* *A S   R A D I O S * *




SONOPLASTIA

Por Luiz Maranhão Filho


Nos primórdios

           O Som, no teatro, começou como um mero acessório. A missão acontecia nos bastidores porque não fora instalado ainda o sistema de alto-falantes nas casas de espetáculo.

           Quando muito, uma cigarra roufenha advertia os espectadores de que a cessão ia começar. Mas, para abrir as encenações teatrais, o Brasil acolheu, por muitos anos, uma herança francesa que os excursionistas trouxeram para o país, através de grupos de óperas e operetas: as "Pancadas de Molière".

           Subentende-se que Jean Baptiste Pouquelin Molière usava o processo nas suas excursões pela França, mas fica a dúvida a respeito do que fazia William Shakespeare, com o seu mambembe, pelo Reino Unido, para chamar a atenção do público.

           O espetáculo vai começar!

           "São três grupos distintos de pancadas no assoalho do palco para abrir o velário, ou seja, o pano-de-boca do grande proscênio. A primeira começa lenta, uma batida atrás da outra, uma aceleração no rítmo, uma parada súbita e, depois do suspense, o toque isolado - a 1a. Chamada. Passa-se um tempo e vem a segunda seqüência, no mesmo formato.

           A suspensão e dois toques no chão. É a 2a. chamada. Novo espaço de tempo, nova seqüência em crescendo e a 3a. e última chamada. Escurecem-se as luzes e as cortinas deverão ser abertas para começar o espetáculo.

           O Som fez a sua parte.

           A partir daí, a responsabilidade fica a cargo de um profissional que só age nos bastidores e que deve acompanhar o libreto da peça encenada para produzir as intervenções do som. No texto da obra, ele coloca determinados sinais que deverão ser as suas "deixas" para produzir "pancadas na porta" na entrada de atores ou acionar "sinetas" quando alguém bate ao portão, apertar botões de um quadro eletrificado onde se ouvem "cigarras", "dim-com", "trim-trim" de telefones e demais ruídos contidos numa tábua de sons previamente instalados e identificados.

           Este personagem, de uma importância maiúscula no êxito ou fracasso do espetáculo, é o Contra-regra. A sua denominação se deriva - é o que concluímos - da disposição de "contrariar a ordem natural das coisas". Se o tiro que sai de um revólver, acionado em cena, não mata, de fato, o ator que se posta diante da arma, é porque o estampido produzido, foi obra do profissional nos bastidores e a fumaça expelida pela arma é mero produto de espoleta colocada no artefato.

           Há um imenso anedotário gerado em função das falhas dessas armas, relatado pelo saudoso e veterano Olavo de Barros, egresso dos palcos cariocas para a "contra-regra" da Rádio Mayrink Veiga, do Rio de Janeiro, em edição de livro já esgotado.

           "Miserável, escapaste do fogo da minha arma, mas morrerás na ponta da minha faca".

           E o tiro que havia falhado nos bastidores, dispara enfim.

           E o ator caí em cena, atingido por um tiro... de punhal. Preventivamente levado à cena pelo ator experiente. Afinal, o revólver já havia falhado em outras encenações.

           O teatro produzido no início do século XX, pelo menos a partir de 1920, teria dado origem a "contra-regras" inventivos e inteligentes. Um deles, anonimamente esquecido pela História, descobrira que uma folha de flandre, agitada nos bastidores, produzia a ventania e os relâmpagos necessários a criar o clima para a crucificação de Cristo no legendário espetáculo da "Paixão", onde os timbales da orquestra complementavam a trovoada do Calvário.

           Daí surgiram as cascas do coco nordestino que, bem raspadas e aplainadas, desde que acionadas numa mesa bem plana, reproduziam o galope e trote de cavalos que deveriam sugerir a chegada dos cavaleiros à cena.

           Os inventos se sucederam. Enquanto o iluminador do espetáculo contribuía com o piscar de luzes azuis (nas tempestades) e vermelhas (nos incêndios) o contra-regra, com uma boa bacia de flandre e um grande regador de jardins produzia a chuva e com um caderno de folhas de papel celofane, bem amassadas, dava a idéia do crepitar das chamas na fogueira.

           O interessante, em todo esse processo de ilusão, era o intercâmbio. Ninguém escondia os seus segredos. Ao se cruzar companhia que vinha do sul, com a "troupe" que subia do norte, em um navio ITA da Costeira, os amigos trocavam figurinhas.

           "Lembra-se daquela peça de Oduvaldo que falava da chegada do rebanho de carneirinhos? Pois encontrei em Caruaru, uma coleção de chocalhos, de diferentes tons, que resolve o problema".

           A dica valiosa ainda subsiste no som brasileiro do século XXI. O teatro foi a grande "ouverture" da sonoplastia no Brasil. Produziu - ou exigiu - uma Caixa de Ruídos, na realidade um armário, de portas, fechaduras, dobradiças, sirenes movidas por manivelas, tubos de madeira que chegavam a reproduzir apitos de trens, navios, fábricas, sinos de igrejas, que constituíam uma parafernália por trás dos cenários e depois das telas, para levar o som ao espectador, numa época em que o teatro era apenas declamado e o cinema rigorosamente mudo. Tais caixas de som devem ser hoje, apenas peças de museu. Mas onde estarão à vista das novas gerações?

           No nosso ingresso no rádio - 1940, aos sete anos - a contra-regra ocupava uma longa mesa no estúdio e um assoalho ao chão. Ali se produziam os toques, as sinetas, os ruídos de pratos, talheres, água despejada em bacias, apitos, raspagens em lixas de madeira, marteladas, tiros, quebra de vidros, enquanto no chão, uma caixa de passos ia desde as pisadas no assoalho às caminhadas em areia, brita, folhas, pedras quebradas e... o inimaginável! O produtor Telga de Araújo, no Rádio Club de Pernambuco, pediu ao contra-regra, o caminhar suave de uma "rosa apaixonada" ao encontro do cravo no jardim. E os passos surgiram de um estalar de dedos sincopado, por obra e graça de Jomar Austregésilo, o contra-regra de plantão.

           Era, de fato, um clima romântico que habitava o estúdio, à espera do efeito. Afinal, o Rádio ainda não tinha gravadores para tanto. Vale a lembrança do desaparecimento do carrinho de boneca da irmã Marietinha, quando nosso pai precisou do ranger do carro-de-boi em uma novela de Amaral Gurgel, vivida nos engenhos do nordeste. O berreiro da irmã mais moça teve que ser compensado por um presente mais valioso do pai sentimental que, apesar de tudo, não abria mão dos seus primórdios no rádio pernambucano.

           Cumpre-nos nessa história um outro troféu. Boneca molhada no lavatório revelou, em seu ventre, um artefato que reproduzia o nhem-nhem. Arrancado o tubo, fez sucesso na PRA-8 toda vez que foi preciso o choro da criança. A irmã ganhou boneca nova e o "cirurgião" que vos fala, ao extrair do ventre o "chorador", ficou famoso nos bastidores do rádio pela sua inventiva. Quem sabe se, na atual geração, outros meninos levados possam ingressar nesse time de inventores de som?

           Muita gente se envolveu no precesso criativo, sem que se possa atribuir pioneirismo a sonoplasta específico. Contam até que Edmo do Vale, responsável pelo setor na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, recorreu, algumas vezes, a imitadores de vozes de animais que haviam surgido na Rádio Tupi, no programa de calouros de Ari Barroso, o auge da época. Pode-se confirmar isso, por exemplo, nas originais gravações da Dupla Zoológica que teve o seu tempo de glória no rádio carioca.

           Não demorou para que o artesão desse a sua contribuição com a feitura de rústicas peças que produziam os sons: um dedal de metal, ligado a um canudo e contendo água, gerava, quando soprado, o canto do canário e o seu trinado. Hoje, o camelô vende nas ruas a peça em matéria plástica. A ocarina, um instrumento feito de barro pelos oleiros, ingressou no elenco. Ainda hoje, a ocarina é vendida nos mercados regionais - Bahia, para uma citação - e faz a alegria das crianças e adultos, até mesmo para executar o Hino Nacional.

           Aliás, situação inédita vivemos no acampamento da CHESF, em Itaparica, quando o pavilhão nacional foi hasteado ao som do hino, executado por uma Banda de Pífanos, vinda de Conceição das Crioulas (Salgueiro-PE) para animar a festa.

           Não havia Filarmônica na localidade. Desafios surgiram mas não venceram os contra-regras. Era preciso fazer marchar um batalhão de soldados. Foi bastante um bastidor de madeira - 40 cm x 40 cm - uma série de tocos de 5 cm de altura, obtidos com o corte de cabos de vassouras e atravessados e perfurados por um barbante que os alinhava em filas de cinco.

           O chacoalhado em cima da mesa gerava a marcha e o "alto". Também um instrumento típico da Ciranda nordestina teve a sua parte. "Caracaxá" ou "Ganzá" era feito de um tubo de metal, recheado com pedrinhas ou caroços de feijão e revelava uma versatilidade ímpar. Dependia da habilidade do tocador. No caso, o contra-regra. Até fazia a chegada do trem na estação. E a bomba de Flit completava o efeito.

           A orquestra inteira era convocada para ajudar. O Tarol, essencial no ruflo do trapézio do circo ou no enforcamento de Tiradentes. O Piston para o toque de silêncio. O violino para inúmeras intervenções, o Clarinete para fazer a risada da Bruxa de Branca de Neve, a Tuba, a Requinta, o Contra-baixo para ranger as portas. Enfim, um exército a serviço do Contra-regra, considerando-se que cada Rádio AM tinha orgulho de possuir a sua orquestra. Vale destacar que a união entre o Produtor - que sempre foi a designação do "escritor do rádio", o futuro Autor-Roteirista, batismo dado pela legislação - e o Contra-regra era perfeita: consultas mútuas ou pedidos prévios.

           Por isso é que esse artista anônimo, essencialmente de estúdio, não é e não pode ser confundido com o Sonoplasta, surgido um tempo depois quando a mídia sonora ganhou foros de arte e dramaturgia. Dele, falaremos depois, por ter também o seu destaque.

           Conta-regra no cinema teve curta duração, porque o som na própria película chegou para ficar. Desestimulou o cinema mudo, encerrou vários ciclos, desempregou até os pianistas que faziam a sua parte, interpretando partituras ao vivo nos primórdios. Mesmo assim, os que fizeram sons por trás das telas, eram egressos dos teatros.

           O Rádio foi o seu maior desafio. E nos tempos correntes, nas experimentações acadêmicas, nas variações da indústria fonográfica, o Contra-regra não pode falhar. Nem ser esquecido, como ocorre hoje com certos ensinamentos disciplinares que abordam o assunto de raspão. Seja por desconhecimento, seja por incompetência... de cátedra.

           Luiz Beltrão Cavalcanti de Albuquerque Maranhão Filho, o nosso querido amigo Luiz Maranhão Filho, reside em Olinda-PE, e-mail [email protected]




Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Olinda-PE - AESO
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP,




Colaboração de Ivan Dorneles Rodrigues - PY3IDR
e-mail:[email protected]  



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Publicado em 01 de setembro de 2006
Atualizado em 01 de setembro de 2006

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