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Nos bastidores do reino: a vida secreta na Igreja Universal
Mario Justino
ATENÇÃO: Segue abaixo a introdução e o capitulo 1 do livro "Nos Bastidores do Reino: A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus". O Livro é publicado pela editora Geração Editorial (www.geracaobooks.com.br), adquira o livro pelo telefone (0xx11)3872-0984.

Livro

PREFÁCIO


Os originais de Nos Bastidores do Reino chegaram as minhas mãos ha mais de um ano. O intrigante e que eu morava no meio do nada, perto das montanhas de São Francisco, na Califórnia, e o remetente era um desconhecido brasileiro que vivia em Nova York. Abri o envelope na varanda da minha casa, me perguntando como ele me achou e por que eu. Estava ocupado, tinha compromissos marcados, mas li a primeira linha e só sai da varanda ao anoitecer, depois de ter lido o livro em uma tacada. A primeira coisa que me veio a cabeça: ainda bem que ele me achou e me escolheu.

Prepare-se: ler Nos Bastidores do Reino e um evento de transformação. Ninguém será o mesmo depois de conhecer os detalhes da vida de Mário Justino, mas vale a pena correr o risco. Ainda não se criou uma designação para este estilo literário. Seria o que, literatura emocional, visceral? Pensando bem, pouco importa o estilo. e um livro, como todos os livros buscam ser: um acontecimento na vida do leitor.

A começar, a historia nebulosa da formação de um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, que cresceu com a crise espiritual do homem moderno, dando respostas objetivas a carência moral de milhares de fieis abandonados por outras seitas. Os métodos da Igreja são questionados. Aproveita-se da fé para extorquir milhões? Poderíamos concluir que a religião vira um negocio, e uma técnica e desenvolvida para confundir a "vitima", relendo a Bíblia e deturpando o pensamento cristão.

Nos bastidores, premiam-se os pastores que conseguem arrecadar mais dinheiro. As fofocas giram em torno do sucesso ou fracasso financeiro de tal filial. O poder sobe a cabeça, e um estilo de vida nada religioso passa a ser a norma entre os lideres da Igreja. De festa em festa, nosso personagem e contaminado pelo vírus da AIDS. e expulso da Igreja, e desce aos poucos os degraus do inferno. Em pouco tempo, o garoto da Universal perde tudo e vive seu calvário pessoal, nas sombras de uma estação de metrô de Nova York, aquecendo-se numa fogueira com outros mendigos (os de possuídos),pensando em roubar para comprar drogas e planejando o assassinato do bispo Edir Macedo, líder da seita.

Não e apenas um livro denúncia. A própria teologia esta em debate. De repente, estamos, agora sim, em frente à pureza e à verdade do ideal cristão. Chegamos a acreditar que Mário Justino e mais Jesus que toda a pompa papal e a conta bancaria da Universal. São escritores como ele que podem nos salvar e iluminar alguns caminhos. Faça bom fruto das palavras de um homem que viu de tudo, que viveu os extremos, e pode ser considerado, em teoria, um herói.

MARCELO RUBENS PAIVASão Paulo, primavera de 1995

Introdução

Não considero este livro uma autobiografia. Essas são escritas por aqueles que já viveram tudo. Ele também não pretende ser uma busca de remissão, nem uma tentativa de me justificar a quem quer que seja. Acima de tudo, este livro não tem a pobreza de ser uma forma de vingança.

Talvez eu não tivesse o direito de escrever uma historia que envolve tantas pessoas. Mas, no decorrer dos últimos anos, eu vinha sentindo uma irresistível vontade de contar a minha verdade. Entretanto, seria impossível contar essa historia sem que se revelasse, no andamento natural da narrativa, a historia dos porões da Igreja Universal. Infelizmente, as duas historias estão fundidas em uma só. Sexo, dinheiro e drogas se confundem, no mesmo púlpito, com orações e salmos de Davi.

Lamento pelas pessoas que se sentirão traídas por esta obra. Mas espero que ela contribua para que se forme uma discussão de âmbito nacional sobre a influencia nociva que pseudopastores vem exercendo sobre as massas, fazendo com que menores abandonem famílias, e estudos, desgraçando assim seu futuro e sua vida. Isso, se não é, deveria ser caso de policia.

As poucas pessoas que conseguem se liberar desse crack religioso se vêem no meio de um profundo vazio. Como se o tapete mágico tivesse sido puxado repentinamente de sob seus pés. Em muitas vezes as seqüelas são irreparáveis. Nos Estados Unidos existem varias organizações, algumas governamentais, que dão apoio psicológico e legal a essas pessoas vitimadas por grupos como a "igreja" de Edir Macedo.

Eu acredito que no Brasil essas vitimas sejam em grande numero  ex-pastores, missionários, evangelistas, obreiros, membros. Pessoas de boa fé que deram seus lombos para que sobre eles fosse construído o império de Macedo. Somente denunciando elas serão ouvidas.

Recuso-me a acreditar que a Constituição, quando protege a liberdade de culto, também proteja a lavagem cerebral e a exploração financeira da credulidade publica.

A principio, este livro pretendia ser uma denuncia, um clamor por justiça, mas, na medida em que foi sendo concebido, foi assumindo a forma daquilo que realmente e: a trajetória de alguém que, buscando o desconhecido, encontrou a si mesmo.

MÁRIO JUSTINO

Nova York, verão de 1995

PRELÚDIO

- Ora, não se faca de imbecil! Você sabe por que tem de ir. Mas vou refrescar sua mente. Você não pode mais ficar com a gente porque tem AIDS!

Quando Edir Macedo, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, me chamou em seu escritório, no fundo eu sabia que era isso que ele me diria. Dois meses antes eu enviara uma carta ao pastor Honorilton Gonçalves, na qual contava o meu problema.

Gonçalves fora um grande amigo, desde os meus dezesseis anos, quando fui transferido do Rio para ser pastor na Bahia, estado em que ele era o vice-líder. Gonçalves agora era líder nacional, e, em nome da nossa antiga amizade, pensei nele como alguém que podia me ajudar a sair daquele estado de torpeza e confusão. Na carta, contei a ele tudo o que estava acontecendo comigo. Disse, inclusive, que achava estar com "aquela doença incurável"

Por varias semanas esperei pela resposta do pastor Gonçalves. Nunca chegou. Em compensação, fui chamado ao escritório do bispo Edir Macedo, que na época encontrava-se em Nova York fugindo das acusações de charlatanismo feitas pela policia de São Paulo. Com o conhecido olhar que aterrorizava seus subalternos, o bispo ordenou que eu juntasse minhas coisas e fosse embora. Eu não interessava mais a Igreja Universal do Reino de Deus. Pior, podia "comprometê-la". Ao insistir em saber por que estava sendo varrido da Igreja depois de onze anos de serviços prestados, recebi do bispo aquela resposta áspera, bem no estilo dele.

Disse que não tinha para onde ir e implorei que ao menos me mandasse de volta para o Brasil. Respondeu-me afirmando que eu tinha uma passagem de volta e que deveria usa-la. Mas não existia passagem alguma. A passagem com que tinha ido do Brasil para Portugal fora obtida numa promoção e tinha apenas três meses de validade. Como permaneci em Lisboa por quase um ano, perdera a validade. O mesmo acontecera com a passagem de Lisboa para Nova York.

Inutilmente, disse que escrevera a carta num momento de desespero e que não tinha certeza se estava mesmo com a doença. Não adiantou. Ele se mostrou irredutível diante das minhas suplicas e explicações. Nada poderia demove-lo da idéia de me punir severamente.

Ao sair do escritório do bispo, a primeira coisa que me veio a cabeça foi ligar para Eliane. Disse-lhe que algo terrível me havia acontecido e que precisava de sua ajuda. Ela me recebeu em sua casa sem ao menos perguntar o motivo pelo qual a Igreja estava sendo tão severa e cruel comigo. Fiquei lá por uma semana. Depois, tornei a implorar ao bispo Macedo para que me desse algum dinheiro ou me mandasse de volta para o Brasil.

Inflexível como sempre, o que achava ser uma virtude, o bispo não voltou atras:

Aqui, o!!! - disse ele, ao mesmo tempo que desferia uma "banana", aquele clássico gesto em que, erguido, o punho cerrado assume a forma de um imenso pênis em estado de ereção.

Depois do que acabara de experimentar, comecei a caminhar feito um desnorteado pelas ruas da cidade. Com passadas largas e firmes, tentava entender o que estava acontecendo comigo. Uma das razoes pelas quais me tornara uma das figuras mais populares dentro da imensa comunidade da Igreja Universal tinha sido exatamente a habilidade com que conseguira me movimentar, a habilidade para contornar problemas e sempre ter, nas situações difíceis, a tal carta escondida na manga. Agora, no entanto, todo aquele jogo de cintura também parecia Ter virado as costas para mim. Sentia-me inteiramente impotente. Desarmado. Tudo o que queria era chorar. E nem isso conseguia.

Não levaram muito tempo para descobrir que Eliane estava me abrigando. Ao regressar a casa, encontrei o pastor Natanael. Ele estava ali a mando do Bispo. Queria checar meus pertences. Natanael disse que depois da minha saída fora notado o sumiço de um gravador, que era usado para gravar testemunhos dos milagres de Macedo. Desconfiavam que eu havia roubado o equipamento. Ao tentar impedi-lo de revistar minha mochila, atracamo-nos em uma inglória (para mim, dado o meu estado cambaleante) luta corporal. Enquanto isso, aos gritos, Eliane suplicava que parássemos com aquilo. Fui dominado facilmente por Natanael, que, tento rasgando a bolsa, ia chutando tudo o que caia, espalhando minhas roupas, procurando pelo gravador.

Provando uma humilhação que nunca imaginei passar, fiquei jogado num canto da sala tossindo e jurando que me vingaria de todos eles. Um por um.

- Como se você fosse viver para isso - disse Natanael com um sorriso irônico, saindo sem encontrar o que viera buscar e deixando para trás a minha figura miserável recolhida ao chão.

Não sei por quanto tempo fiquei ali, no canto daquela sala, a cabeça baixa, os olhos parados e o tempo se esvaindo diante deles. As imagens de minha trajetória na Igreja passavam velozmente pela minha mente, como num aparelho de vídeo.

O ódio me desvirginava.

Encolhido no canto, sentia-me a pior das criaturas. Rastejando no pó, como a serpente amaldiçoada. Como Lucifer, caído em desgraça. Destituído de toda a gloria. De toda a luz.

Esforçava-me para não chorar. Seria reconhecer a vitoria deles. Com um no na garganta e a respiração pesada, senti minha boca se encher de uma saliva amarga. Por entre os dentes, emitia grunhidos cujo significado nem eu mesmo sabia. Naquele momento, foi definitivamente possuído pelo pior sentimento conhecido pela raça humana. E esse sentimento, agora, iria reger a minha vida.

Meus pensamentos, que corriam longe, arrebentaram a linha tênue que separa o bom senso da loucura quando eu comecei a considerar a idéia de matar. Eu não tinha mais nada a perder. Tudo o que tivera havia escorrido por entre os meus dedos: mulher, filhos, meus pais, meus sonhos, minha fé, meu Deus. Tudo tinha ido.

A única coisa que me restara era o ódio mortal pelo bispo Macedo e sua Igreja Universal.

A idéia de mata-lo pareceu-me uma forma deliciosa de fazer justiça. Ainda fraco, levantei a cabeça e fiquei de pe. O pensamento me revigorou e me fez sentir melhor A saliva se fez doce. Havia, enfim, encontrado uma razão para continuar vivendo.

CAPITULO UM

1980: BEM-VINDO AO REINO

Era uma típica noite de sábado, em que os barzinhos estavam repletos de gente jovem, entretidos por animadas conversas em suas mesinhas ao longo da calcada. Em meio a esse burburinho de casais e amigos que ocupavam as ruas, eu caminhava sem rumo e com o semblante caído. Minha figura contrastava com aquelas pessoas que, indo e vindo, passavam por mim exibindo uma invejável alegria.

Tinha medo de estar dando o passo errado. Por alguns instantes pensei que talvez fosse melhor voltar para casa e fazer de conta que aquela idéia nunca me ocorrera. Mas sabia que algo me faltava e, por uma estranha razão, tinha certeza de que naquela noite encontraria o que vinha buscando, mas não sabia exatamente o que era.

Duas semanas antes, eu havia sintonizado um programa na Radio Metropolitana do Rio de Janeiro. O programa prendeu minha atenção e a partir dali me manteve cativo todas as noites. Esperava com ansiedade ouvir o tema de abertura e, quando isso acontecia, eu já tinha colocado sobre o radinho de pilha um copo cheio da água que beberia depois da "prece poderosa".

Ainda hoje não estou bem certo do que me atraia naquela programação. Afinal de contas, tinha apenas quinze anos, uma fase em que a maioria dos jovens não ocupa a mente com determinados problemas que afligem os adultos. Porem, eu era diferente. Estava sempre preocupado com as dificuldades dos meus pais. Alem disso, eu era uma criança profundamente triste. Desde muito pequeno, escondia-me pelos cantos do quintal.  Era um obstinado que buscava indiscriminadamente a solidão. Em certas ocasiões, sem nenhuma razão aparente, passava horas calado e triste. Esse vazio acabou por impulsionar-me ao meu destino Foi ele, o vazio, que me levou a sair de casa naquela noite rumo ao centro de São Gonçalo procurando o lugar onde, de acordo com o programa de radio, "um milagre espera por você".

O milagre esperava por mim no velho prédio do Cine Santa Maria, que durante a semana exibia filmes pornográficos. Aos sábados e domingos, entretanto, tinha o seu cenário radicalmente mudado. A bilheteria fechava, a catraca era removida e os cartazes da Aldine Müller eram levados para o outro lado da tela. O profano emprestava seus assentos ao sagrado. O sagrado era materializado por um cálice de azeite bento colocado no centro de uma mesa forrada com uma toalha de renda branca, sobre a qual jazia uma Bíblia aberta em um salmo qualquer.

As pernas tremulas e vacilantes conduziram-me aquele santuário improvisado, quase vazio. As poucas senhoras sentadas contrastavam com o grande publico que, durante a semana, se deleitava ali com As taras sexuais de um cavalo.

Enquanto procurava um lugar para me sentar, o silencio que do- minava a sala fez com que, por alguns momentos, eu tivesse a impressão de ouvir hinos de louvar; hinos entoados por um exercito de anjos invisíveis.

Não demorou muito para que um jovem pastor começasse a palestra. Nervoso e ainda tremulo, não conseguia acompanhar a fala acelerada do pastor. Por fim, ele ordenou que fechássemos os olhos para que fizesse uma oração.

Eu não era religioso. Meus pais se diziam católicos, porem nunca iam a missa. Nós rezávamos somente quando alguém caia doente em casa. Na rua das Mangueiras, onde eu morava, havia uma benzedeira pronta para curar todo tipo de moléstia: de sarampo a caxumba; de espinhela caída a erisipela, tudo ela curava. Era para ela que corríamos sempre que necessitávamos de ajuda espiritual.

Durante a oração, o jovem pastor pediu a Deus que aliviasse a carga que trazíamos. Suplicava-lhe que perdoasse nossos pecados e nos desse a oportunidade de nascer de novo. Isso era tudo o que eu queria. A idéia de um renascimento abalou-me ate os ossos. Queria ser uma outra pessoa. Se essa dadiva existia, estava determinado a alcança-la, custasse o que custasse. Enquanto prosseguia em sua oração, o pastor colocou as mãos sobre a minha cabeça, e eu comecei a chorar. A principio eram lagrimas de angustia. Depois, tornaram-se lagrimas de alivio e alegria. Sentia-me leve enquanto deixava extravasarem os sentimentos sem me importar se estava sendo observado pelas pessoas ao meu redor. Ao mesmo tempo que chorava, sentia meu ser encher-se de um prazer imensurável. Um prazer que preenchia todo o vazio. Um prazer que me era introjetado ate que explodia numa espécie de orgasmo espiritual, fazendo minha alma transbordar em gozo. O encontro com a religião fazia-me sorrir e chorar de uma só vez. E com a mesma intensidade. Conheci, naquele momento, o fenômeno da conversão. Alguém me abraçou. E eu chorava mais e mais. Nesse momento o pastor colocou a mão na minha cabeça e, enquanto as pessoas cantavam alto e batiam palmas, falou, quase sussurrando em meu ouvido, que meu nome era Exú Caveira e que eu tinha câncer. Depois me fez ir ajoelhado ate a frente da tela que ocultava os posters da atriz Aldine Mulher.

Uma vez na frente, fui sabatinado pelo homem de Deus:

- QUAL e O TEU NOME, SAFADO? - vociferou  no meu ouvido.

Um silencio profundo invadiu o cinema. Todos esperavam uma resposta. Eu não sabia se o pastor perguntava meu nome verdadeiro ou aquele que ele havia sussurrado no meu ouvido.

- Mário - respondi.

- MENTIROSO! - berrou o pastor. SATANÁS!

O silencio voltou a predominar na sala:

- FALA TEU VERDADEIRO NOME.

- Exú Caveira? - respondi, como a perguntar se era esse o nome que deveria falar.

- TA AMARRADO, CAPETA! EM NOME DE JESUS! - gritou o pastor, enquanto pisava na minha cabeça, forcando-a para o chão.

- TA AMARRADO! QUEIMA! QUEIMA! - responderam, em coro, as excitadas velhinhas, ao testemunhar a autoridade de seu pastor sobre mim, o espirito imundo.

Ao final do culto, o jovem me deu um Novo Testamento e me falou que Deus me amava. Depois de conversarmos por alguns minutos, despedi-me, prometendo voltar.

Prometi e cumpri. No dia seguinte, fui um dos primeiros a chegar. Ao contrario da noite anterior, o cinema estava cheio naquela manha. Durante um culto acompanhado com música e distribuição de rosas brancas, fizeram um convite para os que quisessem ser membros da Igreja. Não pensei duas vezes. Afinal, pela primeira vez na vida experimentava paz. Estava no meio de pessoas que, apesar de não me conhecerem, me aceitavam como um membro de sua própria família. Eu queria ser um deles. Queria pertencer aquele grupo que era tão poro, tão unido, tão desligado das coisas deste mundo e tão cheio de amor. Algumas coisas eu não entendia ainda, como a questão das altas ofertas e os dízimos, por exemplo, mas não me importava com isso. Dinheiro não era importante Ensinaram-me que "o dinheiro e a raiz de todos os males".

Não demorou muito para que minha família se desse conta da mudança de meu comportamento. Em vez de andar triste pelos cantos, como fazia usualmente, agora eu cantava hinos e lia a Bíblia. Meus pais, que a principio gostaram da mudança, logo mudaram de opinião, quando perceberam que eu estava indo longe demais: já não me interessava pelos estudos e faltava as aulas para ir a igreja.

Quando o Cine Santa Maria se transformou definitivamente em um templo da Igreja Universal do Reino de Deus, eu passei a frequentara os cultos todos os dias. Muitas vezes nos quatro turnos. Meu pai chegou a me proibir de ir a igreja durante a semana, como uma maneira de me prender aos estudos. Mas isso não funcionou. Eu precisava ir todos os dias.

As brigas com meus pais por causa de meu fanatismo religioso começaram a ser constantes. Mas o pastor Luiz, que naquela época ainda não tinha rompido com a Igreja Universal para se tornar um adventista do Sétimo Dia, alertou-me para as palavras de Cristo quando Ele disse que, por causa do Evangelho, haveria distensões entre pais e filhos, e que os maiores inimigos da nossa fé seriam os de nossa própria casa.

Um mês depois de ter entrado para a Igreja, o pastor Luiz me convidou para ser obreiro. Pensei que isso talvez fosse me atrapalhar ainda mais nos estudos, mas eu achava que daria um jeito de conciliar as duas coisas. Não deu certo. E entre a Igreja e o colégio, optei pelo conhecimento da graça.

Meus pais continuaram, sem sucesso, tentando fazer com que eu desistisse da Igreja Universal. Varias vezes, durante nossas discussões dizia-lhes que não deixaria de maneira alguma a Igreja em que Deus me havia curado de câncer. E que me mataria se eles tentassem me impedir de ser obreiro.

A ultima gota d’água veio quando abandonei o colégio de uma vez por todas. Aquele esquema conciliatório entre aulas e cultos não funcionou, e, sem pensar duas vezes, abri mão da bolsa de estudos que tanto havia me esforçado para conseguir. O pastor, então, me disse que a melhor solução seria eu sair de casa. Falou que eu poderia ficar morando na igreja. Afinal, eles estavam mesmo precisando de alguém para abrir e fechar o templo, alem de um vigia para a noite.

Aceitei o convite do pastor Luiz e, com apenas quinze anos de idade, resolvi abandonar a casa de meus pais e entrar de vez para o Reino de Deus.

Ao chegar em casa para apanhar as minhas roupas, encontrei minha mãe, que trabalhava no tanque - ela estava sempre no tanque. Não sabia como contar que estava indo embora. Nunca pensei que um dia fosse lhe dizer isso. Dos três filhos, eu era o mais ligado a ela.

- Por que esta fazendo isso, meu filho? Que mal te fizemos?

Imbui minha alma de sentimentos nobres para tentar explicar tudo a ela, mas no fundo sabia que era um esforço inútil. Ela jamais entenderia. Então, desviando meus olhos dos dela, disse-lhe que aquela era a primeira vez na vida que não me sentia triste. Que me sentia em paz comigo mesmo e com Deus. Eu queria ficar na Igreja. Eu queria morar no templo.

- Filho, quem sou eu para disputar com Deus o seu coração disse-me ela.

Lembro-me de todos os detalhes daquele dia, por duas razoes: foi a primeira vez que vi minha mãe chorar; e foi a primeira vez que ela me disse que me amava. Enxugando a mão no avental molhado, ela me acompanhou ate a porta. Tentou disfarçar o que sentia com o velho truque do cisco no olho, mas pude ver que chorava.

- Benção, mãe - disse com um no na garganta.

Deus te abençoe - respondeu ela.

Carregando a sacola de roupas, caminhei em direção ao ponto de ônibus que ficava embaixo das mangueiras. Ao passar pelo nosso campinho de várzea, meus amigos pararam a pelada e vieram se despedir de mim. Eles ouviram que eu estava indo embora.

- Quem vai ser o presidente? - perguntou Dilcinho, secretario- geral do "Clube dos Batutinhas", que havíamos copiado do seriado americano exibido pela TV Educativa. Dilcinho, por certo, já estava pensando em assumir o meu lugar.

- E quem vai ser o técnico? - perguntou Dude, também de olho na minha posição.

Péssimo em futebol, eu me autoproclamara técnico do time da rua. Como cartola, protegia minha falta de talento com a bola. Ainda tive tempo de distribuir meus cargos, figurinhas premiadas, uma replica do carro do Speedy Racer, selos e bolas de gude antes de entrar no ônibus que me levaria a cidade.

Quando a "baratinha" passou em frente ao portão de casa, de sua janela enlameada acenei para minha mãe, que se debruçava na cerca. Não sei explicar por que ela me deixava ir. Eu era praticamente uma criança. Ela poderia ter me forcado a ficar. Poderia ter impedido, pois talvez acontecesse comigo o mesmo que acontecera a ela quando tinha quase a mesma idade. A rapidez da "baratinha" ainda me permitiu vê-la respondendo com outro aceno. E, por alguns instantes, ficamos acenando um para o outro ate que ela desapareceu em meio a poeira vermelha.

Anos mais tarde, eu me daria conta de que a havia perdido naquele dia. Perdido para sempre.

Hoje em dia e inconcebível a idéia de uma mulher que faz o próprio parto dentro de um barraco de pau-a-pique, tendo como única ajudante uma filha de dez anos que, a cada momento do agonizante processo, traz a beira da cama canecas com água quente e pedaços de pano, enquanto a mulher, tentando ignorar a fumaça do fogão de lenha, galinhas e patos que correm em algazarra - e a própria dor- traz, literalmente, o filho ao mundo. Foi assim que eu nasci. Nesse estado de pobreza passei toda a minha infância.

Minha mãe era de Curvelo, cidadezinha do interior de Minas Gerais. Não se cansava de contar historias da infância vivida entre arvores e riachos, mas nunca se aprofundava nos detalhes. Como, por exemplo: quem teriam sido seus pais? Tudo o que sabíamos era que, ainda adolescente, tinha sido vendida para trabalhar na casa de uma madame no Rio de Janeiro e que desde então nunca mais vira a mãe e os Irmãos.

As madames para as quais ela havia trabalhado diziam que era a melhor lavadeira que conheciam. Ela recebia o comentário como elogio. De fato, o jeito como minha mãe tratava as roupas era algo próximo a um ritual: depois de lavadas com sabão de coco, elas eram fervidas com anil e ficavam quarando ao sol durante um dia. Em seguida, engomava e passava peça por peça, enquanto soprava as brasas do ferro.

Algumas patroas levavam a roupa em minha casa. Outras, como dona Jurema, minha mãe atendia em domicilio. Dona Jurema viria a ser a única amiga de minha mãe. Feliz era o dia que íamos a casa dela. Enquanto minha mãe lavava a roupa e conversava com a amiga, eu ficava brincando com os seus netos no quintal, subindo nos pés de goiaba ou assistindo ao National Kid, no programa do Capitão Asa. No final da tarde, ela me oferecia café com bolo e sempre antes de irmos embora me dava uma mão cheia de balas e bombons. Dona Jurema era uma senhora bondosa.

Posso estar correndo o risco de cair na pieguice, mas eu adorava mamãe. Ela era, para mim, uma espécie de santa. Uma Maria mãe de Deus ou coisa semelhante. Ela era tão pura aos meus olhos e eu sabia que era tudo que eu tinha. Ficava com medo só de pensar que um dia ela pudesse morrer, deixando-me só. Não me imaginava vivendo sem ela. Chegávamos ao extremo de comer no mesmo prato. Cresci prometendo a mim mesmo que ganharia muito dinheiro e tiraria minha mãe daquela miséria. Compraria para ela uma casa com laje e água encanada, uma televisão para que pudesse acompanhar as novelas e, vingança das vinganças, pagaria alguém para lavar-lhe as roupas. Essa era, basicamente, a minha maior ambição.

Não sei como meus pais se conheceram e passaram a viver juntos. Eles nunca tocaram no assunto, e nos, os filhos, nunca nos interessamos em saber. Mas, qualquer que tenha sido o motivo, certamente não foi amor. Eles eram completamente distantes um do outro. Dormiam separados, e minha mãe sempre se referia a meu pai com um "seu" antes do nome. Não me lembro tê-los visto brigar, mas também nunca testemunhei um mínimo gesto de carinho ou afeição entre eles. E pensar que essas duas pessoas viveram juntas por mais de quarenta anos.

Meus pais faziam todo o sacrifício do mundo para nos dar uma vida, no conceito deles, decente. Eu sabia que eles nos davam muito mais do que aquilo que haviam recebido de seus pais. Mas odiava aquela vida. Odiava aquele bairro. Era como se o meu mundo não fosse aquele. Como se o fato de ter nascido ali tivesse sido um grande erro, sei lá de quem. e difícil imaginar que possa existir um outro lugar como Boa Vista. As ruas de barro vertiam poeira quando passava um cavalo ou a "baratinha" - era assim que chamávamos o ônibus. A poeira ia se depositando por sobre a comida na mesa, os lençóis na cama e as roupas no varal. Nos dias de chuva, as estradas se transformavam em um pântano. As pessoas que trabalhavam na cidade tinham de cobrir os sapatos com sacos plásticos e levar consigo uma garrafa d’água, para que, uma vez no ônibus, pudessem lavar os pés.

A água salobra que usávamos para beber e cozinhar vinha de um poço infestado de sapos, cavado no fundo do quintal. Foram muitas promessas e muitos prefeitos ate chegar luz elétrica. Para que nos transformássemos de vez em trogloditas, só nos faltavam as vestimentas de pele, um osso no cabelo e ter os Flintstones como vizinhos.

Eu sabia que estudar e me formar era o único meio de sair daquele lugar. A única forma de poder ajudar meus pais. Enquanto alguns garotos da rua eram bons de bola, eu devorava livros e nunca era reprovado na escola. Sempre na metade do segundo semestre já tinha nota suficiente para passar. Mas também sabia que precisava mudar de escola se quisesse chegar a algum lugar. O grupo escolar Padre Manuel da Nóbrega era um colégio de bairro que não me daria nenhuma base para chegar a faculdade, o meu objetivo.

Em um certo 7 de setembro, fui a Niterói assistir a parada cívica escolar. O meu colégio, que pertencia a outra jurisdição, não participava desses eventos. De qualquer forma, quem ali estaria interessado em ver o Padre Manuel desfilar?

As escolas de Niterói eram, se não totalmente burguesas, muito finas. Com um nível de educação satisfatório, essas escolas eram frequentadas pelos filhos da classe media da cidade. Nenhum de nos, filhos da Boa Vista, sonhava ingressar numa daquelas instituições privadas.

No desfile, a segunda escola que ocupou a avenida Marechal Floriano Peixoto chamou minha atenção, pela correção e beleza de sua apresentação. A banda e os integrantes de todas as alas usavam um elegante uniforme branco e verde, com certeza as cores da escola.

Fiquei encantado com o que vi e acompanhei o desfile ate que ele se dissolvesse na frente do Colégio Plínio Leite, um dos mais caros da cidade. Funcionava num imponente prédio localizado bem no centro de Niterói, foi a primeira coisa que notei. Aproximei-me da portaria e pedi ao segurança para dar uma olhadinha no lado de dentro. o que vi me causou surpresa. O colégio tinha quadra de futebol de salão, um enorme ginásio, laboratórios modernos e um excelente nível de ensino. Ali haviam estudado intelectuais, jornalistas e políticos. Era ali que eu queria estudar. Queria fazer parte daquele mundo, daquela realidade diferente da minha.

Voltei para casa e passei aquela tarde pensando numa maneira de ingressar naquele mundo. Por diversas vezes reli a brochura de matricula e cada vez estava mais convencido de que aquele era meu lugar. O meu dilema era não saber de onde tiraria dinheiro para pagar a matricula e as mensalidades. Eram caras demais para as condições da minha família. Não tive nem mesmo a coragem de tocar no assunto com meus pais. Cheguei a conclusão de que a única saída era uma bolsa de estudos. Com informações adquiridas na brochura de matricula, enviei uma carta ao diretor do colégio. Pedi uma bolsa de estudos e prometi ser um dos melhores alunos se aquela oportunidade me fosse concedida.

Quatro meses se passaram depois do envio da carta. Aquela altura já não acreditava mais que receberia uma resposta. Aliviava-me o fato de não ter falado com ninguém sobre o assunto. Não suportaria as chacotas.

Numa tarde, eu tinha ido ao boteco comprar cerveja para meu pai. Ao voltar para casa, com passos lentos e cansados devido ao calor insuportável e a poeira da rua, avistei o carteiro que se aproximava. O homem com uniforme amarelo feito de um material semelhante a lona de circo também caminhava com passos lentos e cansados e, como eu, tentava se livrar do suor que, misturado a poeira, se transformava num lodo que escorria pelo rosto, formando uma espécie de mascara de barro e fazendo arder os olhos.

Raras vezes o carteiro passava por ali. As pessoas que moravam naquela rua não recebiam nem mandavam cartas, não havia correspondência para sair, nem para chegar. Nem mesmo a conta de luz, que a prefeitura desistiu de mandar, já que ninguém pagava. Recentemente, só me lembrava de o carteiro ter passado por ali por causa de minha correspondência com uma garota de Parati. Mas fazia quase um ano que eu não recebia uma carta dela.

Por isso, foi com muita ansiedade e já adivinhando o que poderia ser que corri em direção ao homem.

- Moço. e para mim, não e?

- Qual e o teu nome? - perguntou, ofegante, enquanto se abanava com a minha carta.

Ainda sem acreditar que alguém ali estava recebendo correspondência, o homem, depois de conferir o nome e o endereço, me estendeu um envelope com o emblema da escola de Niterói. As batidas do meu coração eram tão fortes que pensei que o carteiro podia ouvi-las. Aquela altura, meus irmãos já me rodeavam, querendo saber o que eu havia recebido. Extasiado, não conseguia explicar o que estava acontecendo. Tinha medo de abrir a carta. Temia ser uma recusa educada. Algo como "recebi sua carta, mas infelizmente não posso ajuda-lo". Não era. A carta, assinada pelo próprio Dr. Plínio Leite, dizia que eu ganhara uma bolsa de estudos que cobria o segundo grau técnico e os quatro anos de faculdade. Minha mãe me beijava e meu pai se incumbia de anunciar a vizinhança. Tudo o que lembro ter sentido naquele momento foi uma imensa gratidão. Mas, por mais que eu tenha tentado, depois, nunca tive a oportunidade de agradecer-lhe pessoalmente. Dois anos mais tarde, fui um dos escoteiros que carregaram a bandeira do colégio no funeral do Dr. Plínio.

Meus irmãos eram muito mais velhos do que eu e por essa razão tínhamos pouca afinidade. Cosme e eu éramos verdadeiramente distantes. Já Pingo - que ganhou o apelido por ser um pinguinho de gente quando nasceu -, era mais chegada a mim. A única coisa de que ela não gostava era o fato de ter de me levar a tiracolo quando ia aos bailes, nos fins de semana. Era essa a condição exigida por meu pai para permitir que ela fosse. Mas, em troca de doces e pipocas, eu nada contava a papai sobre os inúmeros namorados que ela arranjava numa só noite. Quer dizer, não contava ate a próxima briga.

O meu dia-a-dia, vivendo agora na Igreja Universal, era completamente diferente daquele que levava ate sair de casa. Levantava as seis horas da manha. Começava por lavar os banheiros. Depois, limpava o piso e tirava o pó das dezenas de bancos que se enfileiravam uns atras dos outros no grande salão do templo. Procedia a essa limpeza depois de cada uma das quatro reuniões diárias. Também fazia as vezes de segurança, tanto a noite como ao longo do dia. Tudo isso alem de atuar como obreiro nas reuniões. Geralmente, eu fechava a igreja as 23 horas, encerrando assim uma jornada diária de dezessete horas de trabalho, cumprida religiosamente de segunda a segunda. Entretanto, eu nada recebia por esse serviço, quer dizer, não recebia nada em dinheiro Meu pagamento era basicamente a comida: café da manha, um PF no almoço e o jantar, que consistia normalmente em um sanduíche e uma sopa. Só não comia quando o pastor decretava jejum.

Leia o restante do depoimento adquirindo o Livro "Nos Bastidores do Reino - A Vida Secreta na Igreja Universal" indo no site da editora Geração Editorial (www.geracaobooks.com.br), ou adquira o livro pelo telefone (0xx11)3872-0984.

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