UMA HISTÓRIA DE AMOR
Kelânia Freire Martins Mesquita*


Em uma família de classe média, em 1974, nasci carregando a responsabilidade de única menina de três filhos de um casal católico. Tão natural quanto respirar foi crer na existência de Deus sem nunca ousar colocar em dúvida tal crença, não porque fosse uma criança sem curiosidades, senão simplesmente porque não se duvida do que se supõe natural desde sempre.
Cresci. Entrei na universidade e ganhei o meu primeiro grande amigo que seria para mim uma das pessoas que mereceriam minha admiração e respeito até os dias de hoje. Lembro-me muito bem um diálogo que tivemos já quando nossa amizade estava consolidada. Havíamos recebido as notas da última prova de química analítica quantitativa. O professor era um terror e eu e o meu amigo travávamos uma saudável batalha para provar quem era o primeiro da turma. Conferimos nossas notas e eu, automaticamente, proferi uma das frases que repetia sem nem ao menos me dar conta do seu significado: "Graças a Deus!" Gil - o meu amigo, me olhou nos olhos e disse: "Graças a Deus não, graças a você!"
Fiquei perplexa. Minha primeira grande decepção com o meu amigo. Ele era ateu, desde criancinha! Só tinha duas alternativas: me afastaria dele e me livraria de conviver com um ateu ou simplesmente fingiria que o ateu não era a mesma pessoa tão humana, amiga, verdadeira e leal que eu já conhecia há dois anos. Fiquei com a segunda alternativa.
No mesmo ano, cursando Física III, conheci um professor que me impressionava muito pela sua didática em sala de aula e pela sua profunda capacidade de comunicar suas idéias por mais complicadas que parecessem a princípio. Todas as semanas ele nos encomendava um tema que deveria ser mais profundo do que o que se exigia em sala de aula, ele costumava chamar essa técnica de "aprofundamento", simples e muito eficaz.
O primeiro tema em que eu deveria me aprofundar para em seguida discutir minhas impressões com ele, a portas fechadas, sem a presença dos demais, era sobre Efeito Fotoelétrico.
Concluídas duas horas de discussões, ele abriu um sorriso e disse: "Muito bem, Kelania!" Ao que eu respondi, outra vez automaticamente: "Graças a Deus!". "Você estudou?" Perguntou-me o professor, para minha surpresa, afinal, eu achei que havia provado que sim.
Diante do meu espanto, ele continuou com bastante clareza: "Você não precisou dele, entenda que nenhuma oração ou vela iria te permitir adquirir os conhecimentos que você provou que obteve. Seja objetiva, explore sua inteligência, mas não tenha pressa em obter respostas para tudo e em acreditar".
Hoje, olho para trás e percebo que as duas lições que recebi desses dois amigos me fizeram buscar minhas próprias respostas e principalmente me fizeram compreender que somos seres racionais e como tais devemos agir. Esses foram os primeiros indícios do surgimento do grande amor que hoje alimento pela ciência.
Uma parte importante desse meu amor nasceu, quando ganhei uma percepção clara do quão benéfica e eficaz é a inteligência quando tratamos de aplicá-la em prol do bem comum. Nessa busca passei a fazer parte de um grupo de pessoas que se sentem preocupadas com o fato de conviverem diariamente com algo que contém uma forte carga de desvinculação com a realidade, como são os dogmas religiosos; a crença no mundo fantástico e o falso moralismo que permeia e, pior, norteia a vida de milhões de pessoas no mundo.
É difícil para um cético ver a sociedade caminhando, dia após dia, em direção a uma forma de vida que condiciona o ser humano a crer sem nenhuma necessidade de buscar, de tentar descobrir, sem uso de percepções extra-sensoriais, sendo esta a única forma de manter contato com qualquer fenômeno ou entidade não natural, a realidade.
O mundo fantástico, da literatura fantástica, como o Senhor dos Anéis, por exemplo, é uma alegoria adequada para tratar os mais diversos temas ligados a moralidade, amizade, conceitos de bem e mal, luta, perseverança, medos, coragem, atitude, ou seja, temas ligados essencialmente a esse conjunto de "normas éticas" desejáveis para o desenvolvimento sadio em sociedade. Da mesma forma, poderíamos enxergar a bíblia. O problema está no fato deste livro ser tratado não como uma alegoria fantástica, mas como um guia de verdades absolutas que devem nortear a vida das pessoas, mesmo com todas as contradições que apresenta. Aí reside, penso, a preocupação da maioria de livres pensadores, que não encontra a utilidade de uma formação religiosa para crianças e jovens, e inclusive a vê como muito prejudicial porque cria as grandes contradições que em geral permeiam o resto de suas vidas.
Quando estamos falando em educação formal, a escolar, tudo ganha proporções ainda maiores. Supõe-se que a escola não é o lugar para propagar dogmas. Formação religiosa como máximo, deveria ser algo próprio das famílias e nunca de instituições formais de educação.
Hoje, em minhas aulas de Filosofia da Ciência na Faculdade de Ciências Exatas e Naturais onde tenho o prazer de conviver com o meu antigo professor de Física III, pergunto sempre aos meus estudantes, um a um: você já pensou no porque de sua religião, e somente a sua e seu Deus, representarem o que existe de correto e verdadeiro, apesar de existirem milhares de outras religiões espalhadas pelo mundo, cada uma delas com os seus deuses e com crentes que crêem tanto quanto você, ou mais?
Faço essa pergunta porque teria agradecido muito se alguém a tivesse feito a mim nesses momentos. Nós não temos uma educação formal que estimule a busca. Se as aulas de religião abordassem tal tema como parte da formação cultural do indivíduo, significaria que os estudantes teriam contato com um número bastante razoável de visões religiosas. Se nessas aulas se abordasse o panteísmo, o monoteísmo e o politeísmo com a mesma eficácia e seguindo padrões de estímulo comparativo, provavelmente eu não teria escrito esse texto.
O cético não é contra o conhecimento e sim contra o doutrinamento nesse conjunto de regras que desestimula o senso crítico.

*Doutoranda em CTS - Ciência, Tecnología e Sociedade pela UNIOVI / Espanha.
Professora de Filosofia da Ciência e Metodología do Ensino de Química da UERN/[email protected]


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