Trabalhando como professor da rede pública
do Rio de Janeiro, portanto interagindo com uma clientela de
classe popular, com alunos trabalhadores e filhos de
trabalhadores, e estando comprometido com esse segmento de
aluno, no seu direito básico a uma educação
de qualidade, e entendendo a escola como espaço para
reflexão em todos os aspectos da vida, tenho observado
questões referentes à religiosidade desses alunos
e de suas famílias, trazidas por eles com comentários,
que me fizeram refletir sobre aspectos relacionados à visão
das religiões, mais especificamente no caso, às
igrejas evangélicas, sobre o mundo e a realidade tal qual
ela se apresenta.
O motivo para tal reflexão não
se deu de uma hora para outra. Ela tem se feito em mim a partir
de, como já foi citado acima, questões trazidas
pelos alunos para dentro de sala de aula e que diante dos últimos
acontecimentos terroristas me inspiraram a esse texto que
disserto no momento.
Um dos fatos que primeiro me trouxeram
essa reflexão inicial foi quando, no ano de 1998,
trabalhando numa escola pública de um bairro popular do
município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, ao final
do ano, como é de praxe nas escolas, são feitas
formaturas dos alunos como forma de confraternização
e comemoração pelo término do curso, nesse
caso de 1º grau, onde ao invés de um padre como
seria o normal num país que se diz o mais católico
do mundo, havia um pastor evangélico celebrando um culto
com direito a mensagem bíblica e apelo a possíveis
conversões.
A presença de um pastor não
é de maneira alguma errada. Ela é perfeitamente
cabível diante do sentimento religioso das pessoas. O que
é no mínimo curioso é a presença
dele e o convite se darem por estar a comunidade perfeitamente
identificada com esse segmento religioso. O que antes seria, no
mínimo uma celebração ecumênica com a
presença também de um clérigo católico,
naquela ocasião restringiu-se apenas a um representante
de uma religião que sempre pensamos estar em segundo
lugar em números de fiéis e muito longe de ameaçar
a hegemonia da igreja romana, e que ali deixava claro já
não ser bem esse o cenário religioso do Brasil.
Digno de um estudo antropológico, sociológico ou
de qualquer ciência que pudesse explicar que o acontecido
não se passava numa escola americana ou inglesa com suas
tradições protestantes, mas num país
colonizado concominantemente catequizado e cujo primeiro ato
formal foi uma missa rezada na chegada dos portugueses por aqui.
Fatos como esse tem nos mostrado o
crescimento dessas igrejas evangélicas divididas em
diversas denominações, cada uma com nomes mais
variados possíveis e encontrando grande número de
adeptos entre a população mais carente.
Pessoas desprovidas de assistência
que deveria ser dada pelo poder público tais como:
moradia digna, saúde, educação, emprego,
essas igrejas dão o conforto psicológico,
fazendo-as sentirem-se importantes, tendo uma identidade própria.
Lá elas são o irmão , a irmã , o
obreiro, o diácono, o pastor. Não estão sós,
não são mais uns na multidão.
Essa aquisição de uma
identidade, de promessas de uma vida melhor, solução
de todo tipo de problema de qualquer natureza (financeiro,
sentimental, saúde e etc), fazem com que o indivíduo
se une ao grupo e passe a ver e pautar sua conduta diante da
realidade de acordo com essa filosofia. Uma filosofia maniqueísta,
dual, onde a realidade está dividida entre dois pólos
antagônicos em todos os aspectos. O mundo e a igreja, o
crente e o ímpio, o bem e o mal, Deus e o diabo. É
nessa perspectiva que tudo deve ser visto e colocado. Viver nela
é que torna tal visão pouco prática e em
desarmonia com a realidade. Daí visões distorcidas
pelo fanatismo pessoal e os Estados fundamentalistas.
Um outro acontecimento que bem ilustra
essa visão dualística é o que um aluno de
13 anos de uma dessas escolas públicas em regiões
carentes me trouxe. O aluno narrou uma história que torna
bem claro o quanto essas posturas radicais onde não
exista uma terceira alternativa, mexe com o cotidiano das
pessoas, colocando suas atitudes até em um nível,
digamos assim, paranóico, por fugir ao bom senso e ir por
uma lógica incompreensível , mas que para eles
existe essa lógica em nome de uma fé, de um Deus,
de uma escritura.
O garoto contou que sua mãe,
adepta de uma dessas igrejas, foi orientada em um dos cultos
sobre um brinquedo infantil chamado tamagochi, uma espécie
de vídeo-game portátil em formato de bichinho que
deveria ser "alimentado", cuidado pela criança
que o possuísse através de seus botões que
indicavam o que está sendo feito e como o tal bichinho
reagia. A orientação dada pelo pastor era que
esses tais bichinhos-brinquedos eram coisas do demônio e
deveriam ser destruídos, caso os filhos de um dos adeptos
o possuíssem. Todos obedeceram à ordem do líder
e recolheram em suas casas o tal brinquedo, levando-os à
igreja, onde foi quebrado diante de orações e
exorcismo.
Pensando nesse fato, me veio a imagem
daqueles aviões se chocando contra as torres do World
Trade Center. O que há de semelhante entre os dois
ocorridos já que as proporções de tais atos
não se comparam e por desencadearem acontecimentos de
proporções infinitamente distintos e sem nenhum
parâmetro de comparação?
O ato de uma dona de casa quebrar um
brinquedo e terroristas jogarem aviões em prédios
matando milhares de pessoas não podem de forma alguma ser
comparados. Os atos se distinguem no próprio ato. Mas
existe algo em ambos que são semelhantes e que os torna
idênticos e perigosos. O que assim os torna é a
leitura do mundo idêntica que faz uma dona de casa evangélica
e um terrorista fundamentalista.
Refletindo mais vemos que a forma como
ambos vêem a realidade é a mesma, não
importando a dimensão do ato. Ambos enxergam o mal da
mesma forma e o destroem do mesmo jeito. Aquilo que,
supostamente, não é de Deus é do seu
opositor, o diabo, e tem de ser eliminado.
Visões como essa aproximam muito
essas nossas igrejas evangélicas com o que estamos
assistindo no Afeganistão governado por um grupo de fanáticos
denominados Talibãs, e que em nome de sua fé,
destroem imagens de Budas milenares, não considerando o
patrimônio histórico. Proíbem qualquer música
ocidental, todas as expressões culturais de um povo, por
considerá-las errôneas e contra os princípios
de uma religião que vê o pecado em tudo que está
em desacordo com suas escrituras.
Nada diferente da visão dessas
igrejas evangélicas revelada nas falas de seus pastores e
adeptos. "Dançar é pecado", "música
do mundo não pode", "carnaval é festa do
diabo", e por aí vai.
Uma evidência desse radicalismo e
dessa visão demoníaca em tudo está numa
reportagem de um jornal de uma dessas igrejas sobre o filme
HARRY POTTER. O artigo diz claramente que esse filme ensina às
crianças práticas de bruxaria e está a
serviço do diabo. É mais uma artimanha dele para
desviar as pessoas do caminho de Deus, conclui o artigo.
Isso é apenas um exemplo de como
essa visão maniqueísta vê um filme de
entretenimento como algo ameaçador. Eles vêem o demônio
em músicas populares, que tocadas de trás pra
frente, suas letras, segundo eles, tornam-se palavras de louvor
a satanás. Quando uma igreja compra um cinema, teatro ou
casa de espetáculo e transforma-os em ponto de evangelização
há um regozijo dos pastores e membros por ter se fechado
mais uma porta do pecado.
E o que dizer da intolerância
dessas pessoas com todo o credo que não for o deles.
Quantos ataques ao sentimento religioso das pessoas praticantes
dos cultos afros e da igreja romana. Os candomblecistas,
umbandistas, kardecistas, católicos, e todos que
pratiquem uma outra religião que não a evangélica,
que,aliás, eles não consideram como religião(
eles não têm religião, tem Jesus), são
vistos não como filhos de Deus , mas como criaturas,
filhos só eles.
Todos esses aspectos e questões
devem nos fazer pensar de como seria, e ainda que pareça
algo improvável, mas que segundo alguns estudiosos de
religião, em 2045 metade da população
brasileira será evangélica, uma nação
governada por pessoas como essas.
Ainda que tenhamos países em sua
maioria protestante, vale ressaltar que são países
dentro de outra conjuntura histórica, social e econômica.
Uma coisa é ser evangélico Batista, Presbiteriano,
Luterano ou Metodista nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha
ou qualquer outro de lº mundo com igrejas históricas
que remontam à época da reforma e ser evangélico
pentecostal ou neopentecostal da Igreja Universal, da Graça
ou milhares outras num país de terceiro mundo.
Certamente teríamos algo parecido
com o que vemos no Afeganistão e que nos parece tão
absurdo, mas que se pensarmos novamente na forma de leitura do
mundo que evangélicos daqui e Talibãs islâmicos
de lá fazem, veremos que, guardadas as devidas proporções
históricas e culturais de nosso povo, veríamos
atitudes semelhantes.
Ou alguém pensa que um evangélico,
apoiado por uma maioria da população igualmente
evangélica e que anseia por um presidente que como eles
mesmos definem,"temente a Deus", não traria
danos a nossa cultura, nossas expressões populares, nossa
produção de conhecimento e de entretenimento?
Paremos para pensar: Num caso como esse,
como ficaria nosso Carnaval? Permitiriam essa festa da carne,
expressão do demônio? E os filmes, os cinemas?
Qualquer que, segundo eles, fizessem apologia à bruxaria,
satanismo ou contrariasse algo considerado verdade por eles
seria expressamente proibido. E iriam querer eles cinemas
abertos? Como? Se eles são os preferidos para virarem
igrejas?
E nossas danças, a sensualidade
que elas trazem? Seria permitida? Festas, alegrias, tudo isso
seria condenado por tratar-se de coisas mundanas. Não que
sejam contra a alegria, como eles mesmos dizem, mas toda alegria
deve ser em Deus. Portanto, dançar, somente músicas
evangélicas. Peças de teatro ou filme, somente
aqueles que tivessem como temática assuntos bíblicos
ou com mensagens evangélicas num claro proselitismo.
Como ficaria o reveillon nas praias com
oferendas a Iemanjá? Para eles o próprio demônio
disfarçado para iludir e trazer desgraça às
pessoas. Seriam proibidas, pois muitas igrejas na passagem de
ano vão à praia fazer seus cultos num claro
confronto com as práticas religiosas afros. Claro que a
praia é para todos em todos os momentos e ocasiões,
mas fica claro na fala dos pastores que o objetivo é o
confronto em nome de uma verdade absoluta que não permite
outra possibilidade.
Penso na imagem do Cristo Redentor no
alto do Corcovado. Com certeza mandariam derrubar, como os Budas
de lá. Adorar imagem é pecado. Destruiriam, mas
para manter o ponto turístico construiriam uma Bílbia
gigante e aberta com algum versículo bíblico.
As universidades e escolas, lugares de
produção de conhecimento, como iriam conduzir essa
produção quando ela esbarrasse em algo que
contrariasse uma verdade bíblica? Uma coisa é
certa: Darwin com suas teorias evolucionistas seria proibido de
ser ensinado. Ensinaria a criação: Adão e
Eva. Aliás, toda produção de conhecimento
estaria altamente comprometida já que, é um
pensamento comum entre esses evangélicos que muito
conhecimento torna o indivíduo soberbo, auto-suficiente e
o afasta de Deus
Tais fatos, embora hipotéticos, e
esperamos pouco prováveis que um dia se tornem reais,
deve, no mínimo, servir-nos de reflexão para algo
que nos é bem real e está aí. Presente de
forma aguerrida junto às classes populares, às
regiões pobres, bolsões de miséria, essas
igrejas trazem alento, esperança a essas pessoas, o que não
é de forma alguma condenável, pois a priori a
religião tem essa função, mas o que se
torna preocupante é a capacidade que elas têm de
tirar a possibilidade de reflexão, de encerrar as pessoas
num mundo de culpa, onde o simples ato de sambar, de mexer o
corpo ao ritmo da maior expressão da nossa cultura é
considerado atitude condenatória, demoníaca, fator
capaz de fazer seu Deus virar-lhe as costas.
Visões distorcidas da realidade,
formas pouco evoluídas de ver o mundo e que vão
minando a base de uma sociedade, escravizando os indivíduos
num mundo mágico, da intolerância, onde o que não
é igual a mim, é menos do que eu, está do
outro lado, faz a vontade do mal.
Visões como essa significam
retrocessos e precisamos estar atentos, conscientes para denunciá-los
enquanto é tempo, para que eles nunca calem a nossa voz.