Introdução
Após
alguns anos trabalhando com alunos de Licenciatura que já exercem a profissão
de professor no Ensino Médio é possível perceber que adotam uma visão
de Ciência essencialmente positivista. Influenciados pela resolução de
problemas “de lápis e papel”, vêem o mundo de forma completamente determinística.
Depositam uma confiança excessiva nas leis físicas. Acreditam na existência
de comprovação experimental das teorias mas evitam se confrontar com as
dificuldades práticas de se obter dados experimentais. Assim, as condições
iniciais são sempre valores muito bem definidos e a “resposta” final inquestionável.
Essa visão dificulta-lhes a compreensão de leis quânticas e relativísticas,
que de alguma forma contradizem as leis de Newton. Desconhecem a fragilidade
das próprias leis clássicas no que se refere às reais possibilidades de
previsibilidade de uma lei determinística. Muitos já ouviram falar na
Teoria do Caos mas a maioria preserva o sentido do senso comum de completa
desordem e aleatoriedade. Os cursos de Licenciatura em Física não contribuem
satisfatoriamente para modificar essa visão. Por exemplo, não se registra
a participação de licenciandos na disciplina optativa Caos em Sistemas
Dinâmicos oferecida pelo curso de Física da UFSC. Porém, foi possível
observar o grande interesse dos licenciandos pelo tema através de um mini-curso
oferecido pelo primeiro autor deste artigo em uma disciplina integradora
daquele curso.
A
palavra Caos tem diversas conotações na linguagem usual, porém, sua utilização
para definir um comportamento dinâmico foi proposta por
Tien-Yen Li e James A. Yorke, num artigo de 1975 intitulado Period tree
implies chaos. Concebida em meio a grandes
controvérsias suscitadas pela Relatividade e pela Mecânica Quântica, no
início do século XX, a Teoria do Caos só foi reconhecida enquanto tal
nas décadas de 1960 e 1970. Teve uma breve ascensão no plano da divulgação
científica nas décadas de 1980 e 1990 mas não chegou a ser incorporada
como área fundamental nos programas de Ensino Superior e, conseqüentemente,
de Ensino Básico. Provavelmente pela sofisticação matemática e pela forte
dependência dos programas de computador, nas Universidades tem permanecido
restrita a pesquisadores especialistas e seus alunos de pós-graduação
e iniciação científica, apesar do grande interesse e freqüentes especulações
que provoca. Numa pesquisa utilizando a técnica Delphi, Ostermann [2000]
constatou que a indicação de inserção do tema Caos no Ensino Médio ocupa
apenas o 23º lugar na preferência de professores e pesquisadores. Não
obstante, existem vários artigos em revistas, livros publicados e principalmente
sítios da Internet dedicados ao tema.
Neste
artigo iremos resgatar os principais acontecimentos históricos que levaram
à descoberta do comportamento caótico, acreditando que o conhecimento
da história de uma teoria tem muito a contribuir para o entendimento da
mesma [Matthews, 1995, Peduzzi, 2001]. Apesar de ter sido iniciado no
século XIX, o estudo qualitativo dos sistemas dinâmicos não-lineares foi
modificado radicalmente entre as décadas de 1960 e 1970, com o desenvolvimento
de novas técnicas matemáticas e a utilização dos computadores, não mais
como máquinas de fazer cálculos, mas como um ambiente de pesquisa científica.
Essa modificação foi tão radical que pode-se considerar ter havido uma
verdadeira “revolução” no estudo dos sistemas dinâmicos. Uma enorme comunidade
aderiu a esta “nova ciência” em um intervalo de tempo muito curto, chegando
a ser tema de cerca de 4000 publicações em 15 anos, nas mais diversas
áreas do conhecimento [Dresden, 1992]. Nos anos 1970 uma série de conferências
internacionais reuniu engenheiros, biólogos, físicos, químicos, entre
outros, que trabalhavam com ferramentas da teoria dos sistemas dinâmicos,
não como uma teoria matemática “aplicada em”, mas “desenvolvida por” [Aubin,
2002].
A contribuição
que esta teoria oferece para a filosofia da ciência é de extrema importância
para a formação de professores. Desenvolvida no seio das equações determinísticas
clássicas (equações diferenciais ordinárias), que pressupostamente teriam
o poder de prever o comportamento de um sistema, a Teoria do Caos vem
revelar a existência de sistemas determinísticos contínuos e discretos
cujo comportamento é praticamente imprevisível. A percepção de que o poder
de previsibilidade da Ciência é limitado e que sistemas ou iterações simples
podem apresentar comportamento complicado pode modificar a visão positivista
da Ciência, ainda predominante em professores de Física [Luffiego, 1994].
Determinismo e imprevisibilidade
Todo
sistema determinista permite fazer previsões sobre seu comportamento futuro
a partir do conhecimento exato das condições iniciais e das leis matemáticas
que regem seu comportamento. Essa perfeição matemática, no entanto, esbarra
na possibilidade real de se definir exatamente as condições iniciais.
O sucesso do cálculo diferencial e integral, inaugurado por Isaac Newton
(1643-1727) levou alguns cientistas a depositarem um excesso de confiança
na capacidade de a ciência fazer previsões. O retorno de um cometa, hoje
conhecido pelo sobrenome do astrônomo inglês que calculou a sua órbita,
Edmund Halley (1656-1742), viria a reforçar essa confiança. Um exemplo
clássico é a afirmação do matemático, astrônomo e físico francês Pierre
Simon Laplace (1749-1827):
Uma
inteligência que, para um instante dado, conhecesse todas as forças de
que está animada a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem,
e se além disso essa inteligência fosse ampla o suficiente para submeter
esses dados à análise, ela abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos
maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto
para ela, e tanto o futuro como o passado estariam presentes aos seus
olhos. O espírito humano oferece, na perfeição que foi capaz de dar à
astronomia, um pequeno esboço dessa inteligência.
Essa inteligência “ampla o suficiente” é conhecida como “o demônio de
Laplace”.
Um
século depois a confiança na capacidade de previsão da ciência começava
a ser abalada. Na Mecânica Quântica a descrição de fenômenos microscópicos
passava a ter uma descrição de caráter essencialmente probabilística.
Mas as limitações do determinismo atingiram também os fenômenos macroscópicos.
Alguns cientistas, principalmente o matemático, físico e filósofo francês
Jules Henri Poincaré
(1854-1912), começaram a perceber que a dificuldade de resolução apresentada
por certos sistemas dinâmicos não estava limitada à quantidade de técnicas
até então existentes, mas havia limitações intrínsecas, diante das quais
se podia demonstrar, por exemplo, que certos sistemas sequer admitem solução
analítica, não são “integráveis”
. Restava para o estudo desses sistemas soluções extremamente
trabalhosas, que envolviam um grande número de substituição de valores
numéricos.
É
o caso do sistema dinâmico envolvendo três corpos
– um problema de mecânica celeste tão bem resolvido por Newton
no caso de dois corpos. Poincaré
enfocou esse problema no seu famoso ensaio de 1890 “Sur le probléme des
trois corps et les équations de la dynamique” e na sua coleção de três
volumes “Méthodes nouvelles de la mécanique céleste”, produzida entre
os anos de 1892 e 1899. Ele provou que o problema
de três corpos não é integrável pois o número de equações é insuficiente
para resolver o sistema. Além disso, trata-se de um sistema não-linear,
que na maioria das vezes é também não integrável. Poincaré, então, desenvolveu
novos métodos qualitativos de análise matemática, que deram origem à “topologia”.
Uma
outra característica presente no problema de três corpos, para certos
parâmetros, viria a perturbar definitivamente a confiança na predição:
a sensibilidade apresentada em relação às condições iniciais. Essa sensibilidade
levou Poincaré a refletir sobre a possibilidade do conhecimento exato
da situação inicial e as conseqüências sobre o comportamento final. Ele
observou em Science et Méthode, de 1908:
"Uma causa muito pequena, que nos
passa despercebida, determina um efeito considerável que não podemos deixar
de ver, e então dizemos que o efeito é devido ao acaso. Se conhecêssemos
exatamente as leis da natureza e a situação do universo no momento inicial,
poderíamos prever exatamente a situação desse mesmo universo no momento
seguinte. Contudo, mesmo que as leis naturais já não tivessem segredos
para nós, ainda assim poderíamos conhecer a situação aproximadamente.
Se isso nos permitisse prever a situação seguinte com a mesma aproximação,
seria tudo o que precisaríamos, e diríamos que o fenômeno tinha sido previsto,
que é governado por leis. Mas nem sempre é assim; pode acontecer que pequenas
diferenças nas condições iniciais produzam diferenças muito grandes nos
fenômenos finais. Um pequeno erro nas primeiras produzirá um erro enorme
nas últimas. A previsão torna-se impossível..."
Suas
observações estavam bem próximas da caracterização do comportamento caótico.
Existem até historiadores que optam por admitir que Poincaré descobriu
o Caos.
Algumas
ferramentas hoje utilizadas no estudo dos sistemas dinâmicos, em particular
no comportamento caótico, foram criadas ou tiveram seu embrião nos trabalhos
de Poincaré. Uma dessas ferramentas, que permite analisar sistemas dinâmicos
tridimensionais com métodos análogos aos utilizados num plano, observando
o comportamento de uma trajetória em sua vizinhança, é o “mapa do primeiro
retorno” ou “mapa de Poincaré”. Outra ferramenta, desenvolvida mais profundamente
pelo físico e matemático russo Aleksandr Mikhailovich
Lyapunov (1857-1918) e a escola de Gorki (hoje Nizhny Novgorod,
na Rússia), surgiu de uma nova conceituação de estabilidade: soluções
estáveis eram distinguidas de soluções instáveis por um “coeficiente característico”,
hoje conhecido como “expoente de Lyapunov”. O expoente de Lyapunov mede
a velocidade de divergência – ou de convergência – de duas trajetórias
vizinhas no espaço de fase
.
Ildeu
de Castro Moreira acrescenta que James Clerk Maxwell (1831-1879), vinte
anos antes de Poincaré, já havia advertido a comunidade científica da
época sobre a impossibilidade de previsões precisas mesmo em sistemas
de poucas partículas. Maxwell não só percebeu esta característica nos
sistemas físicos como arriscou-se a tecer considerações filosóficas sobre
o livre-arbítrio e as limitações do determinismo [Moreira, 1992].
David
Ruelle alinha ao trabalho de Poincaré outros dois cientistas franceses
que contribuíram na percepção da sensibilidade às condições iniciais:
Jacques Hadamard (1865-1963) e Pierre Duhem (1861-1916).
Num
livro para o grande público editado em 1906, Duhem intitulou um parágrafo
Exemplo de dedução matemática para sempre inutilizável. Como ele explica,
essa dedução matemática é o cálculo de uma trajetória sobre o bilhar de
Hadamard. Ela é "para sempre inutilizável" porque uma pequena
incerteza, necessariamente presente na condição inicial, dá lugar a uma
grande incerteza sobre a trajetória calculada se esperarmos por um tempo
suficientemente longo, e isso torna sem valor a predição. [Ruelle, 1991:66]
Hadamard,
Duhem e Poincaré perceberam a existência desses sistemas dinâmicos não-lineares
com sensibilidade às condições iniciais, porém, essa descoberta não repercutiu
imediatamente sobre a comunidade científica. Ruelle discute duas razões
que considera terem sido responsáveis pelo enorme atraso na repercussão
das idéias de Poincaré e subentende uma terceira razão: a inexistência
dos computadores.
Para
o intervalo surpreendente que separa Poincaré e os estudos modernos do
caos, vejo duas razões. A primeira é a descoberta da mecânica quântica,
que revolucionou o mundo da física e ocupou todas as energias de várias
gerações de físicos. ...
Vejo uma outra razão para o esquecimento
em que caíram as idéias de Hadamard, Duhem e Poincaré: elas vieram muito
cedo, não existiam ainda os meios de explorá-las....É preciso notar também
que, quando não conseguimos tratar matematicamente um problema, sempre
podemos estudá-lo numericamente pelo computador. Mas este método, que
desempenhou um papel essencial no estudo do caos, evidentemente não existia
no início do século XX. [Ruelle, 1991:68]
Na
realidade, apesar de freqüentemente revisitados, até recentemente os trabalhos
de Poincaré não foram mobilizados de maneira integrada. Pode-se suspeitar
que nem mesmo ele tinha uma visão integrada de suas dezenas de livros
e centenas de artigos.
O
sucesso dos sistemas dinâmicos lineares, com solução analítica, concentrou
a atenção de várias gerações de cientistas. Stewart comenta, com certa
dose de ironia, como vinham sendo tratados alguns problemas envolvendo
equações não-lineares.
Na
época clássica, à falta de técnicas para fazer face a não-linearidades,
o processo de linearização foi levado a tais extremos que muitas vezes
tinha lugar enquanto as equações estavam sendo formuladas: a equação clássica
do calor é linear, antes mesmo que se tente resolvê-la. Acontece que o
fluxo de calor real não o é, e, segundo pelo menos um especialista, Clifford
Truesdell, por maior que tenha sido o bem que fez para a matemática, a
equação clássica do calor só causou prejuízo à física do calor. [Stewart,
1989:92]
Embora
tenha sido percebido desde a época de Poincaré, o comportamento caótico
em sistemas não-lineares só foi reconhecido enquanto tal no início dos
anos de 1960.
A
não-linearidade no estudo de populações – o mapa logístico
Em meados do século XIX o matemático belga
Pierre Francois Verhulst (1804-1849)
acrescentou um termo não-linear à equação de evolução de populações sugerida
por Thomas Robert Malthus (1766-1834), considerando um fator de mortalidade
proporcional ao quadrado da população num determinado instante. Entre
os anos de 1970 e 1980 o físico australiano Robert May retomou o trabalho
de Verhulst e explorou a equação logística em sua forma discreta, o mapa
logístico (ou mapa de bifurcação). Este mapa, representado por uma equação
simples com um comportamento complexo, apresenta as principais características
do Caos.
May
também expressou sua preocupação com as possíveis conseqüências do tratamento
inadequado das equações não-lineares. Gleick cita uma afirmação contundente
de May sobre a educação científica nos anos setenta.
A
ciência do caos deveria ser matéria de ensino, sustentava ele. Era tempo
de se reconhecer que a educação padrão de um cientista dava a impressão
errônea. Por mais complexa que a matemática linear pudesse ser, com suas
transformadas de Fourier, suas funções ortogonais, suas técnicas de regressão,
May afirmava que ela inevitavelmente enganava os cientistas sobre o mundo,
onde predominava a não-linearidade. "A intuição matemática assim
desenvolvida prepara mal o estudante para enfrentar o comportamento bizarro
evidenciado pelo mais simples dos sistemas discretos não-lineares",
escreveu ele.
"Não só na pesquisa, mas também
no mundo cotidiano da política e da economia, estaríamos todos melhores
se um maior número de pessoas compreendesse que os sistemas não-lineares
simples não dispõem necessariamente de propriedades dinâmicas simples."
[Gleick, 1987:75]
Num
capítulo onde avalia as aplicações do Caos em Biologia, particularmente
o mapa logístico, Ian Stewart também reflete sobre a demora da percepção
das propriedades do Caos.
Penso
que a resposta é, em parte, que uma visão generalizada da significação
do caos teve que esperar até ser descoberta por pessoas que lidavam com
sistemas simples o suficiente para permitir a percepção de generalidades,
em contextos ligados a aplicações práticas, e num momento em que os computadores
tornavam fáceis os estudos numéricos. [Stewart, 1989:288]
Entre
1973 e 1977 foram realizadas várias conferências investigando o comportamento
complicado de mapas iterativos, mas pode-se considerar de especial importância
a conferência realizada pela Academia de Ciências de New York, entre 31
de outubro e 4 de novembro de 1977, intitulada “Bifurcation theory and
aplications in scientific disciplines”, organizada por Okan Gurel. Esta
conferência foi dedicada a Eberhard Hopf pelo seu 75º aniversário e consagrou
Edward Lorenz pelo seu artigo de 1963, finalmente retomado. Reuniu 74
autores, entre eles vários estudantes de David Ruelle, de Steve Smale,
pesquisadores experimentais e teóricos da estabilidade hidrodinâmica,
Benoit B. Mandelbrot, Robert May, James A. Yorke, físicos da teoria sinergética
de Herman Haken, em Stutgart, químicos da escola das “estruturas dissipativas”
de Ilya Prigogine, economistas, biólogos e vários outros [Aubin, 2002].
O
estudo do desenvolvimento de populações oferece ainda outro exemplo clássico
de comportamento caótico: as equações de Lotka-Volterra. Alfred James
Lotka (1880-1949) e Vito Volterra (1860-1940) desenvolveram um sistema
de equações tridimensional não-linear que leva em consideração a existência
de predadores e a escassez de alimentos.
Edward
Lorenz e o Efeito Borboleta
Apesar
de fortemente amparada pela topologia, uma abordagem matemática muito
bem desenvolvida, a revelação mais convincente do comportamento caótico
aplicado a um problema prático veio através de uma simulação em computador
realizada por Edward Norton Lorenz, cujos resultados foram publicados
num artigo de 1963 intitulado Deterministic
nonperiodic flow. Lorenz simulou o resultado obtido por Barry Saltzmann,
que simplificou extremamente o problema da convecção atmosférica até chegar
a um sistema com apenas três variáveis dinâmicas, passível de solução
numérica confiável e rápida para os computadores da época.
Em
suma, ele escreveu as equações simplificadas da convecção térmica que
já encontramos com o nome de Rayleigh-Bénard: o ar aquecido pelo Sol sobe
e se resfria na alta atmosfera, torna a descer, e o ciclo se repete ao
infinito. O modelo simplificado que dele propõe Lorenz faz intervirem
apenas três variáveis. Simplificado a esse ponto, podemos adivinhar que
ele não será muito útil para previsões atmosféricas reais. No entanto,
ele possui os ingredientes necessários para ser representativo de movimentos
atmosféricos (é bem verdade que num caso extremamente particular!); por
outro lado, ele constitui o modelo teórico de caos determinista mais célebre
e mais estudado. As três variáveis do modelo de Lorenz são a temperatura
(do ar), a velocidade (do vento) e uma terceira característica da dinâmica,
ligada à maneira como a temperatura varia com a altitude.[Bergé, 1994:201]
Tendo
que recomeçar seus cálculos no disputado computador Royal
McBee LPG-300 de que dispunha, decidiu introduzir
um valor impresso já obtido anteriormente e continuar o processamento
computacional a partir daquele ponto. Os valores introduzidos, no entanto,
tinham um número de dígitos menor que o padrão da máquina. Depois de poucas
iterações a seqüência que obteve não coincidia com a anterior. Ao descartar
a possibilidade de haver um defeito na máquina ou algum erro de digitação
dos dados de entrada, concluiu que tratava-se de uma propriedade daquele
sistema de equações. A simples supressão de alguns dígitos nos dados iniciais
provocara um grande desvio nos resultados. Aubin e Dalmenico [2002]
observam que Lorenz já esperava esse comportamento, ao contrário do que
muitos historiadores divulgam, que ele teria se surpreendido após ir tomar
um café, ou que teria introduzido no computador os números impressos casualmente
faltando algarismos.
A
importância de Lorenz está em utilizar o computador como uma forma de
modelagem científica, deixando de ser apenas uma calculadora gigante e
passando a ser um método experimental, heurístico. Lorenz usa o computador
para introduzir duas inovações: 1- provar a propriedade da sensibilidade
às condições iniciais (depois chamado de efeito borboleta) e 2- exibir
a surpreendente imagem do atrator, sugerida por uma descrição verbal, mas um tanto confusa,
por Poincaré. As conclusões apresentadas em seu trabalho de 1963 podem
ser resumidas em duas fundamentais: 1- a sensibilidade às condições iniciais
é uma característica intrínseca a certos sistemas dinâmicos não-lineares
e 2- equações simples podem gerar comportamentos complicados [Aubin, 2002].
Essa revelação passou despercebida por quase dez anos por ter sido publicada
no Journal of The Atmospheric Sciences, uma revista de Meteorologia pouco
consultada pelos físicos e matemáticos.
A metáfora da borboleta que provoca um tornado
nasceu em uma palestra apresentada por Lorenz no 139° encontro
da Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Washington, D.C,
em 29 de dezembro de 1972 – publicada pelo autor em seu livro The Essence
of Chaos –, intitulada Predictability:
Does the Flap of a Butterfly's Wings in Brazil Set off a Tornado in Texas? (Previsibilidade:
A Batida das Asas de uma Borboleta no Brasil Provoca um Tornado no Texas?).
A escolha do Brasil e do Texas se deve ao efeito sonoro das combinações
de palavras (butterfly-Brazil, tornado-Texas) e ao fato de estarem localizados
em hemisférios diferentes, o que dificulta a análise do efeito do bater
das asas [Lorenz, 1995]. O autor não responde à questão que levanta, mas
a borboleta viria a se transformar num símbolo de sensibilidade às condições
iniciais. O sucesso dessa metáfora se deve também à aparência de borboleta
na representação do atrator de Lorenz no plano XZ (Figura 1) e à grande
repercussão do livro de James Gleick, onde o “Efeito Borboleta” aparece
como título do primeiro capítulo [Hilborn,
2004].
Figura 1 – o atrator de Lorenz no plano XZ
Em
setembro de 1973, em Toulouse, organizado por Cristian Mira, uma conferência
internacional intitulada “Transformations ponctuelles et applications”
reuniu os pioneiros da Ciência não-linear como M. Hénon, J. H. Bartlet,
C. Froeschle e também alguns cientistas soviéticos, incluindo B. V. Chirikov.
A característica principal dos trabalhos dessa conferência foi o uso proeminente
do computador em problemas de Mecânica Celeste e projetos de Aceleradores
de Partículas. Entre 1964 e 1974 essa linha de pesquisa estava relacionada
a problemas práticos, postulados por diversas áreas de engenharia que
chegaram a desenvolver métodos matemáticos próprios para computação [Aubin,
2002].
A
ferradura de Steve Smale
Além do trabalho de Lorenz, Bergé enumera três trabalhos importantes
entre o fim dos anos 1960 e o começo dos anos 1970, que marcam o nascimento
da Teoria do Caos: 1- um deles é o artigo do matemático norte-americano
Steve Smale de 1967: Differentiable
dynamical systems;
2- o outro do matemático e astrônomo francês Michel Hénon com seu colaborador
Carl
Heiles, de 1969: Numerical exploration
of the restricted problem; e 3- o artigo
de David Ruelle e Floris Takens, de 1971: On the nature of turbulence.
1- Trabalhando com sistemas
dinâmicos discretos, em 1967 Smale percebe o mecanismo topológico responsável
pelo comportamento errático de sistemas aparentemente bem comportados.
Esse mecanismo veio a ser conhecido pela sucessão de duas transformações
geométricas do espaço de fase, estique e dobre, responsáveis pelo
mapeamento que ficou famoso por gerar uma figura parecida com uma ferradura.
Ruelle cita este artigo como sendo
a influência mais decisiva na descoberta dos atratores estranhos e reconhece
a influência de Smale sobre toda uma geração de pesquisadores, da qual
fez parte.
O próprio Smale identifica, em um artigo
de 1998, intitulado Chaos: find a horseshoe in the beachs of Rio, a confluência
de três “tradições” de pesquisa em seu trabalho: a) a primeira tradição
diz respeito ao estudo realizado pelos matemáticos ingleses Mary Cartwright
(1900-1998) e John Littlewood (1885-1977),
que investigavam a equação desenvolvida por Balthasar van der Pol; b)
a segunda tradição vem com George David Birkhoff (1884-1944), um dos raros
matemáticos norte-americanos que estudava os trabalhos de Poincaré e professor
do jovem Edward Lorenz, no M.I.T., por um breve período; c) e a terceira
o trabalho de matemáticos soviéticos da Escola de Gorki aos quais ele
teve uma primeira introdução em Princeton, logo após a segunda guerra
mundial, através de um grupo liderado por Solomon Lefschetz. Essa Escola
tem início nos anos 1930 com Alexander Andronov (1901-1952) e Lev Pontryagin
(1908-1988).
a) Segundo Smale [1999], ele estava no
Rio de Janeiro quando leu uma carta de Norman Levinson sobre resultados
que Cartwright e Littlewood tinham obtido, contrariando conclusões suas
publicadas recentemente.
A
equação de van der Pol,..., é um oscilador não-linear. Cartwright e Littlewood
demonstraram que, sob condições adequadas, um oscilador forçado de van
der Pol exibe um complicado movimento aperiódico. Hoje podemos ver que
essa foi uma das primeiras descobertas do caos. Seu trabalho foi parte
do esforço de guerra. Eletrônica significava radar, e não foi por coincidência
que a equação de van der Pol surgiu no campo da eletrônica. [Stewart,
1989:161]
O contato com esses resultados o levaram
a descobrir o mecanismo da ferradura.
b) Recebeu influências de Birkhoff folheando
a coletânia de obras da biblioteca do IMPA (Instituto Nacional de Matemática
Pura e Aplicada). Birkhoff havia se aprofundado na “conjectura de Poincaré”,
sobre a existência de “pontos homoclínicos” e Smale concluiu que os pontos
homoclínicos também continham uma ferradura.
A
história dos sistemas dinâmicos, nesse período, também contou com a colaboração
de um brasileiro, Maurício Peixoto [Garcia, 2003], ainda hoje pesquisador
do IMPA. Peixoto trabalhava com Lefschetz, em Princeton. Utilizando um
tratamento topológico, em 1959, provou que a maioria dos sistemas bidimensionais
são “estruturalmente estáveis”. Neste mesmo ano, apresentado por Elon Chaves, recebeu no
Rio de Janeiro o matemático Steve Smale. Seus resultados impressionaram
Smale.
c)
Foi através de Peixoto que Smale entrou em contato com a Escola de Gorki
e o conceito de “estabilidade estrutural”. Este contato não só o levou
à solução da “conjectura de Poincaré” em dimensões maiores que 4 mas também
permitiu obter outros resultados em topologia [Smale, 1999].
Além
de Lyapunov, Andronov e Pontryagin, outro importante matemático soviético
foi Andrei Nikolaevich Kolmogorov (1903-1987).
Na área que nos diz respeito, ele é
conhecido por ter previsto com sucesso a repartição espectral das flutuações
de um fluido muito turbulento, uma contribuição fundamental que explica
como a energia das flutuações turbulentas se reparte em função de sua
escala espacial. Igualmente célebre é o teorema KAM (dos nomes de Kolmogorov,
Arnold e Moser), que trata da estabilidade dos regimes quase-periódicos
nos sistemas conservativos, como o problema dos três corpos (1954). ...
Duas outras contribuições importantes de Kolmogorov relacionam-se com
a área do caos, o conceito de entropia de Kolmogorov e o de complexidade
algorítmica (1958) [Bergé,
1994:265]
Smale
inaugurou uma linguagem própria (com termos como difeomorfismo, homeomorfismo,
etc.) tornando-se quase incompreensível para praticantes de outras disciplinas.
Somente quando entrou em contato com René Thom (criador da Teoria da Catástrofe),
a partir de 1970, passou a ser entendido e aplicado em economia, mecânica
celeste, circuitos eletrônicos, biologia, entre outros campos de pesquisa.
2- O artigo do astrônomo
do observatório de Nice, Michel Hénon, com seu jovem colaborador Carl
Heiles, dava uma solução elegante ao problema dos três corpos de Poincaré.
Ficou demonstrado definitivamente que um sistema conservativo de três
corpos pode manifestar comportamento caótico. Hénon interessou-se também
pelo problema da turbulência em fluídos, para o qual contribuiu com um
modelo exemplar.
Alguns anos depois (1976),
o mesmo M. Hénon e um de nós (Y. P.) propúnhamos uma iteração simples
de duas dimensões que permitia obter o famoso "atrator de Hénon",
que se tornou um modelo muito clássico no estudo do caos dissipativo.
[Bergé, 1994:268]
3- No artigo de 1971, estudando
um modelo para a turbulência em fluidos, Ruelle e Takens identificaram
um novo tipo de atrator e o chamaram de “atrator estranho”. Este trabalho teve um impacto considerável na comunidade
científica, propiciando o aparecimento de diversos grupos de pesquisa
em mecânica dos fluidos.
É curioso saber que,
como até confessou um desses autores, eles não conheciam nem o artigo
de Lorenz nem certas idéias de Poincaré acerca da instabilidade das trajetórias.
[Bergé, 1994:266]
Foi no contexto da pesquisa em modelos matemáticos para a turbulência
que o comportamento caótico começou a sair do imaginário matemático e
passou representar modelos para fenômenos reais.
A
Turbulência, a duplicação de períodos e a universalidade de Feigenbaum
Os
pesquisadores em Mecânica dos Fluidos vinham há muito tempo tentando um
modelo para o fenômeno da turbulência. O artigo de Ruelle e Takens começava
a indicar uma nova direção, identificando inconsistência matemática em
modelos até então muito bem estruturados, como o modelo dos “modos”.
A dupla
de cientistas não se limitou ao trabalho teórico e logo contatou uma equipe
de cientistas experimentais, trabalhando especificamente na questão da
rota para a turbulência. O modelo matemático de Ruelle e Takens levava
a crer que as sucessivas etapas entre a passagem do regime estacionário
para o turbulento eram marcadas por descontinuidades muito mais bruscas
que as previstas pelo modelo anterior. Mas até então não passavam de resultados
meramente matemáticos.
Ian
Stewart também discute este episódio histórico no livro “Será que Deus
Joga Dados?”. Embora não tão diretamente envolvido quanto Ruelle e Bergé,
descreve muito bem a polêmica em torno da turbulência. O distanciamento
de Stewart age a seu favor quando descreve as respectivas contribuições
de Navier, Stokes, Landau, Hopf, Couette, Taylor, Ruelle, Takens, Gollub,
Swinney, entre outros.
Poincaré
já havia advertido sobre sistemas que comportam-se de maneira regular
para alguns parâmetros e passam a ter comportamento errático quando esses
parâmetros são modificados, mas foi no estudo da transição do regime
de escoamento laminar para o turbulento que se desenvolveram grandes controvérsias
a respeito dessa propriedade. Vários modos de transição foram identificados,
sendo que três deles se mostraram mais comuns: intermitência, quase-periodicidade
e duplicação de período.
O
modo de transição por duplicação de período, proposta por Mitchell Feigenbaum
quando estudava certas características do “mapa logístico”, surgiu em
plena efervescência do nascimento do Caos enquanto nova linha de pesquisa
e causou um grande impacto na comunidade científica. Feigenbaum percebeu
a existência de relações matemáticas “universais” entre as sucessivas
bifurcações presentes nesse modo de transição. Foi tão grande a repercussão
dessa descoberta que pode-se incluí-la entre um dos fatos científicos
que se tornaram um verdadeiro fenômeno publicitário. Um
fato curioso é que o trabalho de Feigenbaum sequer tinha rigor exigido
pelos matemáticos, mas a beleza dos resultados e o aval de um resultado
experimental executado com grande rigor tecnológico por Albert Libchaber
o consagraram definitivamente. Libchaber estudou a transição para a turbulência
utilizando o hélio líquido num compartimento muito pequeno, o que eliminava
grande parte do “ruído” dos sistemas fluidos, e obteve resultados experimentais
muito favoráveis à intuição de Feigenbaum [Aubin, 2002].
É
importante ressaltar que, apesar de todos esses avanços, o problema da
turbulência ainda não está de todo resolvido. Por exemplo, não se sabe
se a turbulência real satisfaz à invariância de escala, como prevê a teoria
de Kolmogorov. Essa teoria supõe que a turbulência seja espacialmente
homogênea, o que pode não ser verdade.
Além
do estudo da turbulência uma série de outros experimentos vieram
a corroborar os comportamentos matemáticos previstos pela Teoria do Caos.
O primeiro, ou um dos primeiros, foi um sistema mecânico do tipo oscilador
amortecido forçado, desenvolvido por uma equipe
da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos em 1979.
A
pesquisa experimental forneceu uma base ainda mais sólida ao estudo do
Caos nos anos 1980, quando surgiram novos métodos matemáticos de análise
de dados. Métodos que possibitaram reconstruir um atrator num espaço de
fases n-dimensional a partir de uma única série temporal – o mais utilizado
é o método das coordenadas retardadas (time delay) – e outros que permitiram
medir a dimensão do atrator, cruciais para o estudo do comportamento de
um sistema dinâmico experimental. A partir desses métodos tornou-se possível
a identificação de comportamentos caóticos em experimentos reais.
... Em 1983, alguns físicos
teóricos – por um lado, P. Grassberger e I. Proccacia, por outro lado
a equipe americana de J. D. Farmer, E. Ott e J. A. Yorke – propuseram,
praticamente ao mesmo tempo, meios para calcular a dimensão topológica
dos atratores reconstruídos com base em sinais experimentais. [Bergé,
1994:272]
Os
atratores estranhos geram figuras com dimensão fracionária, conhecidas
como Fractais. Através do cálculo dessa dimensão pode-se inferir algumas características do comportamento caótico.
A
relação entre o comportamento caótico e a dimensão fracionária do atrator
estranho contribuiu para se estabelecer uma estreita, porém enganosa,
ligação entre o Caos e os Fractais. Embora também tenha extensões na teoria
dos sistemas dinâmicos não-lineares – diversas figuras fractais são geradas
por sistemas de equações não-lineares –, a história dos Fractais e suas
aplicações se desenvolveu de forma totalmente independente da história
do Caos. A grande maioria dos fractais não tem nenhuma ligação com o comportamento
caótico.
O
sucesso da Teoria e sua contribuição para a epistemologia
Os
anos de 1980 vieram a consagrar um enorme desenvolvimento da Teoria do
Caos. James Gleick descreve os desdobramentos do sucesso da teoria nos
meios acadêmicos no período de maior efervescência do estudo do Caos num
capítulo intitulado “Revolução”.
Os
caoticistas ou caologistas (esses neologismos eram ouvidos) começaram
a surgir com desproporcional freqüência nas listas anuais de bolsas e
prêmios importantes. Em meados da década de 80 um processo de difusão
acadêmica tinha levado os especialistas em caos a posições de influência
nas burocracias universitárias.[Gleick, 1987:34]
Mas esse sucesso teve seu
período áureo, conforme comenta David Ruelle. Os resultados mais atuais
em física não têm provocado a mesma euforia de décadas anteriores.
Esse sucesso foi benéfico para as
matemáticas, nas quais a teoria dos sistemas dinâmicos diferenciáveis
ganhou com as idéias novas sem degradar a atmosfera de pesquisa (a dificuldade
técnica das matemáticas torna difícil a enganação). Na física do caos,
infelizmente, o sucesso foi acompanhado de um declínio da produção de
resultados interessantes, e isso apesar dos anúncios triunfalistas de
resultados retumbantes. Quando as coisas se tiverem assentado e apreciarmos
sobriamente a dificuldade dos problemas que se colocam, talvez vejamos
surgir uma nova onda de resultados de alta qualidade.[Ruelle, 1991:98]
Apesar
dos resultados mais recentes não terem a qualidade esperada por Ruelle,
a Teoria do Caos deixou um grande legado à filosofia da ciência e em especial
à epistemologia.
Além
de transformar em “demônio” a inteligência hipotética de Laplace, desequilibrando
a confiança na capacidade de previsão da ciência, o Caos expandiu o conceito
de irreversibilidade aos sistemas conservativos, afinal, a inexatidão
das condições iniciais as tornam irrecuperáveis se o sistema for altamente
sensível [Prigogine, 1996].
O
estudo dos sistemas dinâmicos se apropriou e contribuiu para a evolução
de uma ferramenta tecnológica de impacto sem precedentes na história da
Ciência: o computador. Entre os anos de 1960 e 1970 viu-se emergir uma
nova e revolucionária forma de produção científica com novos métodos de
pesquisa baseados na utilização de computadores, uma verdadeira revolução
epistemológica que acentuou a estreita dependência entre ciência e tecnologia,
inaugurando uma autêntica “tecnociência”. Aos procedimentos experimentais
“in vivo” e “in vitro” veio se somar o “in silico”.
O caos tornou-se não apenas teoria, mas
também método; não apenas um cânone de crenças, mas também uma maneira
de fazer ciência. O caos criou sua técnica própria de usar computadores,
técnica que não exige a enorme velocidade dos Crays e Cybers, mas até
favorece terminais modestos que permitem interação flexível. Para os pesquisadores
do caos, a matemática tornou-se uma ciência experimental, com o computador
substituindo os laboratórios cheios de tubos de ensaio e microscópios.[Gleick,
1987:34]
Outra
implicação epistemológica diz respeito à limitação da reprodução de experimentos
em laboratório. Sistemas que apresentam comportamento caótico dificilmente
serão passíveis de repetição exata, na qual, partindo-se de uma determinada
condição inicial chega-se à uma mesma condição final. Essa dificuldade
marcou a ciência contemporânea com um traço de imprevisibilidade.
A
imprevisibilidade, porém, não foi a única razão pela qual físicos e matemáticos
começaram a levar os pêndulos novamente a sério nas décadas de 1960 e
1970.
Os
estudiosos da dinâmica caótica descobriram que o comportamento irregular
de sistemas simples agia como um processo criativo. Gerava complexidade:
padrões de organização variada, por vezes estáveis e por vezes instáveis,
por vezes finitos e por vezes infinitos, mas sempre com o fascínio das
coisas vivas.[Gleick, 1987:38]
Os
padrões aos quais Gleick se refere são estudados sob a denominação geral
de auto-organização [Debrun, 1996; Nussenzveig, 1999]. Diversos sistemas
até então inexplicáveis (principalmente os sistemas biológicos, como o
funcionamento do cérebro e as propriedades do DNA) encontram indícios
de explicação na teoria da auto-organização. No entanto, todo este fascínio
ainda permanece ausente das escolas.
A
formação de professores
A partir
da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, foi inaugurada
uma reformulação de todo o sistema educacional brasileiro. Esta reformulação
modificou profundamente as diretrizes da educação formal inicial, a Educação
Básica, bem como, paralelamente, da formação de professores. O ensino
por “competências” gerou uma fértil discussão que provocou uma profunda
revisão dos currículos, tanto da Educação Básica quanto da Educação Superior,
em especial, dos cursos de Licenciatura. Desenvolver competências implica
em adotar um currículo que garanta a democratização das conquistas culturais
acumuladas historicamente mas que possibilite a mobilização imediata da
produção cultural atual, ou seja, um currículo mais aberto às inovações
trazidas pela vivência dos aprendizes. Assim, nos cursos de Licenciatura
foi dada uma ênfase especial para o conhecimento prático adquirido nos
estágios. No Ensino Médio, destacou-se a inserção de temas contemporâneos
nas sugestões apontadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais e Orientações
Curriculares. É neste contexto que pesquisadores, professores e futuros
professores se voltam para a produção de novos materiais didáticos, sobre
temas muitas vezes já amplamente divulgados pelos meios de comunicação,
buscando melhorar o diálogo entre a Escola e a sociedade a que pertence.
A
Teoria do Caos se enquadra entre os temas contemporâneos que despertam
muita polêmica e curiosidade. O movimento histórico que atribuiu ao Caos
o status de campo de investigação científica autorizou a apropriação de
sua terminologia (não-linearidade, sensibilidade às condições iniciais,
atrator estranho, bifurcação, fractal, auto-organização) a diversas áreas
do conhecimento humano e das artes, inaugurando o que poderia ser chamado
de um novo “paradigma”, não no sentido estrito definido por Kuhn, mas
num sentido cultural mais amplo. Em face às instabilidades que caracterizam
a sociedade contemporânea, é razoável que se recorra a um modelo de explicação
científica que reconheça um comportamento complexo em equações simples
e a dificuldade de se obter previsões mesmo em fenômenos não aleatórios.
O
professor da Escola Básica não pode se omitir diante da curiosidade motivada
por esse contexto cultural e continuar a se limitar ao ensino da ciência
linear, previsível e bem comportada e, o que ainda é pior, acreditar que
é a única que existe. Junto com a Teoria da Relatividade e a Mecânica
Quântica, a Teoria do Caos acrescenta novas formas de compreender a produção
científica. Gleick cita a afirmação do físico Joseph Ford:
“A
relatividade eliminou a ilusão newtoniana sobre o espaço e o tempo absolutos;
a teoria quântica eliminou o sonho newtoniano de um processo controlável
de mensuração; e o caos elimina a fantasia laplaciana da previsibilidade
determinista”. [Gleick, 1987:5]
A
principal contribuição do ensino da Teoria do Caos na formação docente
é questionar a confiabilidade na capacidade de previsão da Ciência. É
necessário discutir as aproximações provocadas pela linearização, esclarecer
que na realidade poucos sistemas reais são lineares e que a previsibilidade
tem um alcance mais limitado do que transparece nas leis físicas, em função
da dificuldade em se conhecer com exatidão as condições iniciais.
O estudo
do Caos permite também demonstrar que sistemas simples podem apresentar
comportamentos complicados, subvertendo a noção comum de que comportamentos
complicados só podem ser obtidos de sistemas complicados. Certos fenômenos
puderam ser equacionados, ainda que aproximadamente, através de sistemas
bem mais simples do que o pressuposto (a turbulência em fluidos, diversos
mecanismos de regulação do metabolismo humano, etc.). Por outro lado,
encontra-se comportamento caótico em sistemas aparentemente simples (certos
circuitos eletrônicos, as batidas do coração, etc.).
Outro
argumento em favor do ensino desta teoria é a possibilidade de apropriação
de ferramentas de programação computacional. A maioria dos sistemas dinâmicos
não-lineares não têm solução analítica. A única maneira de saber as condições
futuras desses sistemas é recorrer à integração numérica. Mesmo que não
seja exigido o domínio da programação computacional para o aprendizado
da Teoria, o simples manuseio de um programa de compilação, o contato
com a noção de algoritmo e a leitura dos comandos de uma linguagem de
programação podem contribuir para romper a condição de mero usuário imposta
pela sofisticada “caixa preta” da interface gráfica composta de ícones
e janelas.
Por
último, mas não menos importante, a Teoria do Caos carrega um forte caráter
multidisciplinar desde a sua criação, como se pode perceber neste artigo.
Embora tenha um forte viés matemático e grande apropriação pelos físicos,
pesquisadores de diversas áreas do conhecimento contribuíram para a sua
conceitualização e continuam adaptando ou desenvolvendo ferramentas para
estudar o comportamento caótico. Um curso introdutório desta teoria não
pode deixar de transparecer essa característica.
Um
grupo de alunos da disciplina Metodologia e Prática de Ensino de Física
da UFSC, no segundo semestre de 2004, produziu um sítio de divulgação
sobre Caos utilizando basicamente informações obtidas na rede Internet.
Em entrevista, ao final da participação no mini-curso citado, no início
de 2006, a grande maioria dos licenciandos admitiu ser possível uma adaptação
para o Ensino Médio. A partir deste mini-curso, direcionado para professores
em formação ou formados, disponível na rede, pretende-se ampliar o debate
sobre a inserção do tema Caos no Ensino Médio.
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