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BÍBLIA E CIDADANIA

 

Valmor da Silva

Mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma,

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo,

Professor no Departamento de Filosofia e Teologia da Universidade Católica de Goiás, Brasil.

 

Resumo: Objetiva demonstrar as contribuições da Bíblia para a formação de nova consciência cidadã. Na América Latina e especialmente no Brasil, outros sujeitos da leitura do livro sagrado procuram superar as discriminações e propor interpretações diferentes. Destaca-se a leitura indígena, negra e de gênero. Outras categorias sociais são: crianças, idosos, estrangeiros e minorias étnicas, deficientes, homossexuais, sem-terra e sem-teto, ecologistas.

Palavras-chave: Bíblia, cidadania, indígenas, negros, mulheres, hermenêutica.

 

 

BÍBLIA E CIDADANIA

O objetivo destas páginas é demonstrar o quanto a Bíblia pode gerar nova consciência de cidadania, provocar mais efetiva participação política, formar novos cidadãos e cidadãs. O horizonte desta análise será a América Latina, especificamente o Brasil.

A falta de cidadania é uma realidade constante, no Brasil e em todo o continente latino-americano. Adquirir o direito de cidadã e cidadão, numa sociedade como a nossa, ainda é um sonho inatingível para grande massa da população. Aos mais carentes são fechadas as portas dos direitos fundamentais, e a chamada democracia ainda é a legitimação dos privilégios de alguns poucos que se situam no topo da pirâmide social, à custa do sacrifício da maioria. E existe ainda a marginalização por causa da cor, do sexo, do aspecto físico, do sotaque e do jeito de vestir, entre tantos outros preconceitos.

O filme da realidade revela multidões de excluídos. As falhas no setor da educação entregam à ignorância milhões de analfabetos. O sistema de saúde ineficiente alonga filas de doentes desesperados. A falta de moradia multiplica o número dos sem-teto, jogados ao relento. O desemprego aumenta, logicamente, porque os detentores da tecnologia só se importam com as máquinas, sem dar atenção às pessoas. Os sem-terra penam debaixo da lona, resistem e lutam para recuperar seus direitos.

A Bíblia é considerada livro sagrado, palavra de Deus, norma de vida para multidões, sobretudo para os mais carentes. Em que medida a Sagrada Escritura pode contribuir para que a população latino-americana adquira mais cidadania? É o que este artigo pretende responder.

A Bíblia é utilizada com freqüência para fundamentar posições políticas. Ela inclusive provoca opções partidárias. Alguns exemplos recentes, extraídos de contextos diversos, ilustram essa afirmação.

No Chile, Pinochet se apresentou como o libertador Moisés. Ronald Reagan mandou atacar a Nicarágua em defesa de Deus. Ferdinando Marcos, nas Filipinas, dizia que não veio abolir a lei, mas completá-la. Na África do Sul o apartheid foi justificado pela Bíblia. Nas ditaduras latino-americanas, os governantes eram quase todos de leitura diária da Bíblia e de missa dominical. No Congresso Nacional Brasileiro, uma Bíblia é mantida no centro, em exposição permanente. As igrejas, por sua vez, utilizam a Bíblia para justificar dogmas, para estabelecer leis morais, para impor condutas sexuais, para firmar posições hierárquicas, para excluir mulheres etc.

A população mais carente, por seu turno, apela para a Bíblia de maneiras diversas. Para os pentecostais, a Bíblia resolve todos os problemas, seja de ordem religiosa, política, econômica, medicinal ou afetiva. Muitas pessoas iletradas aprendem a ler justamente com a Bíblia, e para compreendê-la melhor. E o livro sagrado lhes dá segurança, sentido de cidadania, nova postura diante da vida. Ao integrar uma igreja pentecostal, o crente assume um novo status social, carrega um livro debaixo do braço, usa gravata e paletó, toca trompete, participa economicamente pagando o dízimo. Por se tratar de uma realidade ampla e complexa, o pentecostalismo não será abordado explicitamente nesta apresentação.

Esta análise se concentra sobre a camada pobre de nossa população, massas carentes e excluídas em luta pela sua inclusão na sociedade, luta essa que passa pelas Comunidades Eclesiais de Base, conforme os pressupostos da Teologia da Libertação. Buscamos a ótica de indígenas, negros, mulheres, crianças, idosos, estrangeiros, deficientes, homossexuais, sem-terra, sem-teto, ecologistas, dentre outros.

Um olhar sobre a história

O continente hoje chamado de América Latina foi ocupado há vinte mil anos, ou talvez há cinqüenta, por povos que viviam outro sistema social, a partir de um paradigma distinto. Nesta convivência, por certo, o sentido de cidadania era diferente, mas a inclusão social das pessoas era muito maior. Conta-se que, na Conferência do Episcopado Latino-Americano, em Medellín, foram trazidos alguns indígenas para fazer um pronunciamento em sua língua quêchua. Toda a assembléia compreendeu duas palavras, repetidas diversas vezes, opressão e marginalização. No debate que se seguiu, explicaram que nas línguas indígenas não existem essas palavras.

O estudioso de Religiões, Albert Samuel, resume bem o sentido de cidadania para os povos indígenas:

No animismo, a prioridade dada à comunidade não transforma a hierarquia em dominação. O rei e o chefe são servidores da ordem, necessária à comunidade. Por isso o poder não deve ser confiado a quem o ambiciona. O ambicioso não serviria ao grupo.

As decisões não vêm do beneplácito do chefe, mas devem estar de acordo com as tradições e encarnar o costume. Resultam do consenso das opiniões. O chefe se contenta com presidir e dar a palavra aos anciãos. Ele não deve nem indicar sua preferência. Assim o poder vem do saber dos sábios, inspirados pela experiência e pelos antepassados, que lhes conferem a autoridade.

A ordem social e a ordem religiosa são uma só. (Samuel, 1997, p.65-66).

O senso de cidadania junto aos povos indígenas depende, portanto, de um paradigma diferente, uma visão integrada da vida, em que o ser humano é parte de um universo total. Rompe-se a barreira entre sagrado e profano. Por isso, todas as realidades da vida são remetidas à divindade e expressas em forma de mitos, ritos, danças etc. Muitos viraram textos sagrados e foram registrados em códices como o Popol Vuh e o Chilam Balam. Outros foram transmitidos oralmente e são celebrados até hoje.

Com a colonização européia, chegou a Bíblia cristã e se impôs como único livro sagrado. A sua utilização, ao longo dos 500 anos, foi ambígua. Em muitos casos justificou discriminações e massacres e noutros defendeu as classes oprimidas.

Eis alguns fatos, a título de exemplo, ilustrando a ambigüidade no uso da Bíblia, com relação a índios, negros, mulheres e crianças. Os exemplos são extraídos de um estudo realizado pelo autor deste artigo, em vista de uma conferência no Equador (Silva, 1994, p.26-59).

A utilização da Bíblia com relação aos indígenas foi, em geral, traumática, e está bem ilustrada na famosa controvérsia de Valladolid, reunião convocada em 1550 para considerar a posição a ser tomada com relação aos índios do Novo Mundo. Duas mentalidades entram em confronto, duas posições opostas, duas argumentações bíblicas, Juan Ginés de Sepúlveda e Barbolomé de las Casas.

Sepúlveda defende a dominação dos índios e apela para vários argumentos: como os Hebreus conquistaram a terra prometida, assim os colonizadores devem conquistar a nova terra. Afinal, Deus mandou destruir os templos e ídolos pagãos (Dt 12,2) e mandou apoderar-se do butim de guerra (Dt 20,13-14). Também as águas do dilúvio destruíram os iníquos (Gn 6-8). Abraão empreendeu guerra contra os quatro reis para reparar a ofensa feita a Lot e aos amigos (Gn 14). Afinal, fogo e enxofre destruíram a iniquidade de Sodoma e Gomorra (Gn 19). É uma obrigação de amor fraterno libertar os bárbaros expostos à morte, a exemplo do bom samaritano do evangelho (Lc 10,29-37). O argumento de silêncio prova que a Bíblia nunca nomeia os índios, enquanto os espanhóis sim, são citados em Rm 15,24.28.

Las Casas contra argumenta: deve-se ler o sentido espiritual da Bíblia, que está acima do literal, e que não pode conter nada falso. Quem dá sentido à Bíblia é o Espírito Santo, não cada um individualmente. Os exemplos do Antigo Testamento devem ser admirados, nem sempre imitados. Na conquista da terra prometida, o butim se reduziu aos cananeus idólatras, exclusivamente. Las Casas ainda denuncia os opressores, como os cegos e surdos do Evangelho, e acusa de idólatras os conquistadores e encomenderos, por sua auri sacra fames. Os índios oprimidos sãos os "cristos açoitados" nessas terras. Um texto de referência para ele foi "O pão dos indigentes é a vida dos pobres, e quem tira a vida dos pobres é assassino" (Eclo 34,21).

Com relação aos negros, a escravidão foi justificada como maldição divina de trabalhar "com o suor do teu rosto" (Gn 3,19). Os africanos seriam descendentes de Caim, ou então de Cam, amaldiçoado por ter descoberto a nudez do pai, Noé (Gn 9,25-27). José foi vendido aos ismaelitas como escravo, pelos próprios irmãos (Gn 37,27-28). A passagem da África para o Brasil é como a transmigração do Egito para a terra prometida (Ex 15). "Para o asno, forragem, chicote e carga; para o escravo, pão, correção e trabalho" (Eclo 33,25). Os escravos devem obedecer aos patrões (Cl 3,22-24; Ef 6,5-9; 1 Pd 2,18-21). "Felizes os servos que o patrão encontrar vigiando" (Lc 12,37). "Carreguem os fardos uns dos outros" (Gl 6,2). Seria um ato de caridade cristã comprar a liberdade dos negros. Os africanos deviam ser resgatados do pecado africano (inferno), para sua redenção provisória no Brasil (purgatório), e definitiva no céu (paraíso).

A defesa dos escravos, ao contrário, teve escassos recursos à Bíblia. Na Guiné, os jesuítas aplicaram a lei do ano sabático, libertando-os após seis anos (Lv 25). Como Rebeca desviou a bênção de Jacó para Isaac (Gn 25), a virgem Maria pode desviar as bênçãos dos herdeiros para os escravos. Daí o costume de usarem rosários em torno ao pescoço.

Com respeito às mulheres, a Bíblia teve muitas aplicações. Os perigos das mulheres e as virtudes do matrimônio receberam longas apologias. O mito de Eva (Gn 3) manteve a imagem da mulher tentadora, instrumento de satanás. A opressão foi justificada com "o marido te dominará" (Gn 3,16), ou "as mulheres sejam submissas a seus maridos" (Ef 5,22).

Em contraposição, idealizou-se a imagem da mulher virgem e mãe, a exemplo de Maria. Na realidade, as mulheres sempre se destacaram como educadoras e catequistas. As mães foram responsáveis pela transmissão da fé e dos valores da nossa sociedade, dos inícios à atualidade.

Quanto às crianças indígenas, foram mantidas duas visões contraditórias: por um lado o índio infantilizado e inocente; por outro, o índio idólatra e monstruoso. Para chamá-los à catequese apelou-se ao compelle eos intrare "obriga-os a entrarem" (Lc 14,23). No dizer de Anchieta "para esta gente não há melhor pregação que espada e vara de ferro" (Sl 2,9). A missão era um envio para convidar ao banquete escatológico (Mt 22), com lugares preparados (Jo 14,2-3). Positivamente, a catequese utilizou representações de cenas bíblicas, os autos, prelúdio do teatro brasileiro.

Concluindo, o uso da Bíblia ao longo desses quinhentos anos de evangelização tem mais motivos para mea culpa do que para gloria tibi domine.

Nova aproximação à Bíblia

Em época mais recente, junto com os pressupostos da Teologia da Libertação, a Bíblia passou a ser lida com outros olhos. A leitura se dá dentro do triângulo hermenêutico: texto, realidade, comunidade. Ganham importância os conflitos que geraram os textos. Privilegia-se o método sócio-histórico, buscando elementos que estão por trás do texto. Descobrem-se, nas entrelinhas, pessoas discriminadas por classe social, etnia, gênero e outros. Algumas características desta nova aproximação ao texto sagrado serão descritas a seguir.

1. A Bíblia ligada com a vida das comunidades: Há uma integração total entre os problemas que o texto sagrado apresenta e a realidade que as pessoas vivem no seu dia-a-dia. Por isso, ao interpretar a Bíblia, é necessária a fidelidade ao texto bíblico, bem como a fidelidade à vida que o povo vive. Além disso, é importante privilegiar a leitura comunitária da Bíblia. Ela foi escrita para formar comunidade e provém de um contexto comunitário. Sua trajetória se completa quando ela atinge as comunidades atuais. Em outras palavras, ela visa à inclusão e à cidadania. Portanto, o círculo hermenêutico só se fecha na vida das comunidades atuais. A conseqüência lógica é que tal leitura torna-se militante, engajada, comprometida com a luta pela justiça. Seu objetivo não é conhecer o passado, mas, sim, formar a nova sociedade.

2. A Bíblia como segundo livro: O primeiro livro é a vida, a história, as dificuldades do dia-a-dia. Está impresso na natureza e vem sendo escrito desde o primeiro momento da criação. A Bíblia é já o segundo livro, escrito não para substituir, mas para interpretar o primeiro. Esse conceito, apresentado por Carlos Mesters (1983, p.26), é desenvolvido nas diversas hermenêuticas latino-americanas. Significa que a Bíblia contém a palavra de Deus, mas não a esgota, pois a palavra divina ultrapassa, de muito, os limites de um livro. Em conseqüência, a história das populações indígenas e negras contém a palavra de Deus, muito antes da escritura cristã. Também por isso, essa leitura da Bíblia é dialogal e ecumênica. O ponto de referência passa a ser não a verdade ou a instituição, mas a luta pela justiça.

3. A Bíblia lida com o método socio-histórico: Busca-se um método que permite divisar melhor as comunidades que estão por trás dos textos produzidos. São analisados os vários aspectos de determinada página bíblica, tais como o social, político, econômico e ideológico. Muitas vezes, a busca do conflito que gerou o texto ajuda a compreender o que hoje se lê. Além de considerar e valorizar os outros métodos de aproximação ao texto bíblico, o método sociológico procura dar um passo a mais, no intuito de descobrir o contexto do povo bíblico. Objetiva também analisar a realidade cotidiana daquele povo, passando pelo seu microssistema de relações.

4. A Bíblia lida a partir de novos sujeitos: O livro sagrado é visto a partir de outros ângulos, privilegiando pessoas que permaneciam no anonimato. Trata-se, inicialmente, de uma opção de classe, conforme o eixo econômico-social, na ótica das camadas empobrecidas. Mas também outras categorias sociais buscam identificação e força na palavra de Deus. Pode-se falar então de uma leitura indígena da Bíblia, valorizando o ponto de vista étnico. A mesma chave étnica revela uma leitura a partir da negritude. Especial visibilidade tem alcançado a leitura a partir da mulher, numa ótica de gênero.

Outras categorias sociais ainda encontram força e afirmação na Bíblia: crianças, como categoria preferida por Deus; idosos, como geração da sabedoria, experiência e plenitude de vida; estrangeiros e minorias étnicas, para comporem a riqueza do povo de Deus; deficientes, como os carentes de saúde e participação na sociedade; homossexuais, que não são discriminados por Deus nem pela Bíblia; sem-terra e sem-teto, que lêem a Bíblia como exemplo e aliança para sua luta; ecologistas, que divisam nas páginas sagradas a defesa da natureza e do meio ambiente; e tantas outras categorias.

Leitura da Bíblia na ótica indígena

Pode-se partir da constatação que a nossa chamada civilização não consegue dialogar com as culturas indígenas, nem sabe o que fazer com os índios. Esse é o quadro real em nosso continente ao longo de quinhentos anos. O poder político nada faz, além de alguns documentos, e as igrejas mantêm, em geral, práticas missionárias alienantes e prejudiciais às próprias populações nativas.

Recentemente, vem se afirmando a cultura indígena com seus valores, sobretudo a partir de um paradigma diferente do nosso. Nesse contexto cultural, a religião ocupa lugar proeminente. Esse esforço se manifesta em cursos, encontros, congressos, documentos e pistas para a ação, sem contar as marchas, manifestações e protestos, sobretudo no contexto dos quinhentos anos.

Para expressar sua voz, há tanto tempo silenciada, grupos indígenas começam a se articular. Teólogos e também biblistas estendem suas mãos neste esforço conjunto. Começa a surgir uma teologia índia e uma leitura da Bíblia na ótica indígena. Num artigo avaliativo, Peley Chourío (1993, p.24) destaca três percepções fundamentais desta nova hermenêutica, que passam a ser resumidos:

1. Deus se revela na história dos povos indígenas, assim como se revelou na história do povo de Israel. Confirmam esse dado os mitos de criação, as diversas alianças, o sonho da terra sem males e outros.

2. As comunidades indígenas deixam de ser objeto para tornar-se sujeito de sua religião. Sua cultura é geradora de vida, fé e teologia.

3. As tradições indígenas ajudam a ler melhor a Bíblia, assim como a leitura da Bíblia ajuda a compreender as tradições indígenas.

Esse processo reconhece dignidade nos índios, descobre seus valores em confronto com outras tradições culturais, ajuda a afirmar a cidadania indígena. Diversos elementos da Bíblia têm ressonância na cultura autóctone. Basta recordar o relacionamento com a mãe terra, a pachamama, expresso no salmo à mãe terra.

Terra querida, és sagrada,

Santa mãe, és mamãe da vida,

Porque tu guardas a sabedoria,

Por isso teus filhos os índios te amamos,

Por isso cuidamos de ti e nos dás de beber e comer de teu seio. (citado por Carrasco A., 1996, p.31).

Daí se deduz o respeito ecológico e sagrado à natureza, bem como o sentido amplo da terra como propriedade de Deus, emprestada aos seres humanos (Lv 25,23). A ética indígena pode muito bem ser relacionada com os mandamentos, não roubar, não ser ocioso, não mentir (Carrasco A., 1996, p.33).

Fundamental para o processo de afirmação cultural e religiosa indígena tem sido o paradigma do êxodo. Nele os escravos assumem o próprio destino e partem para a terra onde mana leite e mel, espelho das utopias indígenas. A liderança de Moisés é fundamental, como quem assume nova postura, a partir de suas raízes, e enfrenta as garras do faraó (López Hernández, 1996, p.16-24).

Leitura da Bíblia a partir da negritude

Assim como a população indígena, também a população negra, particularmente no Brasil, vive as marcas da discriminação social. O documento da Igreja Católica para a Campanha da Fraternidade de 1988, ano centenário da chamada libertação dos escravos, julgando a situação à luz da Bíblia, dizia:

A descrição da realidade do povo negro, na história do Brasil ontem e hoje, evoca a situação do cativeiro de Israel no Egito e o gesto libertador de Deus, que marca a condenação de todo e qualquer tipo de opressão do ser humano (CNBB, 1988, p.64).

A Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), em sua consulta sobre Cultura negra e teologia na América Latina pediu um "enegrecimento do teólogo", isto é, que se levem em conta as lutas de resistência, o passado cultural, as práticas religiosas e outros aspectos de tradição africana (Asett, 1986).

A Segunda consulta ecumênica de teologia e culturas afro-americana-caribenha, em novembro de 1994, em São Paulo, elaborou um texto sobre Bíblia e comunidades negras, traçando também alguns pressupostos para uma hermenêutica negra. Ao criticar a absolutização da Bíblia como "a palavra de Deus" por excelência, e ao relativizá-la como "palavra segunda", afirma:

A bíblia relata a manifestação de Deus como libertador na cotidianidade dos oprimidos e oprimidas, sem se importar com sua etnia, mas sim com sua situação existencial de opressão e exclusão. É um Deus que escuta e atua junto delas e deles na transformação da história (Ex 3,7-10) e não está de acordo com sua marginalização e exclusão (Andrade e outros, 1994, p.2).

A essas consultas seguiram-se outras, e somaram-se mais cursos, estudos, reflexões, testemunhos. Além disso, não param as manifestações, protestos e propostas para a mudança de situação.

Parte da estratégia de resistência das culturas africanas no Brasil foi o processo de aculturação que assimilou símbolos cristãos e os integrou à religiosidade africana. Daí resultou o que se chama de sincretismo ou de religião afro-brasileira.

A discussão pode se concentrar no "direito de ser diferente" (Mattos, 1994, p.16). As pessoas têm dificuldade em conviver com quem não seja igual. E, assim, discrimina quem traz algum traço distinto, quer de crença, religião, língua, pensamento, e até de cor.

Uma leitura da Bíblia que procure devolver a cidadania às culturas negras tem muito a considerar. Em primeiro lugar, pede contas de toda leitura feita para condenar a população negra e justificar a escravidão. Em seguida, faz ler as sagradas páginas como textos normativos para afirmar a igualdade dos irmãos e irmãs e, portanto, a proibição de escravizá-los.

A condenação dos maus tratos impingidos aos hebreus no Egito e a conseqüente ação libertadora de Deus são argumentos inequívocos para proclamar a libertação de qualquer povo escravo (Ex 3,7-10). Esse fato ficará na memória do povo bíblico, exigindo o repouso sabático para os escravos (Dt 5,12-15), denunciando a opressão sobre pobres, órfãos, estrangeiros e viúvas (Is 1,15-17). Sofonias, o profeta africano, proclama: "Do outro lado dos rios da Etiópia, os meus adoradores trarão minha oferenda" (Sf 3,10; cf. Is 18,7). A rainha de Sabá visita Salomão e faz aliança com ele (1 Rs 10,1-13).

No início das comunidades cristãs, os africanos têm forte participação, como se vê por Simão de Cirene, o primeiro discípulo a carregar a cruz após Jesus (Mc 15,21), pelos líbios, no Pentecostes (At 2,10), participantes de uma sinagoga de Jerusalém (At 6,9 e 11,20) e pelos integrantes africanos na comunidade de Antioquia (At 11,20 e 13,1). A carta de Paulo a Filêmon, sobretudo, pode ser lida como um libelo de libertação dos escravos.

Leitura da Bíblia com olhos de mulher

O olhar feminista sobre a teologia e especificamente sobre a Bíblia levantou uma nova concepção, colocando como ponto de partida não mais a centralidade da razão, mas sim a realidade do corpo. A tentativa é de romper com o racionalismo, o iluminismo, o machismo, o androcentrismo e todas as formas filosóficas ou práticas que discriminaram as mulheres. O objetivo é recuperar o sentido, o desejo, o sabor, o prazer, a dor, o mistério da existência. É o olhar de quem quer refletir com o corpo, isto é, com a sensibilidade, com os sentimentos, com a sexualidade, enfim, com a história do próprio corpo. Nas palavras de Ivone Gebara (1988, p.201):

Minha opção é pelo corpo, o corpo humano, vivo, centro de todas as relações, corpo do qual partem todos os problemas e para o qual tendem a convergir todas as soluções. Corpo do qual se parte para afirmar sua beleza e também para negá-lo como empecilho para o divino considerado como Espírito puro; corpo lugar de êxtase e de opressão, lugar do amor e do ódio. Corpo, lugar dos sinais do Reino, corpo, lugar da ressurreição.

Ao longo da história, não foram poucos os preconceitos contra o corpo. Na Teologia e na leitura bíblica sempre Deus foi um barbudo, o salvador da humanidade, um homem, e os autênticos cristãos celibatários.

Um primeiro passo da leitura feminista foi o resgate da presença das mulheres nos textos bíblicos. Muitos artigos e livros recuperam essa memória, como, por exemplo, Navia Velasco (1991). Eva, a mãe dos viventes, é mais sábia que tentadora. Matriarcas, como Sara, Rebeca e Lia, não foram menos importantes que os patriarcas. O êxodo e a libertação do Egito foram articulação de mulheres, parteiras e mães. Raab possibilitou a posse da terra pelo povo. Débora e Jael tiveram papel decisivo no processo de formação de Israel e no início da profecia. Hulda foi a profeta que mediou uma grande reforma em Israel. Rute, Judite e Ester projetaram a força do povo bíblico. A jovem amante ousada do Cântico dos Cânticos proclama a força erótica do amor.

O movimento de Jesus, o seu discipulado, tem mulheres que o seguem desde a Galiléia, estão presentes ao pé da cruz e são as primeiras apóstolas da ressurreição. A genealogia de Jesus inclui mulheres transgressoras. Há mulheres ligadas à palavra como Maria Madalena, Marta e Maria. Há mulheres curadas e reintegradas à diaconia como a sogra de Pedro, a hemorroíssa, a filha de Jairo e a mulher encurvada. Há mulheres evangelizadoras, como a Samaritana e a siro-fenícia. Nas comunidades há mulheres que protagonizam o culto e a profecia como as de Corinto. E ainda Priscila, Lídia, Febe, Maria e tantas outras.

Mas há uma tarefa bem mais desafiadora na leitura feminista, qual seja, a de questionar a ausência das mulheres na Bíblia. Aí tem papel importante o método da suspeita. Por que será que dos 1426 nomes de pessoas, na Bíblia Hebraica, apenas 111 são de mulheres? Onde estão as demais? Pode haver inúmeros textos produzidos por mulheres, transmitidos por elas, mas escritos por homens. Outros tantos textos foram reféns de interesses, refletem relações assimétricas de poder, manifestam dominação e esquecimento. Por isso é preciso deconstruir os textos. O processo de deconstrução supõe desfazer processos viciados que produziram o texto, analisar as entrelinhas, buscar o que está por trás das palavras. A monarquia, por exemplo, foi um mecanismo de massacre das mulheres. Como resgatar estes corpos massacrados e tornar presentes estas vidas esquecidas?

Deconstruído o texto, é preciso reconstruí-lo com novas relações de gênero, em que mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens possam construir novo modo de ser. A reconstrução do texto implica em buscar novos paradigmas, descobrir novas mensagens no texto refeito (Pereira, 1996, p.7-9).

Crianças, porque delas é o reino de Deus

A situação em que vivem nossas crianças é alarmante. Violência, chacinas e drogas vão tomando conta das manchetes na imprensa. Isto sem contar a fome, as doenças, a falta de escola e a manipulação da infância.

Houve também um esquecimento teológico das crianças. Mas, ao despertarmos desse esquecimento, elas começam a aparecer e tomam visibilidade, sobretudo na Bíblia, "porque delas é o reino de Deus" (Mc 10,14).

Eis alguns destaques de leitura bíblica pelo mundo das crianças, passeando pela Bíblia Hebraica. Colhemos os exemplos de Mesters (1997, p.9-20).

O êxodo começa com quatro mulheres defendendo a vida ameaçada das crianças (Ex 1,15-22 e 2,1-10). Enquanto o faraó mandava lançar no rio os recém-nascidos, as mulheres, Séfora e Fua, Jocabed e Míriam iniciaram a resistência e se rebelaram contra a ordem do faraó. Elas temeram a Deus e por isso foram abençoadas por ele.

Agar andava desesperada pelo deserto, com Ismael em seus braços (Gn 21,8-21). O anjo do Senhor a consola dizendo: "O que é isso, Agar? Não tenha medo não! Deus ouviu os gritos da criança do jeito que ela está aí" (v.17). Em seguida "Deus abriu os olhos de Agar", ela descobriu um poço e alimentou o menino que cresceu no deserto até tornar-se uma nação forte.

A crítica ao sacrifício das crianças é feita na ordem a Abraão "Não estenda a mão contra o menino" (Gn 22,12). O código da aliança prescreve: "Não maltrate a viúva nem o órfão" (Ex 22,21). No decálogo, ecoa até hoje o mandamento "Honra teu pai e tua mãe" (Ex 20,12) a fim de preservar, no clã familiar, ambiente propício às crianças. Em Oséias, as crianças simbolizam a misericórdia divina: "Terei compaixão da (criança) ‘Não-Compadecida’" (Os 2,25). Isaías propõe um messias criança, "Emanuel, Deus conosco" (Is 7,14).

No Novo Testamento os exemplos se multiplicam. Extraímos alguns de Valmor da Silva (1997, p.58-70).

O Messias que deve salvar a humanidade é uma criança nascida na pobre Galiléia, no difícil contexto do império romano. Jesus guardará sempre especial predileção pelas crianças, concede-lhes curas (Mc 5,21-43 e 9,14-29) e as apresenta como especial modelo. Declara que "aquele que receber uma destas crianças por causa de meu nome, a mim recebe" (Mc 9,37). E ameaça "quem escandalizar um destes pequeninos" com uma pena de morte (quem diria!) "melhor seria que lhe prendessem ao pescoço a mó e o atirassem ao mar" (Mc 9,42). Numa cena marcante, ao abençoar crianças e abraçá-las, chama a atenção dos discípulos que as repreendiam e afirma: "Deixai as crianças virem a mim. Não as impeçais, pois delas é o Reino de Deus" (Mc 10,14).

No livro do Apocalipse, as novas comunidades são representadas como o filho da mulher em dores de parto (Ap 12,1-6).

Esses exemplos de leitura da Bíblia com olhar de criança querem se somar a tantas outras iniciativas que as defendem e promovem.

Com os idosos está a sabedoria

Também com pessoas idosas nossa sociedade não sabe lidar. Com freqüência, constituem uma das categorias mais marginalizadas. E pensar que deviam ser os cidadãos por excelência!

A cultura bíblica, ao contrário, dá especial destaque aos anciãos. São eles, no sistema patriarcal, que presidem a família, e grande parte das vilas e cidades são governadas por conselhos de anciãos.

O mandamento "Honra teu pai e tua mãe" vem acompanhado de uma promessa "para que se prolonguem teus dias sobre a terra" (Ex 20,12). Jó afirma: "Está com os idosos a sabedoria, e o entendimento com os anciãos" (Jó 12,12). O livro de Provérbios repete diversas vezes a recomendação "Ouvi, filhos, a instrução paterna" (Pr 4,1) e que "o filho sábio alegra seu pai" (Pr 10,1). Os anciãos são os sábios (Jr 18,18; Ez 7,26) cujos conselhos às vezes passam a ter força de lei. O profeta sonha com a era paradisíaca, vida longa, em que "velhos e velhas se sentarão nas praças de Jerusalém" (Zc 8,4). O sucessor de Salomão, Roboão, é criticado por não ter seguido o conselho dos anciãos e a esse fato é atribuído o fracasso total de seu governo (1 Rs 12,8.13).

O Novo Testamento reflete muito bem a importância que os anciãos tinham nas igrejas cristãs. Está expresso na carta a Timóteo: "Não repreendas um ancião" (1 Tm 5,1). No Apocalipse, os vinte e quatro anciãos constituem o conselho divino (Ap 4,4.10).

Amai o estrangeiro, porque fostes estrangeiros no Egito

A dificuldade em conviver com o diferente sempre tem gerado discriminação. Por isso há o problema histórico e sempre atual da rejeição dos estrangeiros, das minorias étnicas, das populações diferentes, chamado xenofobia ou medo do estrangeiro.

O princípio é sempre o mesmo que rege a qualificação de bárbaros aos que não fazem parte do império romano; de pagãos e idólatras aos que não professam a fé cristã; de plebe e ralé aos que não integram a classe nobre. Os conflitos étnicos e raciais, na atualidade, mancham o mapa mundi de tal modo que envergonham a humanidade e dispensam comentários. Há muito por ser feito em termos de aceitação das populações estrangeiras.

A Bíblia ajuda muito nesse esforço por integrar e incluir. A formação do povo bíblico resultou da integração de doze tribos, ou seja, de vários grupos diferentes, com origens e culturas diversificadas. As antigas listas de tribos, como Jz 5, comprova muito bem essa realidade. Ao saírem os Hebreus do Egito, diz-se que "subiu também com eles uma multidão misturada com ovelhas, gado e muitíssimos animais" (Ex 12,38). Mesmo o Deus único, Javé, seria uma divindade estrangeira, quer dizer, de algum grupo que integrou a confederação do antigo Israel, talvez da região de Madiã (Ex 3,1-6). A legislação bíblica mantém a ordem: "Não perverterás o direito do estrangeiro" (Dt 24,17) com a advertência: "Recorda que foste escravo na terra do Egito" (v.18). A permanência dessa recomendação, na memória dos Hebreus, está na motivação para o resgate da terra, no ano jubilar: "A terra não será vendida perpetuamente, pois que a terra me pertence e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes" (Lv 25,23).

As atitudes de Jesus para com os estrangeiros se manifestam na cura da filha da siro-fenícia (Mc 7,24-30), no exemplo do bom samaritano (Lc 10,29-37), no diálogo com a samaritana (Jo 4), no universalismo de sua mensagem. O apóstolo Paulo direciona sua missão aos estrangeiros e não poupa esforços em favor dos pagãos ou gentios. A primeira carta de Pedro parece dirigida a grupos tipicamente "peregrinos e forasteiros" (1 Pd 2,11) do interior da Ásia Menor. O mesmo talvez valha para a comunidade de Hebreus (Hb 11,13). A recomendação em tratar bem os estrangeiros aparece ainda na recomendação ao ancião Gaio (3 Jo 5). A lista dos eleitos do Apocalipse elenca, após os cento e quarenta e quatro mil, "uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas" (Ap 7,9).

Deficiente, toma teu leito e anda

A situação da saúde era sofrível nos tempos bíblicos, como continua sendo nos dias atuais. Apesar dos avanços da medicina, o acesso aos recursos ainda é privilégio de uma minoria.

A Bíblia Hebraica, em geral, reflete uma visão atrasada de medicina, por motivos compreensíveis. Em primeiro lugar o povo bíblico era forte e saudável, quase todos camponeses, antigos escravos habituados ao trabalho braçal. Além disso, a medicina era envolvida com a religião e magia, sendo exercida por sacerdotes e não refletia o conceito da especialização. Enfim, diversos tabus impediam os avanços da medicina, tais como a ordem de não tocar cadáveres, a aversão geral ao sangue e a generalização das doenças de lepra.

Contudo, a saúde era sempre vista como o dom sagrado mais importante, símbolo da vida que depende inteiramente de Deus (Sl 139,13-16). A cura era, em geral, atribuída a Deus (Sl 41), e a ação do médico devia vir após a oração (Eclo 38,1-15).

Na época de Jesus, a situação era pior. Cegos, coxos e aleijados povoavam vilas e cidades. Diversas doenças de pele eram qualificadas como lepra e marginalizavam inúmeros doentes. Os preconceitos e tabus criaram uma série de leis para distinguir puro e impuro, o que pesava principalmente sobre as mulheres. Por falta de conhecimentos de psicologia ou psiquiatria, qualquer mal dessa natureza era atribuído ao demônio.

Nesse meio, Jesus se apresenta como exorcista e curandeiro. Adquire fama por seus milagres. Dedica atenção sobretudo aos mais oprimidos, crianças, prostitutas, cegos, coxos, aleijados, leprosos e tantos outros. Os relatos dos evangelhos, por sinal, são protagonizados por esses grupos de pessoas.

Jesus apresenta nova visão de cura, desvinculando a doença do conceito de pecado (Lc 13,2 e Jo 9,3). Grande parte de sua atividade se concentra em cuidar do ser, devolver a saúde integral às pessoas. Nesse esforço ele endireita o paralítico (Mc 2,1-12), exorciza o endemoninhado de Gerasa (Mc 5,1-20), cura a mulher hemorroíssa (Mc 5,25-34), devolve a palavra ao surdo-gago (Mc 7,31-37), reintegra o endemoninhado epiléptico (Mc 9,14-29), abre os olhos do cego Bartimeu (Mc 10,46-52), para citar alguns poucos exemplos.

Homossexuais, a amizade mais cara que o amor das mulheres

A discriminação de homossexuais e lésbicas ainda é violenta em nossa sociedade. Os preconceitos são muitos e as pessoas com tal opção sexual são objeto de piadas e de desprezo.

As igrejas, em geral, têm contribuído para com essa discriminação e, consequentemente, também a teologia e a leitura da Bíblia. Apesar dessa posição, há notícias de doutrina e prática diferente nos primeiros séculos. Uma tradição diz que os apóstolos Filipe e Bartolomeu constituíam um casal, bem como os mártires Baco e Sérgio, da época do imperador Maximiano, e os imperadores bizantinos Basil e Michael III.

A própria Bíblia poderia ser relida noutra dimensão, não desfavorável a homossexuais e lésbicas. No dizer de Onaldo Alves Pereira (1998, p.1):

A Bíblia não tem muito a dizer sobre homossexualismo. Nas línguas em que foi escrita, o termo (a palavra homossexualismo) não existe.

A prática do homossexualismo é mencionada toda vez num contexto muito negativo, tal como adultério, promiscuidade, violência ou idolatria.

A atitude de condenação que muitos cristãos demonstram com relação às pessoas homossexuais provém de se ignorar este contexto.

No mesmo artigo, o autor relê os textos clássicos que, segundo outros, condenam a prática homossexual, embora uma boa leitura não lhes dê razão. Diz que o pecado dos vizinhos de Lot, em Sodoma e Gomorra, contra os anjos que o visitavam, não foi de homossexualismo, mas de violência e falta de hospitalidade (Gn 19). Outras passagens bíblicas que recordam o pecado dessas cidades e as condenam não mencionam a prática da homossexualidade (Is 13; Ez 16,49-50; Lc 10,10-12; Jd 7). Igualmente, os textos do Levítico que proíbem atos homossexuais (Lv 18,22 e 20,13) o fazem para distinguir os israelitas dos outros povos e coibir a idolatria e as práticas associadas a ela.

Na própria carta aos Romanos, Paulo está demonstrando que todos pecaram e estão afastados da glória de Deus, por isso também caíram na promiscuidade e idolatria (Rm 1,26-27).

Uma releitura na ótica da homossexualidade poderia repensar algumas grandes amizades bíblicas, como a de Rute e Noemi (Rt 1,16-17). A elegia de Davi, após a morte de Jônatas, confessa: "Tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão Jônatas. Tu me eras imensamente querido, a tua amizade me era mais cara do que o amor das mulheres" (2 Sm 1,26). O que estaria fazendo o jovem que foge nu, no Getsêmani, na madrugada em que prendem Jesus? (Mc 14,51-52). Há curiosas tradições gnósticas que atribuem tal texto a um estrato de práticas homossexuais em alguns grupos cristãos.

Sem-terra, mas a terra é Dom de Deus

A má distribuição da terra é um problema central na América Latina e, particularmente, no Brasil. Herdamos da nossa colonização, como uma chaga crônica, a concentração deste meio vital nas mãos de uma minoria de pessoas. Cálculos generosos dizem que em nosso continente 7% do povo são proprietários de 93,8% das terras.

Novas convicções vão se firmando na mente de muitas comunidades, influenciadas por outros elementos culturais, teológicos e bíblicos. "A terra é Dom de Deus" (Lv 25,23) e como tal deve ser zelada. Terra é chão de cultura, sinônimo de vida, expressão da mística popular. Terra passou a ser sementeira de mártires, conseqüência de confrontos na luta pelo direito a terra.

Na luta pela conquista da terra, naturalmente, a Bíblia é uma grande aliada (Souza, 1983). A entrada em Canaã, a terra prometida, passa a ser um espelho para grupos de sem-terra que se organizam para conquistar o seu chão. Leis como as do ano sabático e do ano jubilar (Lv 25) fornecem a motivação imediata para a proposta de reforma agrária. A luta pela justiça, nos profetas, traz denúncias contra o latifúndio e incentivos aos sem-terra que muito bem caberiam nos dias atuais. "Mataste e ainda por cima roubas" (1 Rs 21,19) diz Elias a Acab, após este ter se apossado da vinha de Nabot. "Ai dos que juntam casa a casa e campo a campo" (Is 5,8). "Ai dos que planejam iniqüidade... Se cobiçam campos, eles os roubam, se casas, eles as tomam" (Mq 2,1-2). "Ai daquele que constrói a sua casa sem justiça" (Jr 22,13). Tudo isso tem repercussão nas palavras de Jesus: "Ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação" (Lc 6,24). E reverbera na condenação feita por Tiago: "Agora, vós, ricos, chorai e gemei. A vossa riqueza apodreceu e as vossas vestes estão carcomidas pelas traças" (Tg 5,1-2).

Jesus, como camponês pobre da Galiléia, reuniu discípulos e liderou um movimento inicial de camponeses, que depois cresceu e se expandiu. Toda a linguagem dos Evangelhos, com efeito, é uma linguagem do campo, incluindo semente, arado, colheita, flores do campo, aves do céu etc. Num dos textos-chave do Evangelho o próprio Jesus declara: "Felizes os mansos, porque herdarão a terra" (Mt 5,4).

Ecologia, a natureza geme com dores de parto

A humanidade chegou a uma relação tensa com o meio ambiente. O universo criado, construído como a própria casa, está sob ameaça de colapso. Por isso, ante o risco de destruir a sua própria habitação, a humanidade está repensando a relação com o seu meio.

A Bíblia pode apoiar fortemente o esforço por recuperar a função humana de jardinagem da natureza. Isso sob a condição de ler corretamente os textos, pois os falsos óculos já manipularam páginas bíblicas em favor de catástrofes ambientais.

Uma sábia lei, muito antiga, propunha um repouso para a terra a cada sete anos, a lei do ano sabático (Lv 25). As tradições sobre o jubileu, por sinal, marcaram o ano 2000 e reforçaram a proposta de uma remissão das dívidas (Reimer e Reimer, 1999). O profeta Oséias retoma os inícios da criação e renova a promessa divina: "Farei em favor deles, naquele dia, um pacto com os animais do campo, com as aves do céu e com os répteis da terra. Exterminarei da face da terra o arco, a espada e a guerra" (Os 2,20). E logo propõe um fértil diálogo entre o céu, a terra e a população (Os 2,23-25). Nessa interação total, a criação reage conforme o uso que dela fazem os seus habitantes.

Como na época do apóstolo Paulo, a criação geme e sofre as dores de parto, esperando ser libertada (Rm 8,22). O sonho humano percorre a Bíblia e se expressa em seu final, criar novos céus e nova terra (Ap 21,1), onde habitará a justiça (2 Pd 3,13).

Valmor da Silva

BIBLIOGRAFIA

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