Quando eu tinha uns dez anos, fiz primeira
comunhão como todo mundo. Da cataquese me lembro apenas
de ter aprendido a procurar citações, saber o que é
um versículo e decorei uns dois salmos. Aprendi algumas músicas
também, e ao final do "curso" uma aluna mais
exaltada fez uma declaração pseudo-emocional que
fez alguns chorar e me deu ânsia de vômito. Antes da
eucaristia, ainda, fomos nos confessar. Foi a única vez
que fiz isso na vida. O padre era estrangeiro e não estou
certo se compreendia o que eu falava. O sotaque dele (acho que
espanhol) e algumas palavras em latim faziam daquilo um jogo um
tanto misterioso. Lembro de ter contado minha vida toda para o
padre, e de ter achado a punição muito leve. Uma
vida inteira de pecados transformada em meia dúzia de
pai-nossos e aves-marias! Uma blasfêmia, um desrespeito
com a grandeza de minhas "maldades", devo ter pensado.
No dia do evento eu fui de branco como
todos, e lembro de ter apreciado a cerimônia, o cuidado
com as velas e toda aquela circunstância do levantar, do
sentar e tudo mais. Mas durou pouco esse encantamento - eu
achava aquilo tudo muito vazio de significado. Eram muitas músicas
para cantar e eu não me lembrava de todas. No meio eu me
cansei, resolvi sabotar a eucaristia e parei de cantar, fazendo
comentários irônicos para pessoas que não
viam a menor graça no que eu dizia e levavam tudo aquilo
muito a sério. Se você olhar as fotos vai ver meu
sorriso constrangedor de tão falso. E na época eu
nem considerava o ateísmo como uma possibilidade.
Nós (a turma de comungantes) tínhamos
um acordo com a catequezista (sim, eu inventei esta palavra) de
ir à igreja regularmente a partir daquele dia. Por algum
tempo eu cumpri o acordo, mas eu nunca ia sozinho. Quando minha
mãe parou de ir, parei também. Por um tempo me
senti culpado, mas passou. Meu pai, que só vai à
igreja pra casamento e batizado e nunca reza, me obrigava a
rezar todas as noites e por um tempo também fiz isso.
Depois de um tempo troquei a oração pela masturbação
- eu já chegava na puberdade. Me pareceu mais útil.
Conheci um ateu no colégio, o irmão
mais velho de um colega. Mas ele era um ateu um tanto ignorante,
e nao sei se era mesmo ou só gostava do status. Para mim,
parecia insano. O velho problema do impulso inicial. Como pode
haver o mundo sem deus?, eu me perguntava. Eu devia ter uns 14,
15 anos à época, e eu já era agnóstico
(apesar de não conhecer a palavra). Não dava mais
valor à religião, mas ainda acreditava em deus.
No ano de 1999 me tornei ateu. Eu tinha 16
anos e me mudei de colégio, indo para o CEFET-BA (Centro
Federal de Educação Tecnológica da Bahia,
antiga Escola Técnica). Lá conheci uma menina agnóstica
que parecia interessada em questões da sociedade, em
discutir filosofia e política. Também conheci um
cara que escutava todo tipo de música, como rock dos anos
70, Led Zeppelin, Beatles e coisas do tipo. Eu tive a
oportunidade de ver, dia a dia, como ambos de transformaram em
completos idiotas. A primeira começou a ler o novo
evangelho num daqueles livros de bolso distribuídos
gratuitamente e em pouco tempo era uma crente. Tenho saudades da
pessoa que ela era, tão viva e crítica. Hoje ela é
apenas uma sombra pálida do que era - tão apática
e sem personalidade. Meu outro colega parou de escutar rock ("não
escuto mais essas coisas não, estou indo prá
igreja agora"). Fui emprestar um cd do Black Sabbath e ele
recusou. Agora ele só ouve gospel, anda com a bíblia
na mão e quer ser pastor. Acho que essa foi a gota d'água.
Eu iria me tornar ateu mais cedo ou mais tarde, mas foi essa
experiência que engatilhou todo o processo.
Ao mesmo tempo, no colégio, tive
oportunidade de conhecer pessoas inteligentes e não-crentes,
que me estimularam a estudar filosofia. Meu pai já tinha
me falado sobre Nietzsche, e eu passei a lê-lo quando
comprei "Além do bem e do mal" numa feira do
livro. Eu não entendia muita coisa, mas o que eu
conseguia absorver já era suficiente. Depois de Nietzsche
eu li Spinoza, Descartes, Hobbes, Schopenhauer e outros.
Independente se serem filósofos crentes ou não,
essas leituras abriram minha cabeça. Eu tinha agora condições
intelectuais para sustentar meu ponto de vista (o de que não
há deus) e, francamente, a arrogância que adquiri
neste momento de minha vida ajudou a manter minha integridade
intelectual.
Durante os três anos em que sou ateu
devo dizer que nunca, nunca ofendi um crente de forma pessoal.
Aprendi a ver o ser humano antes da estrutura que lhe prende.
Meus amigos que se tornaram crentes continuam meus amigos,
embora eu não esconda meu desapontamento com eles. Depois
que li "O Mundo Assombrado Pelos Demônios", de
Carl Sagan, além de ateu virei um cético. Sim!,
porque eu nao acreditava em deus mas ainda acreditava em coisas
como espíritos e discos voadores! Foi um caminho inverso,
mas o ponto de chegada foi o mesmo.
Eu escrevo agora com uma imagem da nossa
senhora na mesa do computador, que está disposta junto a
uma tartaruga de porcelana(?), uma miniatura do Buda e algumas
velas. Coisa de minha mãe, que se diz católica e
acredita em algumas coisas que as vezes me fazem rir. Eu não
respeito a fé dela, mas o ser humano que ela é.
Minha irmã, meu pai e a mulher dele são todos espíritas.
Minha namorada também (por enquanto hehehe). Amo todos
eles, e eles sabem que não acredito em nada disso. O que
vou fazer, tirá-los de minha vida? Isso seria patrulha
ideológica, um posicionamento burro diante da vida. Esse é
o meu conselho - deixe sempre claras as suas convicções,
mas vislumbre o ser humano acima de tudo.