Fundamentalismo Evangélico
Antônio Marcio

Trabalhando como professor da rede pública do Rio de Janeiro, portanto interagindo com uma clientela de classe popular, com alunos trabalhadores e filhos de trabalhadores, e estando comprometido com esse segmento de aluno, no seu direito básico a uma educação de qualidade, e entendendo a escola como espaço para reflexão em todos os aspectos da vida, tenho observado questões referentes à religiosidade desses alunos e de suas famílias, trazidas por eles com comentários, que me fizeram refletir sobre aspectos relacionados à visão das religiões, mais especificamente no caso, às igrejas evangélicas, sobre o mundo e a realidade tal qual ela se apresenta.

O motivo para tal reflexão não se deu de uma hora para outra. Ela tem se feito em mim a partir de, como já foi citado acima, questões trazidas pelos alunos para dentro de sala de aula e que diante dos últimos acontecimentos terroristas me inspiraram a esse texto que disserto no momento.

Um dos fatos que primeiro me trouxeram essa reflexão inicial foi quando, no ano de 1998, trabalhando numa escola pública de um bairro popular do município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, ao final do ano, como é de praxe nas escolas, são feitas formaturas dos alunos como forma de confraternização e comemoração pelo término do curso, nesse caso de 1º grau, onde ao invés de um padre como seria o normal num país que se diz o mais católico do mundo, havia um pastor evangélico celebrando um culto com direito a mensagem bíblica e apelo a possíveis conversões.

A presença de um pastor não é de maneira alguma errada. Ela é perfeitamente cabível diante do sentimento religioso das pessoas. O que é no mínimo curioso é a presença dele e o convite se darem por estar a comunidade perfeitamente identificada com esse segmento religioso. O que antes seria, no mínimo uma celebração ecumênica com a presença também de um clérigo católico, naquela ocasião restringiu-se apenas a um representante de uma religião que sempre pensamos estar em segundo lugar em números de fiéis e muito longe de ameaçar a hegemonia da igreja romana, e que ali deixava claro já não ser bem esse o cenário religioso do Brasil. Digno de um estudo antropológico, sociológico ou de qualquer ciência que pudesse explicar que o acontecido não se passava numa escola americana ou inglesa com suas tradições protestantes, mas num país colonizado concominantemente catequizado e cujo primeiro ato formal foi uma missa rezada na chegada dos portugueses por aqui.

Fatos como esse tem nos mostrado o crescimento dessas igrejas evangélicas divididas em diversas denominações, cada uma com nomes mais variados possíveis e encontrando grande número de adeptos entre a população mais carente.

Pessoas desprovidas de assistência que deveria ser dada pelo poder público tais como: moradia digna, saúde, educação, emprego, essas igrejas dão o conforto psicológico, fazendo-as sentirem-se importantes, tendo uma identidade própria. Lá elas são o irmão , a irmã , o obreiro, o diácono, o pastor. Não estão sós, não são mais uns na multidão.

Essa aquisição de uma identidade, de promessas de uma vida melhor, solução de todo tipo de problema de qualquer natureza (financeiro, sentimental, saúde e etc), fazem com que o indivíduo se une ao grupo e passe a ver e pautar sua conduta diante da realidade de acordo com essa filosofia. Uma filosofia maniqueísta, dual, onde a realidade está dividida entre dois pólos antagônicos em todos os aspectos. O mundo e a igreja, o crente e o ímpio, o bem e o mal, Deus e o diabo. É nessa perspectiva que tudo deve ser visto e colocado. Viver nela é que torna tal visão pouco prática e em desarmonia com a realidade. Daí visões distorcidas pelo fanatismo pessoal e os Estados fundamentalistas.

Um outro acontecimento que bem ilustra essa visão dualística é o que um aluno de 13 anos de uma dessas escolas públicas em regiões carentes me trouxe. O aluno narrou uma história que torna bem claro o quanto essas posturas radicais onde não exista uma terceira alternativa, mexe com o cotidiano das pessoas, colocando suas atitudes até em um nível, digamos assim, paranóico, por fugir ao bom senso e ir por uma lógica incompreensível , mas que para eles existe essa lógica em nome de uma fé, de um Deus, de uma escritura.

O garoto contou que sua mãe, adepta de uma dessas igrejas, foi orientada em um dos cultos sobre um brinquedo infantil chamado tamagochi, uma espécie de vídeo-game portátil em formato de bichinho que deveria ser "alimentado", cuidado pela criança que o possuísse através de seus botões que indicavam o que está sendo feito e como o tal bichinho reagia. A orientação dada pelo pastor era que esses tais bichinhos-brinquedos eram coisas do demônio e deveriam ser destruídos, caso os filhos de um dos adeptos o possuíssem. Todos obedeceram à ordem do líder e recolheram em suas casas o tal brinquedo, levando-os à igreja, onde foi quebrado diante de orações e exorcismo.

Pensando nesse fato, me veio a imagem daqueles aviões se chocando contra as torres do World Trade Center. O que há de semelhante entre os dois ocorridos já que as proporções de tais atos não se comparam e por desencadearem acontecimentos de proporções infinitamente distintos e sem nenhum parâmetro de comparação?

O ato de uma dona de casa quebrar um brinquedo e terroristas jogarem aviões em prédios matando milhares de pessoas não podem de forma alguma ser comparados. Os atos se distinguem no próprio ato. Mas existe algo em ambos que são semelhantes e que os torna idênticos e perigosos. O que assim os torna é a leitura do mundo idêntica que faz uma dona de casa evangélica e um terrorista fundamentalista.

Refletindo mais vemos que a forma como ambos vêem a realidade é a mesma, não importando a dimensão do ato. Ambos enxergam o mal da mesma forma e o destroem do mesmo jeito. Aquilo que, supostamente, não é de Deus é do seu opositor, o diabo, e tem de ser eliminado.

Visões como essa aproximam muito essas nossas igrejas evangélicas com o que estamos assistindo no Afeganistão governado por um grupo de fanáticos denominados Talibãs, e que em nome de sua fé, destroem imagens de Budas milenares, não considerando o patrimônio histórico. Proíbem qualquer música ocidental, todas as expressões culturais de um povo, por considerá-las errôneas e contra os princípios de uma religião que vê o pecado em tudo que está em desacordo com suas escrituras.

Nada diferente da visão dessas igrejas evangélicas revelada nas falas de seus pastores e adeptos. "Dançar é pecado", "música do mundo não pode", "carnaval é festa do diabo", e por aí vai.

Uma evidência desse radicalismo e dessa visão demoníaca em tudo está numa reportagem de um jornal de uma dessas igrejas sobre o filme HARRY POTTER. O artigo diz claramente que esse filme ensina às crianças práticas de bruxaria e está a serviço do diabo. É mais uma artimanha dele para desviar as pessoas do caminho de Deus, conclui o artigo.

Isso é apenas um exemplo de como essa visão maniqueísta vê um filme de entretenimento como algo ameaçador. Eles vêem o demônio em músicas populares, que tocadas de trás pra frente, suas letras, segundo eles, tornam-se palavras de louvor a satanás. Quando uma igreja compra um cinema, teatro ou casa de espetáculo e transforma-os em ponto de evangelização há um regozijo dos pastores e membros por ter se fechado mais uma porta do pecado.

E o que dizer da intolerância dessas pessoas com todo o credo que não for o deles. Quantos ataques ao sentimento religioso das pessoas praticantes dos cultos afros e da igreja romana. Os candomblecistas, umbandistas, kardecistas, católicos, e todos que pratiquem uma outra religião que não a evangélica, que,aliás, eles não consideram como religião( eles não têm religião, tem Jesus), são vistos não como filhos de Deus , mas como criaturas, filhos só eles.

Todos esses aspectos e questões devem nos fazer pensar de como seria, e ainda que pareça algo improvável, mas que segundo alguns estudiosos de religião, em 2045 metade da população brasileira será evangélica, uma nação governada por pessoas como essas.

Ainda que tenhamos países em sua maioria protestante, vale ressaltar que são países dentro de outra conjuntura histórica, social e econômica. Uma coisa é ser evangélico Batista, Presbiteriano, Luterano ou Metodista nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha ou qualquer outro de lº mundo com igrejas históricas que remontam à época da reforma e ser evangélico pentecostal ou neopentecostal da Igreja Universal, da Graça ou milhares outras num país de terceiro mundo.

Certamente teríamos algo parecido com o que vemos no Afeganistão e que nos parece tão absurdo, mas que se pensarmos novamente na forma de leitura do mundo que evangélicos daqui e Talibãs islâmicos de lá fazem, veremos que, guardadas as devidas proporções históricas e culturais de nosso povo, veríamos atitudes semelhantes.

Ou alguém pensa que um evangélico, apoiado por uma maioria da população igualmente evangélica e que anseia por um presidente que como eles mesmos definem,"temente a Deus", não traria danos a nossa cultura, nossas expressões populares, nossa produção de conhecimento e de entretenimento?

Paremos para pensar: Num caso como esse, como ficaria nosso Carnaval? Permitiriam essa festa da carne, expressão do demônio? E os filmes, os cinemas? Qualquer que, segundo eles, fizessem apologia à bruxaria, satanismo ou contrariasse algo considerado verdade por eles seria expressamente proibido. E iriam querer eles cinemas abertos? Como? Se eles são os preferidos para virarem igrejas?

E nossas danças, a sensualidade que elas trazem? Seria permitida? Festas, alegrias, tudo isso seria condenado por tratar-se de coisas mundanas. Não que sejam contra a alegria, como eles mesmos dizem, mas toda alegria deve ser em Deus. Portanto, dançar, somente músicas evangélicas. Peças de teatro ou filme, somente aqueles que tivessem como temática assuntos bíblicos ou com mensagens evangélicas num claro proselitismo.

Como ficaria o reveillon nas praias com oferendas a Iemanjá? Para eles o próprio demônio disfarçado para iludir e trazer desgraça às pessoas. Seriam proibidas, pois muitas igrejas na passagem de ano vão à praia fazer seus cultos num claro confronto com as práticas religiosas afros. Claro que a praia é para todos em todos os momentos e ocasiões, mas fica claro na fala dos pastores que o objetivo é o confronto em nome de uma verdade absoluta que não permite outra possibilidade.

Penso na imagem do Cristo Redentor no alto do Corcovado. Com certeza mandariam derrubar, como os Budas de lá. Adorar imagem é pecado. Destruiriam, mas para manter o ponto turístico construiriam uma Bílbia gigante e aberta com algum versículo bíblico.

As universidades e escolas, lugares de produção de conhecimento, como iriam conduzir essa produção quando ela esbarrasse em algo que contrariasse uma verdade bíblica? Uma coisa é certa: Darwin com suas teorias evolucionistas seria proibido de ser ensinado. Ensinaria a criação: Adão e Eva. Aliás, toda produção de conhecimento estaria altamente comprometida já que, é um pensamento comum entre esses evangélicos que muito conhecimento torna o indivíduo soberbo, auto-suficiente e o afasta de Deus

Tais fatos, embora hipotéticos, e esperamos pouco prováveis que um dia se tornem reais, deve, no mínimo, servir-nos de reflexão para algo que nos é bem real e está aí. Presente de forma aguerrida junto às classes populares, às regiões pobres, bolsões de miséria, essas igrejas trazem alento, esperança a essas pessoas, o que não é de forma alguma condenável, pois a priori a religião tem essa função, mas o que se torna preocupante é a capacidade que elas têm de tirar a possibilidade de reflexão, de encerrar as pessoas num mundo de culpa, onde o simples ato de sambar, de mexer o corpo ao ritmo da maior expressão da nossa cultura é considerado atitude condenatória, demoníaca, fator capaz de fazer seu Deus virar-lhe as costas.

Visões distorcidas da realidade, formas pouco evoluídas de ver o mundo e que vão minando a base de uma sociedade, escravizando os indivíduos num mundo mágico, da intolerância, onde o que não é igual a mim, é menos do que eu, está do outro lado, faz a vontade do mal.

Visões como essa significam retrocessos e precisamos estar atentos, conscientes para denunciá-los enquanto é tempo, para que eles nunca calem a nossa voz.

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