PREFÁCIO
Os originais de Nos Bastidores do Reino chegaram as minhas mãos
ha mais de um ano. O intrigante e que eu morava no meio do nada,
perto das montanhas de São Francisco, na Califórnia,
e o remetente era um desconhecido brasileiro que vivia em Nova
York. Abri o envelope na varanda da minha casa, me perguntando
como ele me achou e por que eu. Estava ocupado, tinha compromissos
marcados, mas li a primeira linha e só sai da varanda ao
anoitecer, depois de ter lido o livro em uma tacada. A primeira
coisa que me veio a cabeça: ainda bem que ele me achou e me
escolheu.
Prepare-se: ler Nos Bastidores do Reino e
um evento de transformação. Ninguém será
o mesmo depois de conhecer os detalhes da vida de Mário
Justino, mas vale a pena correr o risco. Ainda não se
criou uma designação para este estilo literário.
Seria o que, literatura emocional, visceral? Pensando bem, pouco
importa o estilo. e um livro, como todos os livros buscam ser:
um acontecimento na vida do leitor.
A começar, a historia nebulosa da
formação de um pastor da Igreja Universal do Reino
de Deus, que cresceu com a crise espiritual do homem moderno,
dando respostas objetivas a carência moral de milhares de
fieis abandonados por outras seitas. Os métodos da Igreja
são questionados. Aproveita-se da fé para
extorquir milhões? Poderíamos concluir que a
religião vira um negocio, e uma técnica e
desenvolvida para confundir a "vitima", relendo a Bíblia
e deturpando o pensamento cristão.
Nos bastidores, premiam-se os pastores que
conseguem arrecadar mais dinheiro. As fofocas giram em torno do
sucesso ou fracasso financeiro de tal filial. O poder sobe a
cabeça, e um estilo de vida nada religioso passa a ser a
norma entre os lideres da Igreja. De festa em festa, nosso
personagem e contaminado pelo vírus da AIDS. e expulso da
Igreja, e desce aos poucos os degraus do inferno. Em pouco
tempo, o garoto da Universal perde tudo e vive seu calvário
pessoal, nas sombras de uma estação de metrô
de Nova York, aquecendo-se numa fogueira com outros mendigos (os
de possuídos),pensando em roubar para comprar drogas e
planejando o assassinato do bispo Edir Macedo, líder da
seita.
Não e apenas um livro denúncia.
A própria teologia esta em debate. De repente, estamos,
agora sim, em frente à pureza e à verdade do ideal
cristão. Chegamos a acreditar que Mário Justino e
mais Jesus que toda a pompa papal e a conta bancaria da
Universal. São escritores como ele que podem nos salvar e
iluminar alguns caminhos. Faça bom fruto das palavras de
um homem que viu de tudo, que viveu os extremos, e pode ser
considerado, em teoria, um herói.
MARCELO RUBENS PAIVASão
Paulo, primavera de 1995
Introdução
Não considero este livro uma
autobiografia. Essas são escritas por aqueles que já
viveram tudo. Ele também não pretende ser uma
busca de remissão, nem uma tentativa de me justificar a
quem quer que seja. Acima de tudo, este livro não tem a
pobreza de ser uma forma de vingança.
Talvez eu não tivesse o direito de
escrever uma historia que envolve tantas pessoas. Mas, no
decorrer dos últimos anos, eu vinha sentindo uma irresistível
vontade de contar a minha verdade. Entretanto, seria impossível
contar essa historia sem que se revelasse, no andamento natural
da narrativa, a historia dos porões da Igreja Universal.
Infelizmente, as duas historias estão fundidas em uma só.
Sexo, dinheiro e drogas se confundem, no mesmo púlpito,
com orações e salmos de Davi.
Lamento pelas pessoas que se sentirão
traídas por esta obra. Mas espero que ela contribua para
que se forme uma discussão de âmbito nacional sobre
a influencia nociva que pseudopastores vem exercendo sobre as
massas, fazendo com que menores abandonem famílias, e
estudos, desgraçando assim seu futuro e sua vida. Isso,
se não é, deveria ser caso de policia.
As poucas pessoas que conseguem se liberar
desse crack religioso se vêem no meio de um profundo
vazio. Como se o tapete mágico tivesse sido puxado
repentinamente de sob seus pés. Em muitas vezes as seqüelas
são irreparáveis. Nos Estados Unidos existem
varias organizações, algumas governamentais, que dão
apoio psicológico e legal a essas pessoas vitimadas por
grupos como a "igreja" de Edir Macedo.
Eu acredito que no Brasil essas vitimas
sejam em grande numero ex-pastores, missionários,
evangelistas, obreiros, membros. Pessoas de boa fé que
deram seus lombos para que sobre eles fosse construído o
império de Macedo. Somente denunciando elas serão
ouvidas.
Recuso-me a acreditar que a Constituição,
quando protege a liberdade de culto, também proteja a
lavagem cerebral e a exploração financeira da
credulidade publica.
A principio, este livro pretendia ser uma
denuncia, um clamor por justiça, mas, na medida em que
foi sendo concebido, foi assumindo a forma daquilo que realmente
e: a trajetória de alguém que, buscando o
desconhecido, encontrou a si mesmo.
MÁRIO JUSTINO
Nova York, verão de 1995
PRELÚDIO
- Ora, não se faca de imbecil! Você
sabe por que tem de ir. Mas vou refrescar sua mente. Você
não pode mais ficar com a gente porque tem AIDS!
Quando Edir Macedo, o bispo da Igreja
Universal do Reino de Deus, me chamou em seu escritório,
no fundo eu sabia que era isso que ele me diria. Dois meses
antes eu enviara uma carta ao pastor Honorilton Gonçalves,
na qual contava o meu problema.
Gonçalves fora um grande amigo,
desde os meus dezesseis anos, quando fui transferido do Rio para
ser pastor na Bahia, estado em que ele era o vice-líder.
Gonçalves agora era líder nacional, e, em nome da
nossa antiga amizade, pensei nele como alguém que podia
me ajudar a sair daquele estado de torpeza e confusão. Na
carta, contei a ele tudo o que estava acontecendo comigo. Disse,
inclusive, que achava estar com "aquela doença incurável"
Por varias semanas esperei pela resposta
do pastor Gonçalves. Nunca chegou. Em compensação,
fui chamado ao escritório do bispo Edir Macedo, que na época
encontrava-se em Nova York fugindo das acusações
de charlatanismo feitas pela policia de São Paulo. Com o
conhecido olhar que aterrorizava seus subalternos, o bispo
ordenou que eu juntasse minhas coisas e fosse embora. Eu não
interessava mais a Igreja Universal do Reino de Deus. Pior,
podia "comprometê-la". Ao insistir em saber por
que estava sendo varrido da Igreja depois de onze anos de serviços
prestados, recebi do bispo aquela resposta áspera, bem no
estilo dele.
Disse que não tinha para onde ir e
implorei que ao menos me mandasse de volta para o Brasil.
Respondeu-me afirmando que eu tinha uma passagem de volta e que
deveria usa-la. Mas não existia passagem alguma. A
passagem com que tinha ido do Brasil para Portugal fora obtida
numa promoção e tinha apenas três meses de
validade. Como permaneci em Lisboa por quase um ano, perdera a
validade. O mesmo acontecera com a passagem de Lisboa para Nova
York.
Inutilmente, disse que escrevera a carta
num momento de desespero e que não tinha certeza se
estava mesmo com a doença. Não adiantou. Ele se
mostrou irredutível diante das minhas suplicas e explicações.
Nada poderia demove-lo da idéia de me punir severamente.
Ao sair do escritório do bispo, a
primeira coisa que me veio a cabeça foi ligar para
Eliane. Disse-lhe que algo terrível me havia acontecido e
que precisava de sua ajuda. Ela me recebeu em sua casa sem ao
menos perguntar o motivo pelo qual a Igreja estava sendo tão
severa e cruel comigo. Fiquei lá por uma semana. Depois,
tornei a implorar ao bispo Macedo para que me desse algum
dinheiro ou me mandasse de volta para o Brasil.
Inflexível como sempre, o que
achava ser uma virtude, o bispo não voltou atras:
Aqui, o!!! - disse ele, ao mesmo tempo que
desferia uma "banana", aquele clássico gesto em
que, erguido, o punho cerrado assume a forma de um imenso pênis
em estado de ereção.
Depois do que acabara de experimentar,
comecei a caminhar feito um desnorteado pelas ruas da cidade.
Com passadas largas e firmes, tentava entender o que estava
acontecendo comigo. Uma das razoes pelas quais me tornara uma
das figuras mais populares dentro da imensa comunidade da Igreja
Universal tinha sido exatamente a habilidade com que conseguira
me movimentar, a habilidade para contornar problemas e sempre
ter, nas situações difíceis, a tal carta
escondida na manga. Agora, no entanto, todo aquele jogo de
cintura também parecia Ter virado as costas para mim.
Sentia-me inteiramente impotente. Desarmado. Tudo o que queria
era chorar. E nem isso conseguia.
Não levaram muito tempo para
descobrir que Eliane estava me abrigando. Ao regressar a casa,
encontrei o pastor Natanael. Ele estava ali a mando do Bispo.
Queria checar meus pertences. Natanael disse que depois da minha
saída fora notado o sumiço de um gravador, que era
usado para gravar testemunhos dos milagres de Macedo.
Desconfiavam que eu havia roubado o equipamento. Ao tentar
impedi-lo de revistar minha mochila, atracamo-nos em uma inglória
(para mim, dado o meu estado cambaleante) luta corporal.
Enquanto isso, aos gritos, Eliane suplicava que parássemos
com aquilo. Fui dominado facilmente por Natanael, que, tento
rasgando a bolsa, ia chutando tudo o que caia, espalhando minhas
roupas, procurando pelo gravador.
Provando uma humilhação que
nunca imaginei passar, fiquei jogado num canto da sala tossindo
e jurando que me vingaria de todos eles. Um por um.
- Como se você fosse viver para isso
- disse Natanael com um sorriso irônico, saindo sem
encontrar o que viera buscar e deixando para trás a minha
figura miserável recolhida ao chão.
Não sei por quanto tempo fiquei
ali, no canto daquela sala, a cabeça baixa, os olhos
parados e o tempo se esvaindo diante deles. As imagens de minha
trajetória na Igreja passavam velozmente pela minha
mente, como num aparelho de vídeo.
O ódio me desvirginava.
Encolhido no canto, sentia-me a pior das
criaturas. Rastejando no pó, como a serpente amaldiçoada.
Como Lucifer, caído em desgraça. Destituído
de toda a gloria. De toda a luz.
Esforçava-me para não
chorar. Seria reconhecer a vitoria deles. Com um no na garganta
e a respiração pesada, senti minha boca se encher
de uma saliva amarga. Por entre os dentes, emitia grunhidos cujo
significado nem eu mesmo sabia. Naquele momento, foi
definitivamente possuído pelo pior sentimento conhecido
pela raça humana. E esse sentimento, agora, iria reger a
minha vida.
Meus pensamentos, que corriam longe,
arrebentaram a linha tênue que separa o bom senso da
loucura quando eu comecei a considerar a idéia de matar.
Eu não tinha mais nada a perder. Tudo o que tivera havia
escorrido por entre os meus dedos: mulher, filhos, meus pais,
meus sonhos, minha fé, meu Deus. Tudo tinha ido.
A única coisa que me restara era o ódio
mortal pelo bispo Macedo e sua Igreja Universal.
A idéia de mata-lo pareceu-me uma
forma deliciosa de fazer justiça. Ainda fraco, levantei a
cabeça e fiquei de pe. O pensamento me revigorou e me fez
sentir melhor A saliva se fez doce. Havia, enfim, encontrado uma
razão para continuar vivendo.
CAPITULO UM
1980: BEM-VINDO AO REINO
Era uma típica noite de sábado,
em que os barzinhos estavam repletos de gente jovem, entretidos
por animadas conversas em suas mesinhas ao longo da calcada. Em
meio a esse burburinho de casais e amigos que ocupavam as ruas,
eu caminhava sem rumo e com o semblante caído. Minha
figura contrastava com aquelas pessoas que, indo e vindo,
passavam por mim exibindo uma invejável alegria.
Tinha medo de estar dando o passo errado.
Por alguns instantes pensei que talvez fosse melhor voltar para
casa e fazer de conta que aquela idéia nunca me ocorrera.
Mas sabia que algo me faltava e, por uma estranha razão,
tinha certeza de que naquela noite encontraria o que vinha
buscando, mas não sabia exatamente o que era.
Duas semanas antes, eu havia sintonizado
um programa na Radio Metropolitana do Rio de Janeiro. O programa
prendeu minha atenção e a partir dali me manteve
cativo todas as noites. Esperava com ansiedade ouvir o tema de
abertura e, quando isso acontecia, eu já tinha colocado
sobre o radinho de pilha um copo cheio da água que
beberia depois da "prece poderosa".
Ainda hoje não estou bem certo do
que me atraia naquela programação. Afinal de
contas, tinha apenas quinze anos, uma fase em que a maioria dos
jovens não ocupa a mente com determinados problemas que
afligem os adultos. Porem, eu era diferente. Estava sempre
preocupado com as dificuldades dos meus pais. Alem disso, eu era
uma criança profundamente triste. Desde muito pequeno,
escondia-me pelos cantos do quintal. Era um obstinado que
buscava indiscriminadamente a solidão. Em certas ocasiões,
sem nenhuma razão aparente, passava horas calado e
triste. Esse vazio acabou por impulsionar-me ao meu destino Foi
ele, o vazio, que me levou a sair de casa naquela noite rumo ao
centro de São Gonçalo procurando o lugar onde, de
acordo com o programa de radio, "um milagre espera por você".
O milagre esperava por mim no velho prédio
do Cine Santa Maria, que durante a semana exibia filmes pornográficos.
Aos sábados e domingos, entretanto, tinha o seu cenário
radicalmente mudado. A bilheteria fechava, a catraca era
removida e os cartazes da Aldine Müller eram levados para o
outro lado da tela. O profano emprestava seus assentos ao
sagrado. O sagrado era materializado por um cálice de
azeite bento colocado no centro de uma mesa forrada com uma
toalha de renda branca, sobre a qual jazia uma Bíblia
aberta em um salmo qualquer.
As pernas tremulas e vacilantes
conduziram-me aquele santuário improvisado, quase vazio.
As poucas senhoras sentadas contrastavam com o grande publico
que, durante a semana, se deleitava ali com As taras sexuais de
um cavalo.
Enquanto procurava um lugar para me
sentar, o silencio que do- minava a sala fez com que, por alguns
momentos, eu tivesse a impressão de ouvir hinos de
louvar; hinos entoados por um exercito de anjos invisíveis.
Não demorou muito para que um jovem
pastor começasse a palestra. Nervoso e ainda tremulo, não
conseguia acompanhar a fala acelerada do pastor. Por fim, ele
ordenou que fechássemos os olhos para que fizesse uma oração.
Eu não era religioso. Meus pais se
diziam católicos, porem nunca iam a missa. Nós rezávamos
somente quando alguém caia doente em casa. Na rua das
Mangueiras, onde eu morava, havia uma benzedeira pronta para
curar todo tipo de moléstia: de sarampo a caxumba; de
espinhela caída a erisipela, tudo ela curava. Era para
ela que corríamos sempre que necessitávamos de
ajuda espiritual.
Durante a oração, o jovem
pastor pediu a Deus que aliviasse a carga que trazíamos.
Suplicava-lhe que perdoasse nossos pecados e nos desse a
oportunidade de nascer de novo. Isso era tudo o que eu queria. A
idéia de um renascimento abalou-me ate os ossos. Queria
ser uma outra pessoa. Se essa dadiva existia, estava determinado
a alcança-la, custasse o que custasse. Enquanto
prosseguia em sua oração, o pastor colocou as mãos
sobre a minha cabeça, e eu comecei a chorar. A principio
eram lagrimas de angustia. Depois, tornaram-se lagrimas de
alivio e alegria. Sentia-me leve enquanto deixava extravasarem
os sentimentos sem me importar se estava sendo observado pelas
pessoas ao meu redor. Ao mesmo tempo que chorava, sentia meu ser
encher-se de um prazer imensurável. Um prazer que
preenchia todo o vazio. Um prazer que me era introjetado ate que
explodia numa espécie de orgasmo espiritual, fazendo
minha alma transbordar em gozo. O encontro com a religião
fazia-me sorrir e chorar de uma só vez. E com a mesma
intensidade. Conheci, naquele momento, o fenômeno da
conversão. Alguém me abraçou. E eu chorava
mais e mais. Nesse momento o pastor colocou a mão na
minha cabeça e, enquanto as pessoas cantavam alto e
batiam palmas, falou, quase sussurrando em meu ouvido, que meu
nome era Exú Caveira e que eu tinha câncer. Depois
me fez ir ajoelhado ate a frente da tela que ocultava os posters
da atriz Aldine Mulher.
Uma vez na frente, fui sabatinado pelo
homem de Deus:
- QUAL e O TEU NOME, SAFADO? - vociferou
no meu ouvido.
Um silencio profundo invadiu o cinema.
Todos esperavam uma resposta. Eu não sabia se o pastor
perguntava meu nome verdadeiro ou aquele que ele havia
sussurrado no meu ouvido.
- Mário - respondi.
- MENTIROSO! - berrou o pastor. SATANÁS!
O silencio voltou a predominar na sala:
- FALA TEU VERDADEIRO NOME.
- Exú Caveira? - respondi, como a
perguntar se era esse o nome que deveria falar.
- TA AMARRADO, CAPETA! EM NOME DE JESUS! -
gritou o pastor, enquanto pisava na minha cabeça,
forcando-a para o chão.
- TA AMARRADO! QUEIMA! QUEIMA! -
responderam, em coro, as excitadas velhinhas, ao testemunhar a
autoridade de seu pastor sobre mim, o espirito imundo.
Ao final do culto, o jovem me deu um Novo
Testamento e me falou que Deus me amava. Depois de conversarmos
por alguns minutos, despedi-me, prometendo voltar.
Prometi e cumpri. No dia seguinte, fui um
dos primeiros a chegar. Ao contrario da noite anterior, o cinema
estava cheio naquela manha. Durante um culto acompanhado com música
e distribuição de rosas brancas, fizeram um
convite para os que quisessem ser membros da Igreja. Não
pensei duas vezes. Afinal, pela primeira vez na vida
experimentava paz. Estava no meio de pessoas que, apesar de não
me conhecerem, me aceitavam como um membro de sua própria
família. Eu queria ser um deles. Queria pertencer aquele
grupo que era tão poro, tão unido, tão
desligado das coisas deste mundo e tão cheio de amor.
Algumas coisas eu não entendia ainda, como a questão
das altas ofertas e os dízimos, por exemplo, mas não
me importava com isso. Dinheiro não era importante
Ensinaram-me que "o dinheiro e a raiz de todos os males".
Não demorou muito para que minha
família se desse conta da mudança de meu
comportamento. Em vez de andar triste pelos cantos, como fazia
usualmente, agora eu cantava hinos e lia a Bíblia. Meus
pais, que a principio gostaram da mudança, logo mudaram
de opinião, quando perceberam que eu estava indo longe
demais: já não me interessava pelos estudos e
faltava as aulas para ir a igreja.
Quando o Cine Santa Maria se transformou
definitivamente em um templo da Igreja Universal do Reino de
Deus, eu passei a frequentara os cultos todos os dias. Muitas
vezes nos quatro turnos. Meu pai chegou a me proibir de ir a
igreja durante a semana, como uma maneira de me prender aos
estudos. Mas isso não funcionou. Eu precisava ir todos os
dias.
As brigas com meus pais por causa de meu
fanatismo religioso começaram a ser constantes. Mas o
pastor Luiz, que naquela época ainda não tinha
rompido com a Igreja Universal para se tornar um adventista do Sétimo
Dia, alertou-me para as palavras de Cristo quando Ele disse que,
por causa do Evangelho, haveria distensões entre pais e
filhos, e que os maiores inimigos da nossa fé seriam os
de nossa própria casa.
Um mês depois de ter entrado para a
Igreja, o pastor Luiz me convidou para ser obreiro. Pensei que
isso talvez fosse me atrapalhar ainda mais nos estudos, mas eu
achava que daria um jeito de conciliar as duas coisas. Não
deu certo. E entre a Igreja e o colégio, optei pelo
conhecimento da graça.
Meus pais continuaram, sem sucesso,
tentando fazer com que eu desistisse da Igreja Universal. Varias
vezes, durante nossas discussões dizia-lhes que não
deixaria de maneira alguma a Igreja em que Deus me havia curado
de câncer. E que me mataria se eles tentassem me impedir
de ser obreiro.
A ultima gota dágua veio
quando abandonei o colégio de uma vez por todas. Aquele
esquema conciliatório entre aulas e cultos não
funcionou, e, sem pensar duas vezes, abri mão da bolsa de
estudos que tanto havia me esforçado para conseguir. O
pastor, então, me disse que a melhor solução
seria eu sair de casa. Falou que eu poderia ficar morando na
igreja. Afinal, eles estavam mesmo precisando de alguém
para abrir e fechar o templo, alem de um vigia para a noite.
Aceitei o convite do pastor Luiz e, com
apenas quinze anos de idade, resolvi abandonar a casa de meus
pais e entrar de vez para o Reino de Deus.
Ao chegar em casa para apanhar as minhas
roupas, encontrei minha mãe, que trabalhava no tanque -
ela estava sempre no tanque. Não sabia como contar que
estava indo embora. Nunca pensei que um dia fosse lhe dizer
isso. Dos três filhos, eu era o mais ligado a ela.
- Por que esta fazendo isso, meu filho?
Que mal te fizemos?
Imbui minha alma de sentimentos nobres
para tentar explicar tudo a ela, mas no fundo sabia que era um
esforço inútil. Ela jamais entenderia. Então,
desviando meus olhos dos dela, disse-lhe que aquela era a
primeira vez na vida que não me sentia triste. Que me
sentia em paz comigo mesmo e com Deus. Eu queria ficar na
Igreja. Eu queria morar no templo.
- Filho, quem sou eu para disputar com
Deus o seu coração disse-me ela.
Lembro-me de todos os detalhes daquele
dia, por duas razoes: foi a primeira vez que vi minha mãe
chorar; e foi a primeira vez que ela me disse que me amava.
Enxugando a mão no avental molhado, ela me acompanhou ate
a porta. Tentou disfarçar o que sentia com o velho truque
do cisco no olho, mas pude ver que chorava.
- Benção, mãe - disse
com um no na garganta.
Deus te abençoe - respondeu ela.
Carregando a sacola de roupas, caminhei em
direção ao ponto de ônibus que ficava
embaixo das mangueiras. Ao passar pelo nosso campinho de várzea,
meus amigos pararam a pelada e vieram se despedir de mim. Eles
ouviram que eu estava indo embora.
- Quem vai ser o presidente? - perguntou
Dilcinho, secretario- geral do "Clube dos Batutinhas",
que havíamos copiado do seriado americano exibido pela TV
Educativa. Dilcinho, por certo, já estava pensando em
assumir o meu lugar.
- E quem vai ser o técnico? -
perguntou Dude, também de olho na minha posição.
Péssimo em futebol, eu me
autoproclamara técnico do time da rua. Como cartola,
protegia minha falta de talento com a bola. Ainda tive tempo de
distribuir meus cargos, figurinhas premiadas, uma replica do
carro do Speedy Racer, selos e bolas de gude antes de entrar no
ônibus que me levaria a cidade.
Quando a "baratinha" passou em
frente ao portão de casa, de sua janela enlameada acenei
para minha mãe, que se debruçava na cerca. Não
sei explicar por que ela me deixava ir. Eu era praticamente uma
criança. Ela poderia ter me forcado a ficar. Poderia ter
impedido, pois talvez acontecesse comigo o mesmo que acontecera
a ela quando tinha quase a mesma idade. A rapidez da "baratinha"
ainda me permitiu vê-la respondendo com outro aceno. E,
por alguns instantes, ficamos acenando um para o outro ate que
ela desapareceu em meio a poeira vermelha.
Anos mais tarde, eu me daria conta de que
a havia perdido naquele dia. Perdido para sempre.
Hoje em dia e inconcebível a idéia
de uma mulher que faz o próprio parto dentro de um
barraco de pau-a-pique, tendo como única ajudante uma
filha de dez anos que, a cada momento do agonizante processo,
traz a beira da cama canecas com água quente e pedaços
de pano, enquanto a mulher, tentando ignorar a fumaça do
fogão de lenha, galinhas e patos que correm em algazarra
- e a própria dor- traz, literalmente, o filho ao mundo.
Foi assim que eu nasci. Nesse estado de pobreza passei toda a
minha infância.
Minha mãe era de Curvelo,
cidadezinha do interior de Minas Gerais. Não se cansava
de contar historias da infância vivida entre arvores e
riachos, mas nunca se aprofundava nos detalhes. Como, por
exemplo: quem teriam sido seus pais? Tudo o que sabíamos
era que, ainda adolescente, tinha sido vendida para trabalhar na
casa de uma madame no Rio de Janeiro e que desde então
nunca mais vira a mãe e os Irmãos.
As madames para as quais ela havia
trabalhado diziam que era a melhor lavadeira que conheciam. Ela
recebia o comentário como elogio. De fato, o jeito como
minha mãe tratava as roupas era algo próximo a um
ritual: depois de lavadas com sabão de coco, elas eram
fervidas com anil e ficavam quarando ao sol durante um dia. Em
seguida, engomava e passava peça por peça,
enquanto soprava as brasas do ferro.
Algumas patroas levavam a roupa em minha
casa. Outras, como dona Jurema, minha mãe atendia em
domicilio. Dona Jurema viria a ser a única amiga de minha
mãe. Feliz era o dia que íamos a casa dela.
Enquanto minha mãe lavava a roupa e conversava com a
amiga, eu ficava brincando com os seus netos no quintal, subindo
nos pés de goiaba ou assistindo ao National Kid, no
programa do Capitão Asa. No final da tarde, ela me
oferecia café com bolo e sempre antes de irmos embora me
dava uma mão cheia de balas e bombons. Dona Jurema era
uma senhora bondosa.
Posso estar correndo o risco de cair na
pieguice, mas eu adorava mamãe. Ela era, para mim, uma
espécie de santa. Uma Maria mãe de Deus ou coisa
semelhante. Ela era tão pura aos meus olhos e eu sabia
que era tudo que eu tinha. Ficava com medo só de pensar
que um dia ela pudesse morrer, deixando-me só. Não
me imaginava vivendo sem ela. Chegávamos ao extremo de
comer no mesmo prato. Cresci prometendo a mim mesmo que ganharia
muito dinheiro e tiraria minha mãe daquela miséria.
Compraria para ela uma casa com laje e água encanada, uma
televisão para que pudesse acompanhar as novelas e,
vingança das vinganças, pagaria alguém para
lavar-lhe as roupas. Essa era, basicamente, a minha maior ambição.
Não sei como meus pais se
conheceram e passaram a viver juntos. Eles nunca tocaram no
assunto, e nos, os filhos, nunca nos interessamos em saber. Mas,
qualquer que tenha sido o motivo, certamente não foi
amor. Eles eram completamente distantes um do outro. Dormiam
separados, e minha mãe sempre se referia a meu pai com um
"seu" antes do nome. Não me lembro tê-los
visto brigar, mas também nunca testemunhei um mínimo
gesto de carinho ou afeição entre eles. E pensar
que essas duas pessoas viveram juntas por mais de quarenta anos.
Meus pais faziam todo o sacrifício
do mundo para nos dar uma vida, no conceito deles, decente. Eu
sabia que eles nos davam muito mais do que aquilo que haviam
recebido de seus pais. Mas odiava aquela vida. Odiava aquele
bairro. Era como se o meu mundo não fosse aquele. Como se
o fato de ter nascido ali tivesse sido um grande erro, sei lá
de quem. e difícil imaginar que possa existir um outro
lugar como Boa Vista. As ruas de barro vertiam poeira quando
passava um cavalo ou a "baratinha" - era assim que
chamávamos o ônibus. A poeira ia se depositando por
sobre a comida na mesa, os lençóis na cama e as
roupas no varal. Nos dias de chuva, as estradas se transformavam
em um pântano. As pessoas que trabalhavam na cidade tinham
de cobrir os sapatos com sacos plásticos e levar consigo
uma garrafa dágua, para que, uma vez no ônibus,
pudessem lavar os pés.
A água salobra que usávamos
para beber e cozinhar vinha de um poço infestado de
sapos, cavado no fundo do quintal. Foram muitas promessas e
muitos prefeitos ate chegar luz elétrica. Para que nos
transformássemos de vez em trogloditas, só nos
faltavam as vestimentas de pele, um osso no cabelo e ter os
Flintstones como vizinhos.
Eu sabia que estudar e me formar era o único
meio de sair daquele lugar. A única forma de poder ajudar
meus pais. Enquanto alguns garotos da rua eram bons de bola, eu
devorava livros e nunca era reprovado na escola. Sempre na
metade do segundo semestre já tinha nota suficiente para
passar. Mas também sabia que precisava mudar de escola se
quisesse chegar a algum lugar. O grupo escolar Padre Manuel da Nóbrega
era um colégio de bairro que não me daria nenhuma
base para chegar a faculdade, o meu objetivo.
Em um certo 7 de setembro, fui a Niterói
assistir a parada cívica escolar. O meu colégio,
que pertencia a outra jurisdição, não
participava desses eventos. De qualquer forma, quem ali estaria
interessado em ver o Padre Manuel desfilar?
As escolas de Niterói eram, se não
totalmente burguesas, muito finas. Com um nível de educação
satisfatório, essas escolas eram frequentadas pelos
filhos da classe media da cidade. Nenhum de nos, filhos da Boa
Vista, sonhava ingressar numa daquelas instituições
privadas.
No desfile, a segunda escola que ocupou a
avenida Marechal Floriano Peixoto chamou minha atenção,
pela correção e beleza de sua apresentação.
A banda e os integrantes de todas as alas usavam um elegante
uniforme branco e verde, com certeza as cores da escola.
Fiquei encantado com o que vi e acompanhei
o desfile ate que ele se dissolvesse na frente do Colégio
Plínio Leite, um dos mais caros da cidade. Funcionava num
imponente prédio localizado bem no centro de Niterói,
foi a primeira coisa que notei. Aproximei-me da portaria e pedi
ao segurança para dar uma olhadinha no lado de dentro. o
que vi me causou surpresa. O colégio tinha quadra de
futebol de salão, um enorme ginásio, laboratórios
modernos e um excelente nível de ensino. Ali haviam
estudado intelectuais, jornalistas e políticos. Era ali
que eu queria estudar. Queria fazer parte daquele mundo, daquela
realidade diferente da minha.
Voltei para casa e passei aquela tarde
pensando numa maneira de ingressar naquele mundo. Por diversas
vezes reli a brochura de matricula e cada vez estava mais
convencido de que aquele era meu lugar. O meu dilema era não
saber de onde tiraria dinheiro para pagar a matricula e as
mensalidades. Eram caras demais para as condições
da minha família. Não tive nem mesmo a coragem de
tocar no assunto com meus pais. Cheguei a conclusão de
que a única saída era uma bolsa de estudos. Com
informações adquiridas na brochura de matricula,
enviei uma carta ao diretor do colégio. Pedi uma bolsa de
estudos e prometi ser um dos melhores alunos se aquela
oportunidade me fosse concedida.
Quatro meses se passaram depois do envio
da carta. Aquela altura já não acreditava mais que
receberia uma resposta. Aliviava-me o fato de não ter
falado com ninguém sobre o assunto. Não suportaria
as chacotas.
Numa tarde, eu tinha ido ao boteco comprar
cerveja para meu pai. Ao voltar para casa, com passos lentos e
cansados devido ao calor insuportável e a poeira da rua,
avistei o carteiro que se aproximava. O homem com uniforme
amarelo feito de um material semelhante a lona de circo também
caminhava com passos lentos e cansados e, como eu, tentava se
livrar do suor que, misturado a poeira, se transformava num lodo
que escorria pelo rosto, formando uma espécie de mascara
de barro e fazendo arder os olhos.
Raras vezes o carteiro passava por ali. As
pessoas que moravam naquela rua não recebiam nem mandavam
cartas, não havia correspondência para sair, nem
para chegar. Nem mesmo a conta de luz, que a prefeitura desistiu
de mandar, já que ninguém pagava. Recentemente, só
me lembrava de o carteiro ter passado por ali por causa de minha
correspondência com uma garota de Parati. Mas fazia quase
um ano que eu não recebia uma carta dela.
Por isso, foi com muita ansiedade e já
adivinhando o que poderia ser que corri em direção
ao homem.
- Moço. e para mim, não e?
- Qual e o teu nome? - perguntou,
ofegante, enquanto se abanava com a minha carta.
Ainda sem acreditar que alguém ali
estava recebendo correspondência, o homem, depois de
conferir o nome e o endereço, me estendeu um envelope com
o emblema da escola de Niterói. As batidas do meu coração
eram tão fortes que pensei que o carteiro podia ouvi-las.
Aquela altura, meus irmãos já me rodeavam,
querendo saber o que eu havia recebido. Extasiado, não
conseguia explicar o que estava acontecendo. Tinha medo de abrir
a carta. Temia ser uma recusa educada. Algo como "recebi
sua carta, mas infelizmente não posso ajuda-lo". Não
era. A carta, assinada pelo próprio Dr. Plínio
Leite, dizia que eu ganhara uma bolsa de estudos que cobria o
segundo grau técnico e os quatro anos de faculdade. Minha
mãe me beijava e meu pai se incumbia de anunciar a
vizinhança. Tudo o que lembro ter sentido naquele momento
foi uma imensa gratidão. Mas, por mais que eu tenha
tentado, depois, nunca tive a oportunidade de agradecer-lhe
pessoalmente. Dois anos mais tarde, fui um dos escoteiros que
carregaram a bandeira do colégio no funeral do Dr. Plínio.
Meus irmãos eram muito mais velhos
do que eu e por essa razão tínhamos pouca
afinidade. Cosme e eu éramos verdadeiramente distantes. Já
Pingo - que ganhou o apelido por ser um pinguinho de gente
quando nasceu -, era mais chegada a mim. A única coisa de
que ela não gostava era o fato de ter de me levar a
tiracolo quando ia aos bailes, nos fins de semana. Era essa a
condição exigida por meu pai para permitir que ela
fosse. Mas, em troca de doces e pipocas, eu nada contava a papai
sobre os inúmeros namorados que ela arranjava numa só
noite. Quer dizer, não contava ate a próxima
briga.
O meu dia-a-dia, vivendo agora na Igreja
Universal, era completamente diferente daquele que levava ate
sair de casa. Levantava as seis horas da manha. Começava
por lavar os banheiros. Depois, limpava o piso e tirava o pó
das dezenas de bancos que se enfileiravam uns atras dos outros
no grande salão do templo. Procedia a essa limpeza depois
de cada uma das quatro reuniões diárias. Também
fazia as vezes de segurança, tanto a noite como ao longo
do dia. Tudo isso alem de atuar como obreiro nas reuniões.
Geralmente, eu fechava a igreja as 23 horas, encerrando assim
uma jornada diária de dezessete horas de trabalho,
cumprida religiosamente de segunda a segunda. Entretanto, eu
nada recebia por esse serviço, quer dizer, não
recebia nada em dinheiro Meu pagamento era basicamente a comida:
café da manha, um PF no almoço e o jantar, que
consistia normalmente em um sanduíche e uma sopa. Só
não comia quando o pastor decretava jejum.
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