intelectual do exegeta, mas também e sobretudo todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo de grupo, leitura pessoal e comunitária, teatro, celebrações, orações, recreios, "enfim, tudo que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou que de qualquer maneira merece louvor" (Fl 4,8). Aqui aparecem a riqueza da criatividade popular e a amplidão das intuições que vão nascendo.

10. Para uma boa interpretação, é muito importante o ambiente de fé e de fraternidade, através de cantos, orações e celebrações. Sem este contexto do Espírito, não se chega a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. Pois o sentido da Bíblia não é só uma idéia ou uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através de raciocínios; é também um sentir, uma consolação, um conforto que é sentido com o coração, "para que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos esperança" (Rm 15,4).

2ª PARTE:

UM POUCO DE HISTÓRIA

Tudo isso que hoje está acontecendo nas Comunidades Eclesiais de Base tem uma história vinda de longe. Muitos fatores contribuíram para que se chegasse a esse tipo de leitura da Bíblia. Destacaremos três fatores que não podem ser ignorados para se entender a atual conjuntura. Há um quarto fator que não pode ser avaliado nem verificado. Em seguida, veremos as três etapas que marcaram e continuam marcando este processo histórico da leitura popular da Bíblia.

1. TRES FATORES

1. Uma nova maneira de se ver a revelação de Deus e a Bíblia

As grandes mudanças produzidas na humanidade a partir dos séculos XIX e XX levaram os cristãos das várias igrejas a olhar a realidade e a Bíblia com um olhar diferente. Por exemplo, na Alemanha, a experiência de R. Bultmann nas trincheiras como capelão militar, durante a primeira guerra mundial, 1914 a 1918, levou-o a uma nova abordagem da Bíblia que influenciou a exegese bíblica do século XX em praticamente todas as Igrejas.

Na Bélgica a crise entre as duas guerras e a convivência com os operários levaram o padre J. Cardijn a criar o método Ver-Julgar-Agir que influenciou os vários setores da Ação Católica e trouxe uma nova maneira de se considerar e experimentar a ação reveladora de Deus na história. Antes de se procurar saber o que Deus falou no passado, procura-se Ver a situação do povo hoje, os seus problemas. Em seguida, com a ajuda de textos da Bíblia e da tradição das igrejas, procura-se Julgar esta situação. Isto faz com que, aos poucos, a fala de Deus já não vem só da Bíblia, mas também e sobretudo dos próprios fatos iluminados pela Bíblia e pela tradição. E são eles, os fatos, que assim se tornam os transmissores da Palavra e do apelo de Deus e que levam a Agir de maneira nova. Este método ver-julgar-agir teve uma influência muito grande nos movimentos de renovação da igreja católica no Brasil dos anos 50 e 60, particularmente nos vários setores da Ação Católica, JOC, JEC, JUC e JAC. Foi provocando uma mudança na maneira de se buscar conhecer a vontade de Deus e abriu para uma atitude mais ecumênica e menos confessional.

Nos Estados Unidos, o engajamento político de N.K. Gottwald na luta contra a guerra no Vietnam teve uma influência profunda na sua maneira de reler e interpretar a origem e a formação do Povo de Deus. Seus escritos, sobretudo o livro The Tribes of Jahweh, tiveram muita influência nos estudiosos da Bíblia no Brasil, principalmente na maneira de abordar e interpretar o Êxodo.

Na América Latina, nos anos 60 e 70, o compromisso político de muitos cristãos repercutiu e continua repercutindo profundamente na maneira de se ler e de se interpretar a Bíblia. A desumanidade das ditaduras militares, algumas delas feitas com apôio velado de autoridades eclesiásticas ou em nome da assim chamada tradição cristã, provocou e despertou as pessoas mais conscientes para uma nova leitura da Bíblia em defesa da vida. Uma leitura mais libertadora e mais ecumênica, impedindo que a Palavra de Deus fosse manipulada para legitimar a opressão e a exploração do povo.

2. A renovação das Igrejas leva a um interesse renovado pela Bíblia

A partir do terremoto das duas guerras mundiais, 1914 a 1918 e 1939 a 1945, a maioria das igrejas entrou num processo de conversão e de mudança. As circunstâncias novas em que se encontrava a humanidade deixaram claro que era necessária uma releitura das coisas da fé em vista da nova experiência de Deus e da vida que estava surgindo. Esta mudança ou conversão foi acontecendo de maneira diferente nas várias igrejas e nos vários países.

Na igreja católica do Brasil, por exemplo, o Documento Dei Verbum do Concílio Vaticano II e a sua releitura para América Latina através das Assembléias Episcopais de Medellin e Puebla consagraram essa nova maneira de se ver a ação reveladora de Deus de que falamos anteriormente. A saber, Deus continua falando hoje, dirigindo-nos a sua Palavra através dos fatos e das pessoas, e nós conseguimos descobrir esta fala divina com a ajuda da Palavra escrita de Deus na Bíblia.

A partir do Concílio Vaticano II, foi crescendo o interesse do povo católico pela Bíblia e, através de vários canais, a Bíblia foi chegando cada vez mais nas mãos do povo. Entre muitos outros, convém destacar os seguintes canais: (1) A renovação litúrgica. A liturgia renovada, através do uso da Bíblia na língua vernácula, trouxe uma aproximação maior da Bíblia com o povo. (2) O trabalho pioneiro do biblista frei João José Pedreira de Castro, OFM. Naqueles anos 50, ele captou os Sinais dos Tempos e sentiu a necessidade de provocar uma aproximação maior entre a Bíblia e o povo. Em vista disso traduziu a Bíblia de Maredsous para o português, hoje com mais de 150 edições sucessivas, conhecida como Bíblia da Ave Maria. (3) O trabalho da LEB, Liga dos Estudos Bíblicos. Seus membros chegaram a fazer uma tradução da Bíblia diretamente dos textos originais, atualmente publicada pela Editora Loyola. Os membros da LEB têm, além disso, o mérito de terem incentivado a realização de semanas bíblicas em todo canto. (4) A entrada das igrejas evangélicas de missão no Brasil na primeira metade do século XX, vindas sobretudo dos Estados Unidos, divulgou e intensificou a leitura da Bíblia. Sua ação evangelizadora contribuiu para que, na igreja católica, muita gente despertasse para a importância da Palavra de Deus. Inicialmente, era um despertar reacionário de defesa contra o que alguns chamavam de "ameaça protestante". Pouco a pouco, porém, acabou sendo vista como uma das maiores graças de Deus.

3. A situação do povo, o golpe militar e o surgimento dos círculos bíblicos

A situação do povo era (e continua sendo) de abandono, de opressão e de exploração. Por isso, havia todo um trabalho político de conscientização para poder provocar uma mudança. Membros dos vários setores da Ação Católica participavam ativamente neste trabalho de conscientização. Chegaram a formar um grupo, Ação Popular, que teve uma atuação política muito importante. Porém, o golpe militar de 1964 mostrou, indiretamente, que o trabalho de conscientização política junto do povo não tinha sido aquilo que a vanguarda da oposição política imaginava e esperava. Não houve a reação esperada do levante popular contra os militares. Pelo contrário. Percebeu-se a necessidade de um trabalho muito mais capilar e mais paciente junto do povo, respeitando melhor a sua religião, a sua cultura e a sua caminhada.

Assim, a partir da metade dos anos 60, começou um trabalho renovado de base no meio dos pobres e surgiram as Comunidades Eclesiais de Base. De fato, naquela situação de perseguição e de controle ideológico, as igrejas surgiram como um possível espaço de articulação da oposição, onde se podia ainda trabalhar com certa liberdade. Por isso mesmo, elas sofreram e foram vítimas da repressão política. Basta lembrar os nomes de Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, padre Henrique, Santo Dias, Margarida Alves e tantas outras lideranças, religiosas e leigas, perseguidas, presas, torturadas e assassinadas.

A partir dessa necessidade de um trabalho pastoral mais respeitoso e mais capilar, foram surgindo em toda parte os assim chamados Círculos Bíblicos. O método usado nos Círculos Bíblicos, como que naturalmente, levava em conta, de um lado, a experiência adquirida nos grupos de Ação Católica com o seu método Ver-Julgar-Agir e os ensinamentos de Paulo Freire sobre a pedagogia do oprimido e, de outro lado, a tradição dos próprios evangelhos. Ou seja, a maneira de se ler a Bíblia nas Comunidades Eclesiais de Base imitava de perto o método sugerido pelo Evangelho de Lucas na descrição da caminhada dos discípulos de Emaús, onde o próprio Jesus aparece interpretando a Escritura para os seus amigos (Lc 24,13-35). O processo de interpretação seguido por Jesus tem os mesmos três passos que caracterizam também o método adotado pelos pobres nos Círculos Bíblicos das Comunidades Eclesiais de Base.

1º Passo: partir da realidade (Lc 24,13-24):

Jesus encontra os dois amigos numa situação de medo e dispersão, de descrença e desespero. Eles estavam fugindo. As forças de morte, a cruz, tinham matado neles a esperança. Jesus se aproxima e caminha com eles, escuta a conversa e pergunta: "De que estão falando?" A ideologia dominante impedia-os de enxergar e de ter consciência crítica. "Nós esperávamos que ele fosse o libertador, mas..." (Lc 24,21).

O primeiro passo é este: aproximar-se das pessoas, escutar a realidade, os problemas; ser capaz de fazer perguntas que ajudem a olhar a realidade com um olhar mais crítico.

2º Passo: usar o texto da Bíblia (Lc 24,25-27):

Jesus usa a Bíblia não para dar uma aula sobre a Bíblia, mas para iluminar o problema que fazia sofrer seus dois amigos e, assim, esclarecer a situação que eles estavam vivendo. Com a ajuda da Bíblia, ele os situa dentro do projeto de Deus e mostra que a história não tinha escapado da mão de Deus.

O segundo passo é este: com a ajuda da Bíblia, iluminar a situação e transformar a cruz, sinal de morte, em sinal de vida e de esperança. Assim, aquilo que impedia de enxergar, torna-se agora luz e força na caminhada.

3º Passo: celebrar e partilhar na comunidade (Lc 24,28-32):

A Bíblia, ela por si, não abre os olhos. Mas faz arder o coração! (Lc 24,32). O que abre os olhos e faz os dois amigos perceberem a presença de Jesus, é o partir do pão, o gesto comunitário da partilha, a celebração. No momento em que é reconhecido, Jesus desaparece. Pois eles mesmos experimentam a ressurreição, renascem e caminham por si.

O terceiro passo é este: saber criar um ambiente orante de fé e de fraternidade, onde possa atuar o Espírito que nos faz entender o sentido das coisas que Jesus falou. É sobretudo neste ponto da celebração, que a prática das comunidades ajudou a reencontrar o antigo poço da Tradição para beber da sua água.

O resultado: ressuscitar e voltar para Jerusalém (Lc 24,33-35):

Tudo mudou nos dois discípulos. Eles mesmos ressuscitam, criam coragem e voltam para Jerusalém, onde continuam ativas as forças de morte que mataram Jesus, mas onde agora se manifestam as forças de vida na partilha da experiência de ressurreição. Coragem, em vez de medo. Retorno, em vez de fuga. Fé, em vez de descrença. Esperança, em vez de desespero. Consciência crítica, em vez de fatalismo frente ao poder. Liberdade, em vez de opressão. Numa palavra: vida, em vez de morte! Em vez da má noticia da morte de Jesus, a Boa Notícia da sua Ressurreição!

O resultado da leitura da Bíblia deve ser este: experimentar a presença viva de Jesus e do seu Espírito, presente no meio de nós. É ele que abre os olhos sobre a Bíblia e sobre a Realidade e leva a partilhar a experiência de Ressurreição, como até hoje acontece nos encontros comunitários.

4. A ação do Espírito Santo

São estes os três fatores que ajudam a entender a conjuntura atual. Como dissemos, há um quarto fator, o mais importante de todos, que não pode ser avaliado nem verificado, mas que atua através de todos os outros fatores. É a ação do Espírito Santo, que nunca foi pego em flagrante, mas que, invisivelmente, atua nesta caminhada e a conduz. "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas!" (Ap 2,7.11,17.29; 3,6.13.22)

Assim, a partir dos anos 60 e 70, o povo começou a ler a Bíblia. Os Círculos Bíblicos tiveram uma expansão muito rápida. Em poucos anos se divulgaram em todo o Brasil. Sinal de que estavam respondendo a uma exigência real. Ninguém sabe quantos são atualmente os Círculos Bíblicos. Só mesmo o Espírito Santo. Eles foram e continuam sendo a raíz de um novo modo de ser igreja.

2. TRÊS ETAPAS, TRÊS ASPECTOS

No decorrer desses anos todos, foram aparecendo três aspectos da interpretação popular, aspectos simultâneos, misturados entre si. Ao longo dos anos, cada um deles foi tendo o seu momento privilegiado. São como que três etapas. Trata-se dos três aspectos da mesma atitude interpretativa do povo frente à Bíblia. Eles indicam os três objetivos distintos, que estão presentes e misturados, às vezes conflitantes, no uso popular da Bíblia.

1. Conhecer a Bíblia - Instruir

O processo de conhecer melhor a Bíblia começou já no século XIX com o trabalho renovador dos exegetas da Europa, tanto evangélicos como católicos. As novas descobertas trouxeram novos conhecimentos, abriam uma nova janela sobre o texto bíblico e sobre o contexto da sua origem.

A vontade de conhecer a Bíblia estimulou muita gente a uma leitura mais freqüente. Na igreja católica, a renovação da exegese, as encíclicas de Leão XIII, Bento XV e Pio XII, as novas traduções da Bíblia e o trabalho de divulgação dos exegetas levaram a Bíblia para mais perto do povo. Além disso, no Brasil, como já mencionamos, o que ajudou a provocar nos católicos um interesse maior pela Bíblia foi o vigor missionário das igrejas evangélicas de missão.

Foram surgindo, em todo canto, as semanas bíblicas, cursos bíblicos, escolas e escolinhas bíblicas, gincanas e maratonas bíblicas, e tantos outros movimentos e iniciativas para divulgar a Bíblia e estimular a sua leitura como, por exemplo, o assim chamado Mês da Bíblia, que foi celebrado durante mais de 25 anos e continua até hoje em muitos lugares, ou o Movimento da Boa Nova (MOBON). Este surgiu, inicialmente, como um movimento mais apologético de defesa do catolicismo contra a influência crescente das igrejas evangélicas. Atualmente, é um dos movimentos de evangelização libertadora mais difundidos que anima mais de 15.000 grupos em vários Estados do Brasil. Difícil de lembrar e enumerar todas as iniciativas que a criatividade popular inventou para divulgar a leitura e o conhecimento da Bíblia.

 

2. Criar Comunidade - Celebrar

Na medida em que a Palavra começava a ser conhecida, ela produzia os seus frutos. O primeiro fruto foi aglutinar as pessoas e criar comunidade. Semanas bíblicas populares, difusão da Bíblia em língua vernácula, cursos, encontros, treinamentos, inúmeros grupos e círculos bíblicos, mês da Bíblia, movimento da Boa Nova: tudo isto produziu um fervilhar comunitário muito grande em torno da Palavra de Deus. O movimento da renovação litúrgica fez com que se multiplicassem e se intensificassem as celebrações da Palavra.

Foram surgindo e crescendo as Comunidades Eclesiais de Base que por sua vez suscitavam, em todo canto, os círculos bíblicos, grupos de reflexão, grupos de evangelho, grupos de oração. No começo dos anos 70, temos a iniciativa dos Encontros Intereclesiais das Comunidades de Base, que foram acontecendo periodicamente e que no ano 2000 celebraram o décimo Intereclesial em Porto Seguro, Bahia, por ocasião da comemoração dos 500 anos da vinda dos europeus para o Continente Latino Americano. A dimensão comunitária chegou a renovar várias paróquias que passaram a se organizar como uma comunidade de comunidades.

Aqui convém chamar mencionar o fenômeno intrigante da evasão em massa dos fiéis das igrejas tradicionais para as igrejas pentecostais, que tem a ver com a mudança socio-econômica havida nos últimos 50 anos. Na metade do século XX, em torno de 75% da população brasileira vivia no campo, área rural. A industrialização e o êxodo rural produziu um mudança radical. No censo de 2001, 82% da população vive na cidade e somente 18% no campo. Ora, o que antes parecia impossível, hoje tornou-se um fato normal: antes, a autoridade moral maior que, no Brasil, norteava as consciências era a Igreja Católica. Nas pequenas cidades do interior, o vigário exercia um poder sagrado muito forte. Dificilmente, o povo tinha coragem de enfrentar ou de romper com este sistema secular. Hoje, em nome de uma experiência comunitária nos grupos pentecostais das periferias das grandes cidades, milhões de brasileiros rompem com aquela que antes era a maior autoridade moral. Por mais contraditório e ambivalente que possa parecer este fato, ele não deixa de ter um aspecto positivo: em nome da Palavra de Deus e de um encontro com Jesus, o povo tem coragem de romper e de entrar por caminhos novos que talvez não sejam novos, mas que são diferentes e têm uma dimensão comunitária muito profunda.

3. Servir ao povo - Transformar

Sobretudo a partir de 1968, foi dado um passo a mais. O conhecimento da Bíblia e a preocupação comunitária encontraram o seu objetivo que é o serviço ao povo. Não tendo dinheiro nem tempo para ler os livros sobre a Bíblia, os pobres nas suas comunidades e nos círculos bíblicos começaram a ler a Bíblia a partir do único critério de que dispunham, a saber, a sua vida de fé, vivida em comunidade, e a sua vida sofrida de povo oprimido. Lendo assim a Bíblia, descobriam o óbvio que não conheciam: uma história de opressão igual à que eles mesmos sofriam, uma história de luta pelos mesmos valores que eles perseguem até hoje: terra, justiça, partilha, fraternidade, vida de gente. O resultado desta prática libertadora foi explicitado na Teologia da Libertação que tenta sistematizar a vivência nova que está ocorrendo nas comunidades.

É o período em que começa a ser acentuada a dimensão política da fé. Na Igreja Católica, desde o Concílio Vaticano II e sobretudo desde a conferência episcopal de Medellin (1968), ocorreu uma evolução importante. Diante da situação dramática dos índios, criou-se o CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Diante da situação cada vez pior dos agricultores, criou-se a CPT (Comissão Pastoral da Terra). Diante da situação dos operários, criou-se a CPO (Comissão Pastoral dos Operários). Diante da situação dos pescadores, criou-se a CPP (Comissão Pastoral dos Pescadores). São instrumentos novos de pastoral que ajudam estas classes e grupos de pessoas a defenderem melhor sua vida, sua terra, seus direitos, sua identidade. Eles têm em comum o seguinte: surgiram por causa da fé renovada em Jesus e, como Jesus, defendem a vida, são ecumênicos, incomodam a sociedade estabelecida, provocam polêmica. Tudo isto revela a evolução que está ocorrendo na consciência que as igrejas têm de si mesmas e da sua missão: lutar pela defesa da vida ameaçada do povo. É neste mesmo período dos anos 70 que surge o CEBI, o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos para a Pastoral Popular que tem como objetivo articular, explicitar, aprofundar, divulgar e legitimar a leitura da Bíblia que o povo vinha fazendo nas suas comunidades.

Aqui devem ser lembrados os mártires, os testemunhos da fé, essa "nuvem de testemunhas ao nosso redor" (Hb 12,1), que deram a sua vida pela causa da liberdade, da justiça e da fraternidade. Assim como o autor da carta aos hebreus faz a memória dos testemunhos da fé (Hb 11,1-40), a Agenda Latino Americana, cada ano de novo, faz a memória dos milhares e milhares de mártires latino-americanos, homens e mulheres, leigos e religiosos, conhecidos e anônimos, que imitaram a Jesus que disse: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância"(Jo 10,10).

3ª PARTE:

A DINÂMICA INTERNA DO PROCESSO DA INTERPRETAÇÃO

Na leitura que as Comunidades fazem da Bíblia, apesar das diferenças próprias de cada país ou região, existe um método, cujas características básicas são comuns a todos. Um método é muito mais do que só umas técnicas e dinâmicas. É uma atitude que se toma frente à Bíblia e frente à própria vida. O método dos pobres se caracteriza por estes três critérios:

1. Os pobres levam consigo, para dentro da Bíblia, os problemas da sua vida. Lêem a Bíblia a partir da sua luta e da sua Realidade.

2. A leitura é feita em Comunidade. É, antes de tudo, uma leitura comunitária, uma prática orante, um ato de fé.

3. Eles fazem uma leitura obediente: respeitam o Texto e se colocam à escuta do que Deus tem a dizer, dispostos a mudar se Ele o exigir.

Estes três critérios (Texto, Comunidade, Realidade) articulam-se entre si em vista do mesmo objetivo: escutar Deus hoje. Eles atualizam a seu modo o mesmo método que transparece no episódio de Emaús (Lc 24,13-35). São como três aspectos ou etapas de uma e mesma atitude interpretativa frente à Bíblia. Entre os três existe uma dinâmica interna que marca o processo da interpretação popular: conhecer a Bíblia leva a conviver em comunidade; conviver em comunidade leva a servir ao povo; servir ao povo, por sua vez, leva a desejar um conhecimento mais aprofundado do contexto de origem da Bíblia, e assim por diante. É uma dinâmica que não termina nunca. Estes três aspectos: um nasce do outro, supõe o outro e leva ao outro.

A figura explicita o que queremos comunicar:

Não importa tanto a partir de qual dos três aspectos se inicia o processo da interpretação. Isto depende da situação, da história, da cultura e dos interesses da comunidade ou do grupo. O que importa é perceber que um aspecto fica incompleto sem os outros dois.

Geralmente, em todas as comunidades, há pessoas que se identificam com um destes três aspectos: 1. pessoas que querem conhecer a Bíblia e que se interessam mais pelo estudo; 2. pessoas que insistem mais na Comunidade e nas suas funções internas; 3. pessoas mais preocupadas em transformar a Realidade, servindo ao povo na política e nos movimentos populares.

Tudo isto produz tensões entre os vários grupos e interesses. Estas tensões são saudáveis e fecundas. Por exemplo, em alguns lugares, a prática política mais intensa dos últimos anos está pedindo, agora, um conhecimento mais aprofundado do texto bíblico e do contexto social, onde este texto foi produzido, e uma vivência comunitária mais intensa da espiritualidade da libertação. Em outros lugares, a vivência comunitária chegou no seu limite e está pedindo uma ação mais engajada nos movimentos populares. Com outras palavras, as tensões ajudam a criar um equilíbrio que favorece a interpretação da Bíblia, e impedem que ela se torne unilateral.

Às vezes, porém, estas tensões são negativas e podem levar cada um dos três aspectos a se fechar sobre si mesmo e a excluir os outros dois. O itinerário da interpretação popular, muitas vezes, é tenso e conflitivo, com risco de fechamento e de retrocesso.

Quando a comunidade alcança o objetivo de um destes três aspectos (conhecer, conviver ou transformar), alguns membros, por fidelidade à palavra, querem avançar e dar um passo adiante, e outros, em nome desta mesma fidelidade, recusam a abertura. É o momento da crise e também da graça. Nem sempre vence o grupo que quer avançar.

1. Todos os movimentos pastorais usam a Bíblia e nela se apóiam. Em nome da Bíblia, os fundamentalistas recusam a interpretação e a abertura para a realidade. Em alguns lugares, os grupos bíblicos que se fecharam em torno de si mesmos e em torno da letra da Bíblia, tornaram-se os grupos mais conservadores da paróquia. O próprio exegeta pode correr o risco de fechar-se dentro do estudo liberal e até progressista do texto bíblico, mas colocando-se a serviço das forças conservadoras da opressão.

2. Muitos movimentos se fecham no Comunitário, no místico, no carismático, e recusam a abertura para o social e o político. Eles se abrem para o serviço aos pobres (e muito!), mas não numa linha de transformação e de libertação. Deixam tranqüila a consciência dos opressores e não incomodam o sistema em que vivemos.

3. Existe também o fechamento do lado oposto, embora com menor freqüência. Às vezes, acontece o seguinte. Uma comunidade ao alcançar um alto grau de conscientização e de comprometimento político começa a dar menos importância à vivência comunitária, às devoções pessoais, às romarias e procissões. Tudo isso, para eles, pode ser manipulados com relativa facilidade pela ideologia dominante, e concluem, apressadamente, que tais práticas não contribuem tanto para a transformação. Por isso, eles correm o perigo de fechar-se no social, no político, no serviço ao povo, esquecendo-se da dimensão espiritual e mística da convivência comunitária.

Embora compreensíveis, fechamentos assim são trágicos, pois nenhum dos três alcança o sentido sozinho. Para superar este perigo, é importante manter um ambiente de diálogo. Pois onde a palavra humana circula com liberdade e sem censura, a palavra de Deus gera liberdade.

4ª PARTE

NOVIDADE E ALCANCE DA INTERPRETAÇÃO POPULAR

Dentro da interpretação que os pobres fazem da Bíblia existe uma novidade de grande alcance para a vida das igrejas. Novidade antiga que vem de longe e que retoma alguns valores básicos da Tradição comum! Seguem aqui sete pontos que, de uma ou de outra maneira, sinalizam o itinerário:

1. O objetivo da interpretação já não é buscar informações sobre o passado, mas sim clarear o presente com a luz da presença do Deus-conosco, Deus Libertador; é interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. Redescobre-se na prática a nova visão da Revelação, de que falamos acima.

2. O sujeito da interpretação já não é o exegeta. Interpretar é uma atividade comunitária em que todos participam, cada um a seu modo e conforme a sua capacidade, inclusive o exegeta que nela exerce um papel especial. Por isso, é importante ter nos olhos não só a fé da comunidade, mas também fazer parte efetiva de uma comunidade viva e buscar o sentido comum aceito por esta comunidade. Esta pertença efetiva exerce uma influência crítica sobre a função da exegese científica que, assim, se coloca mais a serviço. O mesmo vale para a teologia. Por causa das mudanças ocorridas no mundo a teologia da libertação entrou em crise e está em fase de revisão. Por outro lado, é bom constatar que a leitura popular não está em crise, mas cresce em todo canto. Pois, como dissemos, o seu sujeito não é o exegeta, mas o povo das comunidades eclesiais de base.

3. O lugar social de onde se faz a interpretação é a partir dos pobres, dos excluídos e dos marginalizados. Isto modifica o olhar. Muitas vezes, por falta de uma consciência social mais crítica, o intérprete é vítima de preconceitos ideológicos e, sem se dar conta, usa a Bíblia para legitimar o sistema de opressão que desumaniza.

4. A leitura que relaciona a Bíblia com a vida é ecumênica e libertadora. Leitura ecumênica não quer dizer que católicos e protestantes discutem as suas divergências para chegar a uma conclusão comum. Isto pode ser uma conseqüência. O mais ecumênico que temos é a vida que Deus nos deu. Aqui na América Latina, a vida de grande parte da população corre perigo, pois já não é vida. Leitura ecumênica é interpretar a Bíblia em defesa da vida e não em defesa das nossas instituições e confissões. Na atual situação em que vivem os povos da América Latina, uma leitura em defesa da vida, necessariamente, deve ser libertadora. Por isso mesmo, ela é conflitiva. Tornou-se sinal de contradição. Por ser ecumênica e libertadora, extrapolou as fronteiras das instituições e agora é lida a partir dos diferentes grupos marginalizados: negros, índios, mulheres, homossexuais. O critério básico não é mais a igreja, mas sim a vida, lida através dos olhos da raça, do gênero, da cultura, da classe. Ou seja, o critério é explicitar o mistério da igreja tal como foi definido por Paulo: "Todos vocês que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um em Cristo!" (Gl 3,27-28).

5. Aqui aparece a característica própria da exegese popular. O problema maior entre nós não é, como na Europa, a fé que corre perigo por causa da secularização. Mas é a vida que corre o sério perigo de ser eliminada e desumanizada por um sistema económico injusto e excludente. E o que é pior, a própria Bíblia corre perigo de ser usada para legitimar esta situação em nome de Deus. Como no tempo dos reis de Judá e de Israel, usa-se a Tradição do povo de Deus para legitimar os ídolos. A Bíblia foi usada para legitimar a conquista das Américas, a política da Apartheid, as ditaduras militares e a repressão. Um dos maiores repressores e torturadores dizia: "Meu livro de cabeceira é o Evangelho de São Mateus!" E Pinochet sempre se comparou com Moisés, libertador do seu povo. A interpretação popular descobre, revela e denuncia esta manipulação.

6. O método e a dinâmica, usados pelos pobres nas suas reuniões, são muito simples. Eles não costumam usar uma linguagem intelectual discursiva, feita de argumentos e raciocínios. Como a própria Bíblia, preferem a sua maneira própria que é contar fatos e usar comparações. A linguagem popular funciona por associação de idéias. Sua preocupação primeira não é fazer saber, mas sim fazer descobrir. Muito ajudou em tudo isto o método da pedagogia do oprimido de Paulo Freire.

7. Aparecem com maior clareza a função e os limites da Bíblia. Os limites são estes: a Bíblia não é fim em si mesma, mas está a serviço da interpretação da vida. Sozinha ela não funciona e não consegue abrir os olhos, pois o que abre os olhos é a partilha do pão, o gesto comunitário. A Bíblia deve ser interpretada dentro de um processo mais amplo, que leva em conta a comunidade e a realidade. A Bíblia é como o coração: quando é arrancado fora do corpo da comunidade e da vida do povo, morre e faz morrer!

5ª PARTE

CAMINHOS NOVOS APARECEM, PROBLEMAS NOVOS SURGEM

1. A Leitura feminista ou leitura de gênero

Esta leitura questiona e relativiza a secular leitura masculinizada feita pelas igrejas para manter o sistema patriarcal. Ela não pode ser descartada como um fenômeno passageiro nem como uma das muitas curiosidades exegéticas sem maiores conseqüências. Ela é uma das características mais importantes que vem surgindo de dentro da leitura popular da Bíblia. O seu alcance é muito maior do que poderia parecer à primeira vista. No Brasil ela adquire uma importância maior ainda por causa da esmagadora maioria de mulheres que participam ativamente nos grupos bíblicos e sustentam a luta do povo em muitos lugares. No CEBI é grande o número de assessoras que se formaram nos últimos anos e que estão aprofundando a leitura de gênero não como um novo setor, mas como uma característica que deve marcar toda a leitura popular que fazemos.

2. Como enfrentar a realidade do fundamentalismo?

Nos encontros de massa promovidos pelas redes de televisão, padres cantores aparecem. Nos encontros bíblicos promovidos pelo CEBI, abertos a pessoas dos vários setores da vida das igrejas, aparece cada vez mais o seguinte fenômeno. O estudo e a interpretação da Bíblia são feitos numa linha claramente libertadora. Mas nas celebrações, nas conversas de grupos, nas perguntas, aparece uma atitude interpretativa diferente, em que se mistura fundamentalismo com teologia da libertação. Sobretudo nos jovens! Como explicar este fenômeno? Vem de onde? Do contato com a linha conservadora, com a linha carismática, com os pentecostais? Será que também não vem das deficiências da atitude libertadora frente à Bíblia? Será que não vem de algo ainda mais profundo que está mudando no subconsciente da humanidade? Pois, a realidade do fundamentalismo não existe só nas igrejas cristãs, mas também nas outras religiões: judaica, muçulmana, budista... Existem até formas de um fundamentalismo secularizado. "O fundamentalismo é um perigo. Ele separa o texto do resto da vida e da história do povo e o absolutiza como a única manifestação da Palavra de Deus. A vida, a história do povo, a comunidade, já não teriam mais nada a dizer sobre Deus e a sua Vontade. O fundamentalismo anula a ação da Palavra de Deus na vida. É a ausência total de consciência crítica. Ele distorce o sentido da Bíblia e alimenta o moralismo, o individualismo e o espiritualismo na interpretação. É uma visão alienada que agrada aos opressores do povo, pois ela impede que os oprimidos tomem consciência da iniqüidade do sistema montado e mantido pelos poderosos" (Coleção: Tua Palavra é Vida, Vol I: A Leitura Orante da Bíblia, Publicações CRB, 1990, p. 22). Na Igreja Católica, pela primeira vez, o documento O Uso da Bíblia na Igreja critica fortemente o fundamentalismo como uma coisa nefasta que não respeita suficientemente o sentido da Bíblia.

3. A busca de Espiritualidade e o nosso método de interpretação

Em todo canto se ouve e se sente o desejo de maior profundidade, de mística, de espiritualidade. A Bíblia, de fato, pode ser uma resposta a este desejo. Pois, a Palavra de Deus tem duas dimensões fundamentais. De um lado, ela traz uma LUZ. Neste sentido, ela pode contribuir para clarear as idéias, desmascarar as falsas ideologias e comunicar uma consciência mais crítica. De outro lado, ela traz uma FORÇA. Neste sentido, ela pode animar as pessoas, comunicar coragem, trazer alegria, pois ela é força criadora que produz o novo, gera o povo, cria os fatos, faz amar. Infelizmente, muitas vezes, na prática pastoral, estes dois aspectos da Palavra estão separados. De um lado, os movimentos carismáticos; de outro lado, os movimentos de libertação. Os carismáticos têm muita oração, mas muitas vezes carecem de visão crítica e tendem para uma interpretação fundamentalista, moralizante e individualista da Bíblia. Por isso, a sua oração, muitas vezes, carece de fundamento real no texto e na realidade. Os movimentos de libertação, por sua vez, têm muita consciência crítica, mas, às vezes, carecem de perseverança e de fé, quando se trata de enfrentar situações humanas e relacionamentos entre pessoas que, dentro da análise científica da realidade, em nada contribuem para a transformação da sociedade. Às vezes, eles têm uma certa dificuldade para enxergar a utilidade de longas horas gastas em oração sem resultado imediato. Já existem várias iniciativas importantes que procuram enfrentar e superar este problema para além das divergências: o projeto Tua Palavra é Vida, (Projeto de formação bíblica para religiosos e religiosas, promovido pela CRB - Conferência dos Religiosos do Brasil); A equipe de espiritualidade do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), a iniciativa da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) de valorizar os quatro evangelhos e os Atos em preparação do jubileu do Novo Milênio, etc.

4. A cultura dos nossos povos

No mito do Tucumã, que explica aos índios da região amazônica a origem do mal no mundo, o culpado pelos males não é a mulher, mas sim o homem. Num encontro bíblico, alguém perguntou: "Por que não usamos os nossos mitos em vez dos mitos do povo hebreu?" Não houve resposta. A mesma pergunta foi feita num curso bíblico na Bolívia em Maio de 1991. Os participantes, quase todos Aymaras, perguntavam: "Por que usar só a Bíblia? As nossas histórias são mais bonitas, menos machistas e mais conhecidas!" As religiões da Ásia, mais antigas que a nossa, levantam estas mesmas perguntas há vários anos. Qual o valor da nossa história e da nossa cultura. Será que elas não poderiam valer como o nosso Antigo Testamento, onde estão escondidas as promessas que Deus fez aos nossos antepassados e onde existe a nossa lei como "nosso pedagogo para Jesus Cristo" (Gál 3,24)? O Evangelho não veio eliminar nem substituir o Antigo Testamento, mas sim completá-lo e explicitar todo o seu significado (Mt 5,17). O Antigo Testamento do povo de Israel é o cânon ou a norma inspirada que nos ajuda a perceber e a revelar esta dimensão mais profunda da nossa cultura e história, do nosso Antigo Testamento. Neste sentido são muito importantes as diferentes iniciativas da leitura indígena, negra e de gênero.

5. Necessidade de um estudo mais aprofundado da Bíblia na América Latina

A caminhada das Comunidades avança e se aprofunda. Aos poucos, do coração desta prática popular está surgindo uma nova atitude interpretativa que não é nova, mas muito antiga. Ela tem necessidade de ser legitimada tanto a partir da Tradição das igrejas como a partir da pesquisa exegética. A leitura que se faz a partir dos pobres e a partir da causa dos pobres tem suas exigências próprias. Na medida em que se avança, cresce o desejo de maior aprofundamento científico. Há muitos assessores e assessoras populares que gostariam de ter um conhecimento das línguas bíblicas; gostariam de conhecer melhor o contexto econômico, político, social e ideológico em que nasceu a Bíblia; gostariam de levar para dentro da Bíblia as perguntas que hoje angustiam o povo na vivência da sua fé. Existe uma escassez de assessores e de assessoras acadêmicos capazes de responder a esta demanda crescente de formação bíblica dos assessores populares e de fazer frente ao problema novo que está se criando por causa do crescimento imenso do fundamentalismo (muito mais perigoso do que qualquer outro -ismo).

A prática da leitura bíblica, feita nas Comunidades Eclesiais de Base da América Latina, já adquiriu uma certa repercussão em todas as Igrejas, pois está provocando discussões, reações e adesões em muitos lugares. Isto se viu claramente nos encontros intereclesiais, realizados desde os anos 70, no Encontro Mundial da Igreja Luterana, realizado em Curitiba em janeiro de 1990, e no Encontro Mundial da FEBIC, realizado em Bogotá em julho de 1990. Há muitos outros sinais do interesse que existe nos outros Continentes pela leitura que se faz da Bíblia aqui na América Latina. Por tudo isso, é importante que se comece a pensar seriamente na criação de centros de pesquisa e de formação bíblica que se orientem a partir dos problemas reais que sentimos por aqui nas nossas comunidades.

O CEBI, Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, é uma tentativa que procura ser uma resposta a este "Sinal dos Tempos". Fundado em 1978, cresceu e se expandiu rapidamente. Agora existe organizado em praticamente todos os Estados do Brasil, prestando o seu serviço a um número cada vez maior de igrejas. Além disso, recebe solicitações de vários países da América Latina, África e Europa para um intercâmbio deste tipo de leitura bíblica.

6ª PARTE

HISTÓRIAS PARALELAS QUE SE ILUMINAM MUTUAMENTE

PARA ALEGRIA DE MUITOS

1. A Revelação de um novo rosto de Deus

Numa roda de amigos alguém mostrou uma fotografia, onde se via um homem de rosto severo, com o dedo levantado, quase agredindo o público. Todos ficaram com a idéia de se tratar de uma pessoa inflexível, antipática, que não permitia intimidade. Nesse momento, chegou um rapaz, viu a fotografia e exclamou: "É meu pai!" Os outros olharam para ele e, apontando a fotografia, comentaram: "Pai severo, hein!" Ele respondeu: "Não! Não é não! Ele é muito carinhoso. Meu pai é advogado. Aquela fotografia foi tirada no tribunal, na hora em que ele denunciava o crime de um latifundiário que queria despejar uma família pobre que estava morando num terreno baldio da prefeitura há vários anos! Meu pai ganhou a causa. Os pobres não foram despejados!" Todos olharam de novo e disseram: "Que fotografia simpática!" Como por um milagre, ela se iluminou e tomou um outro aspecto. Aquele rosto tão severo adquiriu os traços de uma grande ternura! As palavras do filho, mudaram tudo, sem mudar nada! As palavras e gestos de Jesus, nascidas da sua experiência de filho, sem mudar uma letra ou vírgula sequer, mudaram o sentido do Primeiro Testamento (Mt 5,17-18). O Deus, que parecia tão distante e severo, a ponto de o povo não ter mais coragem de pronunciar o seu Nome, adquiriu os traços de um Pai bondoso de grande ternura! O mesmo acontece hoje nas Comunidades Eclesiais de Base. A experiência humanizadora da convivência comunitária e da luta em prol da justiça e da fraternidade gera uma nova experiência de Deus e da vida que se transmite através da participação das pessoas nos Círculos Bíblicos e encontros comunitários e lhes comunica um critério novo de interpretação. Aqui está a fonte escondida e geradora do processo da leitura popular da Bíblia na América Latina.

2. Ultrapassando a letra, o espírito comunica vida

O apóstolo Paulo dizia: "A letra mata, mas é o Espírito que comunica vida" (2Cor 3,6). Para Paulo, a letra era a história do povo descrita no Antigo Testamento. O Espírito era o rumo que existe dentro da história e cujo objetivo ou ponto final fica para além da história. No tempo de Paulo, alguns judeus se fechavam dentro da sua própria história (letra) e não aceitavam que ela estivesse orientada para desembocar na Boa Nova de Deus que Jesus nos revelou (2Cor 3,13). Por isso, assim afirma Paulo, a letra já não lhes comunicava a vida. Até hoje, a letra mata, quando a pessoas se fecham no seu próprio pensamento e não querem perceber que dentro da nossa história existe o fio de ouro da ação do Espírito de Deus que nos orienta para a vida plena. A letra mata quando reduzimos a imagem de Deus ao tamanho das nossas idéias ou das nossas igrejas. Ao contrário, a letra desabrocha e revela o Espírito que comunica vida quando as pessoas se abrem para além de si mesmas, do seu próprio mundo e da sua própria igreja, e procuram descobrir o rumo para o qual as conduzem a sua história, a sua cultura, a sua igreja. Aí, o seu horizonte se abre para a experiência sempre renovada de Deus e da vida. Aí, a letra da Bíblia está se tornando para elas a gramática que as ajuda a ler o que o Espírito nos fala pela nossa vida e pela história dos nossos povos. Ela ajuda a relativizar as confissões religiosas em vista do Reino de Deus.

3. Superando os preconceitos, a imagem de Deus se purifica

A experiência de Deus, a imagem de Deus, transmite-se não tanto pelo que informamos sobre Deus através das doutrinas que ensinamos, mas muito mais pelo que transmitimos através das atitudes que tomamos. Mesmo sem falar de Deus, dele somos um reflexo. Algo se comunica. A imagem do Deus-Juiz-que-condena produz gente medrosa. A imagem do Deus-todo-poderoso-só-nosso pode produzir gente intolerante. A imagem de Deus-ternura-mãe-e-pai gera pessoas acolhedoras e solidárias. A experiência de Deus se reflete no relacionamento humano. A Bíblia pode ajudar-nos a purificar nossa imagem de Deus e a humanizar nossa vida. Ao longo das suas páginas corre a expressão de uma dupla experiência. De um lado, uma experiência sempre renovada da vida, que leva as pessoas a descobrir e a criticar as imagens erradas de Deus. De outro lado, uma experiência sempre renovada de Deus, que leva as pessoas a descobrir e a criticar atitudes e leis religiosas repressivas contra a vida. Até chegar a Jesus que é, para nós cristãos e cristãs, revelação plena de Deus e do sentido da vida. Tudo isso está começando a nascer como uma semente de mostarda nas.

4. Humanizando o relacionamento, a vida humana se diviniza!

A imagem verdadeira de Deus é o ser humano, pois Deus nos fez à sua imagem e semelhança, Ele nos fez homem e mulher (Gn 1,27). Por isso, a experiência do Deus verdadeiro só é verdadeira quando ela gera um relacionamento que humaniza as pessoas e as torna acolhedoras e solidárias, compreensivas e amigas. Pois, se Deus nos fez humanos, o que mais honra a Deus e mais reflete a sua imagem é a humanização progressiva da vida. Para nós, cristãos e cristãs, Jesus é o modelo. O Papa Leão Magno disse a respeito dele: "Jesus foi tão humano, mas tão humano como só Deus pode ser humano". A experiência sempre renovada de Deus deve gerar novas relações entre nós. A última frase do AT que faz a transição para o NT exprime a esperança messiânica de todo ser humano: reconduzir o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais, para que a terra não seja destruída (Ml 3,24). É o que a humanidade pode e deve espera da ação de nós cristãos que seguimos o ensinamento de Jesus. As comunidades procuram ser uma resposta a este desejo mais profundo do coração humano. Procuram ser, como Jesus, uma Boa Nova de Deus para todos, sobretudo para os pobres.

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