Sexta-feira, 3 de dezembro de 1999
   

POR UMA INTERNACIONAL DA ESPERANÇA

 

Por Giulio Girardi

 

.Exposição apresentada no dia 30/07/96, na mesa V (Povos Indígenas) do Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, perante a comunidade tzeltal de La Garrucha e os participantes do encontro em sessão plenária.


Companheiras e companheiros do Comando!
Irmãs, irmãos, irmãzinhas e irmãozinhos de La Garrucha!
Irmãs e irmãos do Encontro Intercontinental!
Tomar consciência do momento histórico em que vivemos.
Considero importante que tomemos consciência do momento histórico que os irmãos Zapatistas têm nos chamado a vivenciar neste encontro intercontinental. Para fazê-lo, temos que inseri-lo na história do movimento indígena, não só chiapaneco e mexicano, mas continental e mundial, que, no meu entendimento, representa o acontecimento mais significativo e mais prometedor deste fim de milênio. Um acontecimento chamado a marcar de maneira determinante a orientação do Terceiro Milênio.
Para todos os mexicanos conscientes, está claro que a insurreição Zapatista divide a história moderna do México em duas partes: antes e depois do primeiro de janeiro de 1994. Além disso, eu me pergunto, e pergunto a vocês, se a explosão do movimento indígena continental e mundial da última década não irá dividir em duas partes a história moderna do continente americano e, quem sabe, do mundo inteiro.
Então, inserir o nosso encontro na história do movimento indígena mundial significa inseri-lo na história do mundo. Significa interrogar-nos sobre o papel dos povos indígenas na avaliação da civilização que os excluiu e na construção de um mundo novo onde caibam todos os mundos.
Os cinco Aguascalientes que acolhem o encontro intercontinental, construídos em comunidades indígenas e por comunidades indígenas, com o apoio da sociedade civil mexicana, são o símbolo e o anúncio da nova história que hoje começamos e para a qual o nosso encontro intercontinental pretende contribuir. Pela primeira vez em sua história e na história do mundo, os povos indígenas projetam e constroem autonomamente grandes centros de reunião e de mobilização política e cultural. Pela primeira vez em sua história e na história do mundo, os povos indígenas de Chiapas convocam seus irmãos de todo o país, colocando a urgência de construir entre eles uma nova unidade e, portanto, uma nova força histórica. Pela primeira vez em sua história e na história do mundo, os indígenas convocam todos os povos do mundo com o objetivo de promover uma solene condenação da civilização do mercado e da morte e de planejar a construção de uma nova civilização na qual todos tenham o direito de viver, de pensar, de amar, de cantar e de sonhar.
A resposta de uma multidão tão grande e entusiasta que recebeu o chamado Zapatista significa um reconhecimento universal da autoridade moral e política do movimento e, particularmente, dos povos indígenas que o constituem; significa que reconhecemos o alcance universal de sua mobilização e de sua perspectiva histórica, que reconhecemos a eles um papel conscientizador para com toda a humanidade; que reconhecemos a contribuição que os povos indígenas, na atual crise de valores e certezas, podem oferecer à construção de uma nova civilização.
A tarefa da nossa mesa.
Dentro desta perspectiva histórica, exigente e exaltante, a nossa mesa tem uma tarefa fundamental. Parece-me que a nossa tarefa não é a de repetir o trabalho realizado de forma brilhante pelos irmãos Zapatistas em relação a seus convidados e assessores na primeira e na segunda mesa do diálogo de Sacamch&rsquoen. Tampouco, a nossa tarefa é de prolongar o debate desenvolvido com grande seriedade pelos 135 delegados de 44 organizações indígenas e 28 agremiações educativas, sociais e políticas reunidas no Segundo Foro Nacional Indígena Permanente.
É claro que a nossa tarefa situa-se na mesma diretriz destes encontros. Mas seu caráter específico surge da inserção na dinâmica de um encontro intercontinental e dos problemas que ele coloca para o futuro da humanidade no Terceiro Milênio. Nossa tarefa é a de definir a contribuição que o movimento indígena mexicano, continental e mundial, pode oferecer à construção de uma nova civilização.
A nossa tarefa é de aprofundarmos a nossa conscientização de que em tempos de globalização, não se pode pensar numa transformação do Estado mexicano que não inclua uma transformação do mundo: não se pode pensar numa libertação dos povos indígenas que não implique na libertação de todos os povos oprimidos. Nossa tarefa é de proclamar perante os horizontes mundiais colocados pela insurreição Zapatista, a necessidade de uma aliança mundial dos excluídos e rebeldes, construída em torno dos povos indígenas insurretos.
Parece-me que esta perspectiva universal e mundial é um dos grandes traços do movimento Zapatista. Sua convocação nacional e internacional vem da capacidade que tem mostrado, não só de utilizar os mais modernos meios de comunicação, e sim, de mostrar que os problemas impostos pela marginalização de Chiapas ultrapassam amplamente os problemas indígenas e envolvem as grandes maiorias oprimidas do país; de mostrar que os problemas implícitos na marginalização de Chiapas deitam raízes no sistema econômico e político que constitui a nova ordem mundial.
Lendo os riquíssimos documentos produzidos pela primeira e a segunda mesa do diálogo de Sacamch&rsquoen e comparando o ponto de vista do Exército Zapatista e do Governo Federal, se descobre que um dos principais elementos de divergência é justamente esse: os Zapatistas insistem no alcance nacional e universal dos problemas e das reivindicações, enquanto o governo pretende restringir os problemas e as reivindicações aos indígenas de Chiapas.
A conseqüência mais evidente deste contraste é que onde os Zapatistas pensam que os problemas setoriais e locais não encontrarão solução sem uma profunda transformação política, econômica, social e cultural de todo o país, o governo pensa de poder responder de forma adequada com pequenas concessões setoriais e locais; e onde os Zapatistas colocam a necessidade de uma nova constituição, o governo pensa em resolver o assunto com a reforma de alguns artigos.
Um dos grandes méritos históricos do movimento Zapatista é justamente o de ter imposto à consciência mexicana e internacional o tema da profunda convergência entre os sofrimentos, os problemas, as reivindicações dos povos indígenas e das maiorias marginalizadas do México e do mundo inteiro; o de ter imposto a evidência de que na história de hoje e de amanhã, os marginalizados já não são marginais.
Ao colocar a problemática indígena numa perspectiva mundial, sabemos que não estamos nos afastando de uma realidade concreta e quotidiana, mas que estamos nos aproximando melhor dela em suas dimensões mais profundas, que encontramos as próprias raízes dos problemas e dos sofrimentos.
Seria uma grave erro estratégico por parte dos que lutam seriamente por uma mudança se, em nome do concreto e da prática, deixássemos definitivamente às forças dos impérios o papel de liderar o mundo e de determinar o nosso futuro. Ao contrário, ao propor-se como objetivo o questionamento do neoliberalismo, o nosso encontro internacional questiona exatamente a atual organização do mundo. Mas, sobretudo, se propõe como objetivo a busca de alternativas ao neoliberalismo, pretende, como perspectiva longínqua, mas efetiva, planejar uma nova ação política e econômica no mundo.
O fatalismo contra a esperança.
Sabemos perfeitamente que, ao colocar os problemas com esta amplitude e radicalidade, não estamos tornando-nos mais simples, e sim, muito, mas muito mais complexos. Quando, sobre as bases de análises objetivas, se descobrem as imensas dimensões dos problemas que temos à nossa frente, é muito forte a tentação de pensar que, em última análise, são problemas insolúveis. É assim que em cada consciência e na consciência do mundo explode um acirrado conflito entre o fatalismo e a esperança. Talvez, o conflito mais grave e mais decisivo da história atual.
A cultura que o neoliberalismo pretende impor ao mundo é a cultura do fatalismo. O fatalismo e a descrença têm se convertido na essência do chamado "pensamento único" que domina o mundo atual e o paralisa. O seu êxito mais decisivo e mais trágico, é a convicção que já penetra a consciência e o inconsciente das grandes maiorias, de que este sistema não tem alternativas, de que ele é a última palavra da história. É uma convicção trágica para as grandes maiorias, porque significa que, definitivamente, não há uma alternativa de vida ao sistema de morte.
É uma convicção que, nestas duas últimas décadas, penetrou também na consciência de muitos militantes e ex-militantes, que têm abandonado os ideais e a paixão política de sua juventude, têm se convertido ao realismo e têm caído no desencanto.
É uma convicção que penetrou, inclusive, na cultura da esquerda de nossos países que, ao aceitá-la, perdeu sua identidade, sua razão de ser e sofreu assim sua derrota final. O que significa, hoje, em muitos de nossos países, ser de esquerda? Muito pouco, quase nada.
Pergunto a mim mesmo se a escassa presença da esquerda oficial neste encontro contra o neoliberalismo não significa que muitas organizações, supostamente de esquerda, têm deixado de lutar contra o neoliberalismo e têm subido no carro do triunfador.
Por que os Zapatistas e os indígenas do mundo se mobilizam?
Neste contexto internacional, o chamado do Exército Zapatista a formar aqui a internacional da esperança ganha todo o seu sentido. Sem dúvida, cabe perguntar-se: com que direito os Zapatistas lançam ao mundo um chamado tão paradoxal e tão anacrônico?
Eu diria: com o direito conferido por sua mobilização e a de tantos indígenas do país contra a ditadura nacional e internacional do mercado. Com o direito que lhes é conferido pela mobilização dos povos indígenas do mundo inteiro contra o sistema de morte. Com o direito que lhes conferem estes 504 anos de resistência a uma civilização genocida e etnocida.
E, além do mais, é mais que legítimo perguntar-se: como se explica que os Zapatistas, perfeitamente conscientes da enorme complexidade dos problemas que colocam, perfeitamente conscientes da grande desproporção que existe entre suas forças e as de seu principal inimigo, do bloqueio imperialista supranacional, perfeitamente conscientes da impossibilidade de um triunfo militar, se atrevem, sem dúvida, a jogar sua vida numa luta tão desigual?
A mesma pergunta surge a propósito de todas as lutas que os indígenas estão desencadeando em vários países do continente e do mundo. Em geral, é evidente sua extrema inferioridade política, militar e econômica diante do inimigo. Sem dúvida, sobretudo na última década, eles insurgem, se mobilizam, se organizam, lutam, caem e se levantam. Obviamente, lutam para vencer; lutam porque confiam em sua força e na de seus aliados; lutam porque esperam contra toda esperança.
Eles pensam, e acabam de reafirmá-lo na inauguração deste encontro, que um sistema de opressão não pode ser eterno; que a força do direito, da justiça, da solidariedade, do amor, acabarão por triunfar sobre o direito da força; que Davi (o comandante Davi)! acabará por triunfar sobre Golias. Eles pensam que se o triunfo militar não é possível, o é o triunfo moral e político.
Parece-me muito importante que a nossa solidariedade com o Exército Zapatista se manifeste também valorizando perante a opinião pública internacional a estratégia essencialmente não violenta e antimilitarista deste movimento guerrilheiro. É claro que os Zapatistas tiveram que empunhar as armas para poder tomar a palavra e é evidente que para transformar a sociedade mexicana e para construir um mundo novo, eles não apostam na força das armas e sim, na força do direito. E em nosso encontro continental, uma das coisas que mais impressionam é o contraste entre a pobreza dos meios e a riqueza do ideal que perseguimos. Além do mais, esta opção ético-política e estratégica não é própria do Exército Zapatista, mas é comum à grande maioria das organizações indígenas.
Partilhar a esperança Zapatista.
Agora, a nossa solidariedade com o Exército Zapatista e com o movimento indígena mundial seria bastante frágil se nos limitássemos a partilhar sua luta sem partilhar sua esperança. Parece-me ser este o sentido profundo do chamado Zapatista a construir, no nosso encontro intercontinental, a internacional da esperança.
Os Zapatistas sabem que o direito, a justiça, a solidariedade e o amor se convertem em forças históricas transformadoras e libertadoras somente se chegam a penetrar na consciência das grandes massas e a mobilizá-las. Além do mais, se estas forças históricas pretendem ser o ponto que levanta e transforma o mundo, é necessário que elas penetrem e mobilizem a consciência dos oprimidos do mundo inteiro. É necessário que elas consigam construir, ao redor dos Zapatistas e dos indígenas do mundo, um novo bloco popular que se contrapõe ao bloco imperial do Norte. Este novo bloco popular de alcance mundial parece-me ser o conteúdo político e moral mais profundo da internacional da esperança que queremos fundar.
Este encontro teria realmente uma importância enorme para o futuro se todos saíssem daqui partilhando plenamente a esperança Zapatista, a esperança indígena. Se saíssemos daqui partilhando a convicção de que é possível uma alternativa ao sistema de morte, que podemos construi-la todos juntos, que o nosso mesmo encontro é uma pedra importante na construção de um novo futuro; se saíssemos daqui decididos a difundir a mensagem Zapatista de esperança entre todos os irmãos e irmãs do mundo, especialmente os que, depois de anos de militância entusiasta, têm caído vítimas do desencanto e do desespero. Se saíssemos daqui gritando, com profunda convicção, "Somos todos indígenas! Somos todos zapatistas!"
Muitos de nossos compatriotas nos lembrarão que esta esperança está completamente fora do tempo. Que ela contradiz o "pensamento único", ou seja, o pensamento do homem moderno, do homem normal. Nos dirão que partilhar a esperança zapatista é partilhar sua loucura. Então que seja. Queremos que do nosso encontro saia uma grande conspiração dos loucos, se é verdade que, hoje em dia, só os loucos são capazes de esperar e de lutar por um mundo onde a exclusão deixe de ser algo normal, por um mundo no qual caibam todos os mundos.
A esperança zapatista e indígena nos lembra uma mensagem do revolucionário russo Bakunin: "É apostando no impossível que, ao longo da história, tem se avançado no descobrimento e na realização do possível. E todos os que têm se contentado sabiamente em acreditar no possível não avançaram um único passo".



VIVA A INTERNACIONAL DA ESPERANÇA!
VIVA O EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL!

Giulio Girardi é filósofo, teólogo da libertação e membro do Tribunal Permanente dos Povos




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