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O ser humano acima de tudo
Davi L. Ramos

Quando eu tinha uns dez anos, fiz primeira comunhão como todo mundo. Da cataquese me lembro apenas de ter aprendido a procurar citações, saber o que é um versículo e decorei uns dois salmos. Aprendi algumas músicas também, e ao final do "curso" uma aluna mais exaltada fez uma declaração pseudo-emocional que fez alguns chorar e me deu ânsia de vômito. Antes da eucaristia, ainda, fomos nos confessar. Foi a única vez que fiz isso na vida. O padre era estrangeiro e não estou certo se compreendia o que eu falava. O sotaque dele (acho que espanhol) e algumas palavras em latim faziam daquilo um jogo um tanto misterioso. Lembro de ter contado minha vida toda para o padre, e de ter achado a punição muito leve. Uma vida inteira de pecados transformada em meia dúzia de pai-nossos e aves-marias! Uma blasfêmia, um desrespeito com a grandeza de minhas "maldades", devo ter pensado.

No dia do evento eu fui de branco como todos, e lembro de ter apreciado a cerimônia, o cuidado com as velas e toda aquela circunstância do levantar, do sentar e tudo mais. Mas durou pouco esse encantamento - eu achava aquilo tudo muito vazio de significado. Eram muitas músicas para cantar e eu não me lembrava de todas. No meio eu me cansei, resolvi sabotar a eucaristia e parei de cantar, fazendo comentários irônicos para pessoas que não viam a menor graça no que eu dizia e levavam tudo aquilo muito a sério. Se você olhar as fotos vai ver meu sorriso constrangedor de tão falso. E na época eu nem considerava o ateísmo como uma possibilidade.

Nós (a turma de comungantes) tínhamos um acordo com a catequezista (sim, eu inventei esta palavra) de ir à igreja regularmente a partir daquele dia. Por algum tempo eu cumpri o acordo, mas eu nunca ia sozinho. Quando minha mãe parou de ir, parei também. Por um tempo me senti culpado, mas passou. Meu pai, que só vai à igreja pra casamento e batizado e nunca reza, me obrigava a rezar todas as noites e por um tempo também fiz isso. Depois de um tempo troquei a oração pela masturbação - eu já chegava na puberdade. Me pareceu mais útil.

Conheci um ateu no colégio, o irmão mais velho de um colega. Mas ele era um ateu um tanto ignorante, e nao sei se era mesmo ou só gostava do status. Para mim, parecia insano. O velho problema do impulso inicial. Como pode haver o mundo sem deus?, eu me perguntava. Eu devia ter uns 14, 15 anos à época, e eu já era agnóstico (apesar de não conhecer a palavra). Não dava mais valor à religião, mas ainda acreditava em deus.

No ano de 1999 me tornei ateu. Eu tinha 16 anos e me mudei de colégio, indo para o CEFET-BA (Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia, antiga Escola Técnica). Lá conheci uma menina agnóstica que parecia interessada em questões da sociedade, em discutir filosofia e política. Também conheci um cara que escutava todo tipo de música, como rock dos anos 70, Led Zeppelin, Beatles e coisas do tipo. Eu tive a oportunidade de ver, dia a dia, como ambos de transformaram em completos idiotas. A primeira começou a ler o novo evangelho num daqueles livros de bolso distribuídos gratuitamente e em pouco tempo era uma crente. Tenho saudades da pessoa que ela era, tão viva e crítica. Hoje ela é apenas uma sombra pálida do que era - tão apática e sem personalidade. Meu outro colega parou de escutar rock ("não escuto mais essas coisas não, estou indo prá igreja agora"). Fui emprestar um cd do Black Sabbath e ele recusou. Agora ele só ouve gospel, anda com a bíblia na mão e quer ser pastor. Acho que essa foi a gota d'água. Eu iria me tornar ateu mais cedo ou mais tarde, mas foi essa experiência que engatilhou todo o processo.

Ao mesmo tempo, no colégio, tive oportunidade de conhecer pessoas inteligentes e não-crentes, que me estimularam a estudar filosofia. Meu pai já tinha me falado sobre Nietzsche, e eu passei a lê-lo quando comprei "Além do bem e do mal" numa feira do livro. Eu não entendia muita coisa, mas o que eu conseguia absorver já era suficiente. Depois de Nietzsche eu li Spinoza, Descartes, Hobbes, Schopenhauer e outros. Independente se serem filósofos crentes ou não, essas leituras abriram minha cabeça. Eu tinha agora condições intelectuais para sustentar meu ponto de vista (o de que não há deus) e, francamente, a arrogância que adquiri neste momento de minha vida ajudou a manter minha integridade intelectual.

Durante os três anos em que sou ateu devo dizer que nunca, nunca ofendi um crente de forma pessoal. Aprendi a ver o ser humano antes da estrutura que lhe prende. Meus amigos que se tornaram crentes continuam meus amigos, embora eu não esconda meu desapontamento com eles. Depois que li "O Mundo Assombrado Pelos Demônios", de Carl Sagan, além de ateu virei um cético. Sim!, porque eu nao acreditava em deus mas ainda acreditava em coisas como espíritos e discos voadores! Foi um caminho inverso, mas o ponto de chegada foi o mesmo.

Eu escrevo agora com uma imagem da nossa senhora na mesa do computador, que está disposta junto a uma tartaruga de porcelana(?), uma miniatura do Buda e algumas velas. Coisa de minha mãe, que se diz católica e acredita em algumas coisas que as vezes me fazem rir. Eu não respeito a fé dela, mas o ser humano que ela é. Minha irmã, meu pai e a mulher dele são todos espíritas. Minha namorada também (por enquanto hehehe). Amo todos eles, e eles sabem que não acredito em nada disso. O que vou fazer, tirá-los de minha vida? Isso seria patrulha ideológica, um posicionamento burro diante da vida. Esse é o meu conselho - deixe sempre claras as suas convicções, mas vislumbre o ser humano acima de tudo.

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