Rádio Popolare de Milão (revista Imprensa - fevereiro de 2000)

Uma experiência italiana que deveria inspirar a discussão sobre rádios comunitárias

João Paulo Chaleaux Roque

A Radio Popolare de Milão existe há 22 anos, na Itália. Em todo esse tempo, não passou um dia dentro da lei. Mas também não deixou um dia de ir ao ar entrevistando políticos, ministros e juizes. Fundada em 1977 por intelectuais e sindicalistas de esquerda, a Radio Popolare tem hoje 20 emissoras associadas que funcionam 24 horas ininterruptas, sempre com programas informativos, tanto estritamente jornalísticos quanto com documentários musicais. É regra da radio não repetir notícias.Essa é a receita que colocou uma emissora moldada em forma completamente alternativa em segundo lugar na audiência da Lombardia, a região norte da Itália, onde concentram-se 8,5 milhões de pessoas.

Como outras 30 emissoras de Milão, a Popolare não encontra suporte para sua existência na lei. O que mantém seu sinal no ar são os ouvintes e anunciantes. Em toda região Norte da Itália, é apontada como referência para intelectuais e jornalistas em busca de interpretações mais isentas dos fatos.

A Itália vê sua proposta de regulamentação de rádios e TVs tramitar há 20 anos no Parlamento, sem conseguir ser votada.

Estatutariamente, a Radio Popolare peneira seus anunciantes e conta com um grupo de nada menos que 15 mil pessoas físicas doadoras espontâneas de U$ 10 mensais para manter o sinal no ar.

Em uma época tão complicada de dribles em dificuldades orçamentárias e falta de anunciantes, a Radio Popolare dá-se ao luxo de recusar anúncios. A Fiat não anuncia. A Parmalat não anuncia. Quem procura pelos dois minutos de comerciais que vão ao ar só a cada meia hora de programação são editoras de livros, produtoras de discos e outros anunciantes ligados ao mundo das artes e da intelectualidade européia.

O público é, economicamente e culturalmente, classificado como "A". Pelas contas da própria emissora, 80% de seus ouvintes declaram-se afinados com as teorias políticas ditas de esquerda. Desse número, 40% se alto-intitulam de "ultra-esquerda." Na definição da própria Radio, ela representa a "esquerda plural."

É um público fiel. A prova cabal de fidelidade transcende a sintonia da Popolare no rádio do carro ou em casa.

Parte da renda que mantém a emissora, além de anunciantes selecionados e doações espontâneas, são as festas e os eventos promovidos pela própria rádio. Além de estar no ar, ela ainda edita livros e CDs e vende produtos ligados a sua proposta em pontos estratégicos espalhados por todo o país.

A história da Rádio Popolare remonta essa tendência. No ano de sua criação, 1977, era ela quem cobria as greves operárias. A Popolare ocupava a única freqüência onde o ouvinte poderia encontrar um trabalhador falando. A filosofia que ganhou o público era batizada de "Microfone Aberto."

"Nós tínhamos que tentar mobilizar a opinião pública, de forma modestíssima. Estávamos contra uma campanha de guerra massiva, total, completa, absoluta feita pelas rádios e televisão, sobretudo pela televisão", relembra José Luis Del Roio, brasileiro que desde 1970 vive em Milão, na Itália.

Del Roio deixou o Brasil perseguido pela ditadura. Membro da Aliança Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighela, levou consigo o maior arquivo da imprensa operária brasileira da época para Milão.

Quando levados para a Europa por Del Roio e Maurício Martins de Melo, os arquivos da imprensa operária brasileira ficaram na maior biblioteca e arquivo da Europa, da História do Movimento Social.

Del Roio conta que ele ficou muito bem guardado, "porque ficou junto com os manuscritos econômicos do Marx, aqueles escritos à mão, ficou junto com as cartas do Lênin, aquelas verdadeiras escritas à mão. Ficou junto, por exemplo, do arquivo de Robespierre, embaixo da bandeira da Comuna de Paris, a verdadeira, a bandeira da Comuna de Paris!"

Esses arquivos formaram por muito tempo o Asmob (Arquivo Histórico do Movimento Operário Brasileiro), da sigla original italiana. Foram levados a salvo para a Itália com a condição auto imposta pelos seus salvadores de que, assim que possível, voltassem imediatamente ao Brasil. São esses documentos que hoje formam o arquivo da Unesp, na Praça da Sé, em São Paulo.

Assim que chegou a Itália, Del Roio foi convidado a falar da situação política da América Latina na Radio Popolare. Cativou o público com seu italiano com sotaque brasileiro e até hoje é um dos 100 correspondentes da emissora espalhados por todo mundo.

Na época, conta: "O Movimento, uma coisa um pouco genérica que se chamava, 'O Movimento' se achava não representado nos meios de comunicação, que naquele momento eram realmente controlados pela Democracia Cristã, que era o partido do governo. As poucas rádios que não eram do governo eram direta ou indiretamente controladas. Ou seja, você não tinha uma informação compatível."

A Radio Popolare teve então seus pilares discutidos a partir do nada. Pessoas pouco especializadas ou com pouco conhecimento sobre a parte técnica de uma rádio colocaram a mão na massa a partir do começo mesmo: "Literalmente a partir do zero, vamos criar uma rádio? Tá bom, o que é uma rádio? Uma rádio é uma coisa que tem que falar de um lado e escutar do outro? 'Tô' exagerando um pouco mas era quase isso", lembra Del Roio.

O começo da Popolare registra um jornalismo participativo, muitas vezes militante e com uma história contornada pela ligação estreita com os sindicatos italianos de trabalhadores.

"Uma vez teve uma ocupação de casa porque o aluguel era muito caro. Você ia, praticamente ocupava junto. E descrevia a ocupação. Tinha que ter uma certa força também, houve muitos choques violentos com a polícia, você tinha que estar lá no meio, cheirando gás lacrimogêneo. E é claro que era uma rádio de informação, mas era um jogo complicado, sim, você informa mas você tem uma posição", fala Del Roio remontando a história da Popolare.

Durante a entrevista, Del Roio interrompeu uma frase no meio para passar o boletim ao vivo para Milão. Na outra ponta da linha estava Bruna Miorelli, uma das fundadoras da Radio. O programa para o qual Del Roio falava chama-se "PipLine", que pode ser mal traduzido como Linha Popular, ou pode também fazer referência num trocadilho com os dutos que transportam petróleo no meio do deserto, como um canal de notícias no meio de um Saara de desinformação.

O boletim passado deu as últimas informações sobre a greve dos caminhoneiros no Brasil. Del Roio respondeu as perguntas da âncora sobre a privatização das estradas e demais serviços públicos, sobre as exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI) e a relação com essa manifestação, além das informações que contextualizavam o assunto para o público italiano.

O tom do comentário era de crítica ao presidente brasileiro e ao modelo neoliberal seguido por FHC. Para ilustrar, Del Roio fazia referência aos governantes europeus. Ao todo, foram mais de dez minutos no ar ao vivo só sobre o Brasil.

Ao contrário do que muitas agências internacionais fazem, a Radio Popolare tomou a opção de registrar um pouco mais a fundo os acontecimentos na América Latina, dispensando a visão folclórica sobre nádegas, futebol e crimes bizarros.

A qualidade da Radio pode também ser comprovada pelo número de escritores, músicos e intelectuais italianos que falam no ar com freqüência. Dario Fo, por exemplo, foi acordado pela reportagem da Radio Popolare já no ar. Recebeu em primeira mão a notícia de que era vencedor do Prêmio Nobel de Literatura no ano de 97. "Cazzo!", respondeu do outro lado da linha.

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