Instituto de Física - UFG

Mini-curso: Introdução ao Caos em Sistemas Dinâmicos

 

A Formação de Professores e a História da Teoria do Caos

Paulo Celso Ferrari1,4,5
[email protected]

José André P. Angotti
3,4,6
[email protected]

Marcelo H. R. Tragtenberg
2,6
[email protected]

  1 Instituto de Física da UFG
2
Departamento de Física da UFSC
3
Departamento de Metodologia do Centro de Educação da USFC
4
Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica da UFSC
5 Apoio CAPES   6 Apoio CNPq

 

Resumo

 

            Neste trabalho serão resgatados aspectos da história e da filosofia da Teoria do Caos no intuito de contribuir para que sejam incorporados à formação de professores de Física. Procura-se justificar porque o estudo do comportamento caótico desestabiliza a confiança no poder de previsibilidade da Física Clássica e pode modificar a visão de Ciência dos professores.

 

Introdução

 

Após alguns anos trabalhando com alunos de Licenciatura que já exercem a profissão de professor no Ensino Médio é possível perceber que adotam uma visão de Ciência essencialmente positivista. Influenciados pela resolução de problemas “de lápis e papel”, vêem o mundo de forma completamente determinística. Depositam uma confiança excessiva nas leis físicas. Acreditam na existência de comprovação experimental das teorias mas evitam se confrontar com as dificuldades práticas de se obter dados experimentais. Assim, as condições iniciais são sempre valores muito bem definidos e a “resposta” final inquestionável. Essa visão dificulta-lhes a compreensão de leis quânticas e relativísticas, que de alguma forma contradizem as leis de Newton. Desconhecem a fragilidade das próprias leis clássicas no que se refere às reais possibilidades de previsibilidade de uma lei determinística. Muitos já ouviram falar na Teoria do Caos mas a maioria preserva o sentido do senso comum de completa desordem e aleatoriedade. Os cursos de Licenciatura em Física não contribuem satisfatoriamente para modificar essa visão. Por exemplo, não se registra a participação de licenciandos na disciplina optativa Caos em Sistemas Dinâmicos oferecida pelo curso de Física da UFSC. Porém, foi possível observar o grande interesse dos licenciandos pelo tema através de um mini-curso oferecido pelo primeiro autor deste artigo em uma disciplina integradora daquele curso [1] .

A palavra Caos tem diversas conotações na linguagem usual, porém, sua utilização para definir um comportamento dinâmico foi proposta por Tien-Yen Li e James A. Yorke, num artigo de 1975 intitulado Period tree implies chaos. Concebida em meio a grandes controvérsias suscitadas pela Relatividade e pela Mecânica Quântica, no início do século XX, a Teoria do Caos só foi reconhecida enquanto tal nas décadas de 1960 e 1970. Teve uma breve ascensão no plano da divulgação científica nas décadas de 1980 e 1990 mas não chegou a ser incorporada como área fundamental nos programas de Ensino Superior e, conseqüentemente, de Ensino Básico. Provavelmente pela sofisticação matemática e pela forte dependência dos programas de computador, nas Universidades tem permanecido restrita a pesquisadores especialistas e seus alunos de pós-graduação e iniciação científica, apesar do grande interesse e freqüentes especulações que provoca. Numa pesquisa utilizando a técnica Delphi, Ostermann [2000] constatou que a indicação de inserção do tema Caos no Ensino Médio ocupa apenas o 23º lugar na preferência de professores e pesquisadores. Não obstante, existem vários artigos em revistas, livros publicados e principalmente sítios da Internet dedicados ao tema.

Neste artigo iremos resgatar os principais acontecimentos históricos que levaram à descoberta do comportamento caótico, acreditando que o conhecimento da história de uma teoria tem muito a contribuir para o entendimento da mesma [Matthews, 1995, Peduzzi, 2001]. Apesar de ter sido iniciado no século XIX, o estudo qualitativo dos sistemas dinâmicos não-lineares foi modificado radicalmente entre as décadas de 1960 e 1970, com o desenvolvimento de novas técnicas matemáticas e a utilização dos computadores, não mais como máquinas de fazer cálculos, mas como um ambiente de pesquisa científica. Essa modificação foi tão radical que pode-se considerar ter havido uma verdadeira “revolução” no estudo dos sistemas dinâmicos. Uma enorme comunidade aderiu a esta “nova ciência” em um intervalo de tempo muito curto, chegando a ser tema de cerca de 4000 publicações em 15 anos, nas mais diversas áreas do conhecimento [Dresden, 1992]. Nos anos 1970 uma série de conferências internacionais reuniu engenheiros, biólogos, físicos, químicos, entre outros, que trabalhavam com ferramentas da teoria dos sistemas dinâmicos, não como uma teoria matemática “aplicada em”, mas “desenvolvida por” [Aubin, 2002].

            A contribuição que esta teoria oferece para a filosofia da ciência é de extrema importância para a formação de professores. Desenvolvida no seio das equações determinísticas clássicas (equações diferenciais ordinárias), que pressupostamente teriam o poder de prever o comportamento de um sistema, a Teoria do Caos vem revelar a existência de sistemas determinísticos contínuos e discretos cujo comportamento é praticamente imprevisível. A percepção de que o poder de previsibilidade da Ciência é limitado e que sistemas ou iterações simples podem apresentar comportamento complicado pode modificar a visão positivista da Ciência, ainda predominante em professores de Física [Luffiego, 1994].

 

Determinismo e imprevisibilidade

 

            Todo sistema determinista permite fazer previsões sobre seu comportamento futuro a partir do conhecimento exato das condições iniciais e das leis matemáticas que regem seu comportamento. Essa perfeição matemática, no entanto, esbarra na possibilidade real de se definir exatamente as condições iniciais. O sucesso do cálculo diferencial e integral, inaugurado por Isaac Newton (1643-1727) levou alguns cientistas a depositarem um excesso de confiança na capacidade de a ciência fazer previsões. O retorno de um cometa, hoje conhecido pelo sobrenome do astrônomo inglês que calculou a sua órbita, Edmund Halley (1656-1742), viria a reforçar essa confiança. Um exemplo clássico é a afirmação do matemático, astrônomo e físico francês Pierre Simon Laplace (1749-1827):

Uma inteligência que, para um instante dado, conhecesse todas as forças de que está animada a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem, e se além disso essa inteligência fosse ampla o suficiente para submeter esses dados à análise, ela abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto para ela, e tanto o futuro como o passado estariam presentes aos seus olhos. O espírito humano oferece, na perfeição que foi capaz de dar à astronomia, um pequeno esboço dessa inteligência.

            Essa inteligência “ampla o suficiente” é conhecida como “o demônio de Laplace”.

Um século depois a confiança na capacidade de previsão da ciência começava a ser abalada. Na Mecânica Quântica a descrição de fenômenos microscópicos passava a ter uma descrição de caráter essencialmente probabilística. Mas as limitações do determinismo atingiram também os fenômenos macroscópicos. Alguns cientistas, principalmente o matemático, físico e filósofo francês Jules Henri Poincaré (1854-1912), começaram a perceber que a dificuldade de resolução apresentada por certos sistemas dinâmicos não estava limitada à quantidade de técnicas até então existentes, mas havia limitações intrínsecas, diante das quais se podia demonstrar, por exemplo, que certos sistemas sequer admitem solução analítica, não são “integráveis” [2] . Restava para o estudo desses sistemas soluções extremamente trabalhosas, que envolviam um grande número de substituição de valores numéricos.

É o caso do sistema dinâmico envolvendo três corpos [3] – um problema de mecânica celeste tão bem resolvido por Newton no caso de dois corpos. Poincaré enfocou esse problema no seu famoso ensaio de 1890 “Sur le probléme des trois corps et les équations de la dynamique” e na sua coleção de três volumes “Méthodes nouvelles de la mécanique céleste”, produzida entre os anos de 1892 e 1899. Ele provou que o problema de três corpos não é integrável pois o número de equações é insuficiente para resolver o sistema. Além disso, trata-se de um sistema não-linear, que na maioria das vezes é também não integrável. Poincaré, então, desenvolveu novos métodos qualitativos de análise matemática, que deram origem à “topologia”.

Uma outra característica presente no problema de três corpos, para certos parâmetros, viria a perturbar definitivamente a confiança na predição: a sensibilidade apresentada em relação às condições iniciais. Essa sensibilidade levou Poincaré a refletir sobre a possibilidade do conhecimento exato da situação inicial e as conseqüências sobre o comportamento final. Ele observou em Science et Méthode, de 1908:

"Uma causa muito pequena, que nos passa despercebida, determina um efeito considerável que não podemos deixar de ver, e então dizemos que o efeito é devido ao acaso. Se conhecêssemos exatamente as leis da natureza e a situação do universo no momento inicial, poderíamos prever exatamente a situação desse mesmo universo no momento seguinte. Contudo, mesmo que as leis naturais já não tivessem segredos para nós, ainda assim poderíamos conhecer a situação aproximadamente. Se isso nos permitisse prever a situação seguinte com a mesma aproximação, seria tudo o que precisaríamos, e diríamos que o fenômeno tinha sido previsto, que é governado por leis. Mas nem sempre é assim; pode acontecer que pequenas diferenças nas condições iniciais produzam diferenças muito grandes nos fenômenos finais. Um pequeno erro nas primeiras produzirá um erro enorme nas últimas. A previsão torna-se impossível..."

Suas observações estavam bem próximas da caracterização do comportamento caótico.  Existem até historiadores que optam por admitir que Poincaré descobriu o Caos.

Algumas ferramentas hoje utilizadas no estudo dos sistemas dinâmicos, em particular no comportamento caótico, foram criadas ou tiveram seu embrião nos trabalhos de Poincaré. Uma dessas ferramentas, que permite analisar sistemas dinâmicos tridimensionais com métodos análogos aos utilizados num plano, observando o comportamento de uma trajetória em sua vizinhança, é o “mapa do primeiro retorno” ou “mapa de Poincaré”. Outra ferramenta, desenvolvida mais profundamente pelo físico e matemático russo Aleksandr Mikhailovich Lyapunov (1857-1918) e a escola de Gorki (hoje Nizhny Novgorod, na Rússia), surgiu de uma nova conceituação de estabilidade: soluções estáveis eram distinguidas de soluções instáveis por um “coeficiente característico”, hoje conhecido como “expoente de Lyapunov”. O expoente de Lyapunov mede a velocidade de divergência – ou de convergência – de duas trajetórias vizinhas no espaço de fase [4] .

Ildeu de Castro Moreira acrescenta que James Clerk Maxwell (1831-1879), vinte anos antes de Poincaré, já havia advertido a comunidade científica da época sobre a impossibilidade de previsões precisas mesmo em sistemas de poucas partículas. Maxwell não só percebeu esta característica nos sistemas físicos como arriscou-se a tecer considerações filosóficas sobre o livre-arbítrio e as limitações do determinismo [Moreira, 1992].

David Ruelle alinha ao trabalho de Poincaré outros dois cientistas franceses que contribuíram na percepção da sensibilidade às condições iniciais: Jacques Hadamard (1865-1963) e Pierre Duhem (1861-1916).

Num livro para o grande público editado em 1906, Duhem intitulou um parágrafo Exemplo de dedução matemática para sempre inutilizável. Como ele explica, essa dedução matemática é o cálculo de uma trajetória sobre o bilhar de Hadamard. Ela é "para sempre inutilizável" porque uma pequena incerteza, necessariamente presente na condição inicial, dá lugar a uma grande incerteza sobre a trajetória calculada se esperarmos por um tempo suficientemente longo, e isso torna sem valor a predição. [Ruelle, 1991:66]

Hadamard, Duhem e Poincaré perceberam a existência desses sistemas dinâmicos não-lineares com sensibilidade às condições iniciais, porém, essa descoberta não repercutiu imediatamente sobre a comunidade científica. Ruelle discute duas razões que considera terem sido responsáveis pelo enorme atraso na repercussão das idéias de Poincaré e subentende uma terceira razão: a inexistência dos computadores.

Para o intervalo surpreendente que separa Poincaré e os estudos modernos do caos, vejo duas razões. A primeira é a descoberta da mecânica quântica, que revolucionou o mundo da física e ocupou todas as energias de várias gerações de físicos. ...

Vejo uma outra razão para o esquecimento em que caíram as idéias de Hadamard, Duhem e Poincaré: elas vieram muito cedo, não existiam ainda os meios de explorá-las....É preciso notar também que, quando não conseguimos tratar matematicamente um problema, sempre podemos estudá-lo numericamente pelo computador. Mas este método, que desempenhou um papel essencial no estudo do caos, evidentemente não existia no início do século XX. [Ruelle, 1991:68]

Na realidade, apesar de freqüentemente revisitados, até recentemente os trabalhos de Poincaré não foram mobilizados de maneira integrada. Pode-se suspeitar que nem mesmo ele tinha uma visão integrada de suas dezenas de livros e centenas de artigos.

O sucesso dos sistemas dinâmicos lineares, com solução analítica, concentrou a atenção de várias gerações de cientistas. Stewart comenta, com certa dose de ironia, como vinham sendo tratados alguns problemas envolvendo equações não-lineares.

Na época clássica, à falta de técnicas para fazer face a não-linearidades, o processo de linearização foi levado a tais extremos que muitas vezes tinha lugar enquanto as equações estavam sendo formuladas: a equação clássica do calor é linear, antes mesmo que se tente resolvê-la. Acontece que o fluxo de calor real não o é, e, segundo pelo menos um especialista, Clifford Truesdell, por maior que tenha sido o bem que fez para a matemática, a equação clássica do calor só causou prejuízo à física do calor. [Stewart, 1989:92]

Embora tenha sido percebido desde a época de Poincaré, o comportamento caótico em sistemas não-lineares só foi reconhecido enquanto tal no início dos anos de 1960.

 

A não-linearidade no estudo de populações – o mapa logístico

 

                Em meados do século XIX o matemático belga Pierre Francois Verhulst (1804-1849) acrescentou um termo não-linear à equação de evolução de populações sugerida por Thomas Robert Malthus (1766-1834), considerando um fator de mortalidade proporcional ao quadrado da população num determinado instante. Entre os anos de 1970 e 1980 o físico australiano Robert May retomou o trabalho de Verhulst e explorou a equação logística em sua forma discreta, o mapa logístico [5] (ou mapa de bifurcação). Este mapa, representado por uma equação simples [6] com um comportamento complexo, apresenta as principais características do Caos.

May também expressou sua preocupação com as possíveis conseqüências do tratamento inadequado das equações não-lineares. Gleick cita uma afirmação contundente de May sobre a educação científica nos anos setenta.

A ciência do caos deveria ser matéria de ensino, sustentava ele. Era tempo de se reconhecer que a educação padrão de um cientista dava a impressão errônea. Por mais complexa que a matemática linear pudesse ser, com suas transformadas de Fourier, suas funções ortogonais, suas técnicas de regressão, May afirmava que ela inevitavelmente enganava os cientistas sobre o mundo, onde predominava a não-linearidade. "A intuição matemática assim desenvolvida prepara mal o estudante para enfrentar o comportamento bizarro evidenciado pelo mais simples dos sistemas discretos não-lineares", escreveu ele.

"Não só na pesquisa, mas também no mundo cotidiano da política e da economia, estaríamos todos melhores se um maior número de pessoas compreendesse que os sistemas não-lineares simples não dispõem necessariamente de propriedades dinâmicas simples." [Gleick, 1987:75]

Num capítulo onde avalia as aplicações do Caos em Biologia, particularmente o mapa logístico, Ian Stewart também reflete sobre a demora da percepção das propriedades do Caos.

Penso que a resposta é, em parte, que uma visão generalizada da significação do caos teve que esperar até ser descoberta por pessoas que lidavam com sistemas simples o suficiente para permitir a percepção de generalidades, em contextos ligados a aplicações práticas, e num momento em que os computadores tornavam fáceis os estudos numéricos. [Stewart, 1989:288]

Entre 1973 e 1977 foram realizadas várias conferências investigando o comportamento complicado de mapas iterativos, mas pode-se considerar de especial importância a conferência realizada pela Academia de Ciências de New York, entre 31 de outubro e 4 de novembro de 1977, intitulada “Bifurcation theory and aplications in scientific disciplines”, organizada por Okan Gurel. Esta conferência foi dedicada a Eberhard Hopf pelo seu 75º aniversário e consagrou Edward Lorenz pelo seu artigo de 1963, finalmente retomado. Reuniu 74 autores, entre eles vários estudantes de David Ruelle, de Steve Smale, pesquisadores experimentais e teóricos da estabilidade hidrodinâmica, Benoit B. Mandelbrot, Robert May, James A. Yorke, físicos da teoria sinergética de Herman Haken, em Stutgart, químicos da escola das “estruturas dissipativas” de Ilya Prigogine, economistas, biólogos e vários outros [Aubin, 2002].

O estudo do desenvolvimento de populações oferece ainda outro exemplo clássico de comportamento caótico: as equações de Lotka-Volterra. Alfred James Lotka (1880-1949) e Vito Volterra (1860-1940) desenvolveram um sistema de equações tridimensional não-linear que leva em consideração a existência de predadores e a escassez de alimentos.

 

Edward Lorenz e o Efeito Borboleta

 

Apesar de fortemente amparada pela topologia, uma abordagem matemática muito bem desenvolvida, a revelação mais convincente do comportamento caótico aplicado a um problema prático veio através de uma simulação em computador realizada por Edward Norton Lorenz, cujos resultados foram publicados num artigo de 1963 intitulado Deterministic nonperiodic flow [7] . Lorenz simulou o resultado obtido por Barry Saltzmann, que simplificou extremamente o problema da convecção atmosférica até chegar a um sistema com apenas três variáveis dinâmicas, passível de solução numérica confiável e rápida para os computadores da época.

Em suma, ele escreveu as equações simplificadas da convecção térmica que já encontramos com o nome de Rayleigh-Bénard: o ar aquecido pelo Sol sobe e se resfria na alta atmosfera, torna a descer, e o ciclo se repete ao infinito. O modelo simplificado que dele propõe Lorenz faz intervirem apenas três variáveis. Simplificado a esse ponto, podemos adivinhar que ele não será muito útil para previsões atmosféricas reais. No entanto, ele possui os ingredientes necessários para ser representativo de movimentos atmosféricos (é bem verdade que num caso extremamente particular!); por outro lado, ele constitui o modelo teórico de caos determinista mais célebre e mais estudado. As três variáveis do modelo de Lorenz são a temperatura (do ar), a velocidade (do vento) e uma terceira característica da dinâmica, ligada à maneira como a temperatura varia com a altitude.[Bergé, 1994:201]

Tendo que recomeçar seus cálculos no disputado computador Royal McBee LPG-300 de que dispunha, decidiu introduzir um valor impresso já obtido anteriormente e continuar o processamento computacional a partir daquele ponto. Os valores introduzidos, no entanto, tinham um número de dígitos menor que o padrão da máquina. Depois de poucas iterações a seqüência que obteve não coincidia com a anterior. Ao descartar a possibilidade de haver um defeito na máquina ou algum erro de digitação dos dados de entrada, concluiu que tratava-se de uma propriedade daquele sistema de equações. A simples supressão de alguns dígitos nos dados iniciais provocara um grande desvio nos resultados. Aubin e Dalmenico [2002] observam que Lorenz já esperava esse comportamento, ao contrário do que muitos historiadores divulgam, que ele teria se surpreendido após ir tomar um café, ou que teria introduzido no computador os números impressos casualmente faltando algarismos.

A importância de Lorenz está em utilizar o computador como uma forma de modelagem científica, deixando de ser apenas uma calculadora gigante e passando a ser um método experimental, heurístico. Lorenz usa o computador para introduzir duas inovações: 1- provar a propriedade da sensibilidade às condições iniciais (depois chamado de efeito borboleta) e 2- exibir a surpreendente imagem do atrator [8] , sugerida por uma descrição verbal, mas um tanto confusa, por Poincaré. As conclusões apresentadas em seu trabalho de 1963 podem ser resumidas em duas fundamentais: 1- a sensibilidade às condições iniciais é uma característica intrínseca a certos sistemas dinâmicos não-lineares e 2- equações simples podem gerar comportamentos complicados [Aubin, 2002]. Essa revelação passou despercebida por quase dez anos por ter sido publicada no Journal of The Atmospheric Sciences, uma revista de Meteorologia pouco consultada pelos físicos e matemáticos.

A metáfora da borboleta que provoca um tornado nasceu em uma palestra apresentada por Lorenz no 139° encontro da Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Washington, D.C, em 29 de dezembro de 1972 – publicada pelo autor em seu livro The Essence of Chaos –, intitulada Predictability: Does the Flap of a Butterfly's Wings in Brazil Set off a Tornado in Texas? [9] (Previsibilidade: A Batida das Asas de uma Borboleta no Brasil Provoca um Tornado no Texas?). A escolha do Brasil e do Texas se deve ao efeito sonoro das combinações de palavras (butterfly-Brazil, tornado-Texas) e ao fato de estarem localizados em hemisférios diferentes, o que dificulta a análise do efeito do bater das asas [Lorenz, 1995]. O autor não responde à questão que levanta, mas a borboleta viria a se transformar num símbolo de sensibilidade às condições iniciais. O sucesso dessa metáfora se deve também à aparência de borboleta na representação do atrator de Lorenz no plano XZ (Figura 1) e à grande repercussão do livro de James Gleick, onde o “Efeito Borboleta” aparece como título do primeiro capítulo [Hilborn, 2004].

Figura 1 – o atrator de Lorenz no plano XZ

 

Em setembro de 1973, em Toulouse, organizado por Cristian Mira, uma conferência internacional intitulada “Transformations ponctuelles et applications” reuniu os pioneiros da Ciência não-linear como M. Hénon, J. H. Bartlet, C. Froeschle e também alguns cientistas soviéticos, incluindo B. V. Chirikov. A característica principal dos trabalhos dessa conferência foi o uso proeminente do computador em problemas de Mecânica Celeste e projetos de Aceleradores de Partículas. Entre 1964 e 1974 essa linha de pesquisa estava relacionada a problemas práticos, postulados por diversas áreas de engenharia que chegaram a desenvolver métodos matemáticos próprios para computação [Aubin, 2002].

 

A ferradura de Steve Smale

 

            Além do trabalho de Lorenz, Bergé enumera três trabalhos importantes entre o fim dos anos 1960 e o começo dos anos 1970, que marcam o nascimento da Teoria do Caos: 1- um deles é o artigo do matemático norte-americano Steve Smale de 1967: Differentiable dynamical systems; 2- o outro do matemático e astrônomo francês Michel Hénon com seu colaborador Carl Heiles, de 1969: Numerical exploration of the restricted problem; e 3- o artigo de David Ruelle e Floris Takens, de 1971: On the nature of turbulence.

1- Trabalhando com sistemas dinâmicos discretos, em 1967 Smale percebe o mecanismo topológico responsável pelo comportamento errático de sistemas aparentemente bem comportados. Esse mecanismo veio a ser conhecido pela sucessão de duas transformações geométricas do espaço de fase, estique e dobre, responsáveis pelo mapeamento que ficou famoso por gerar uma figura parecida com uma ferradura. Ruelle cita este artigo como sendo a influência mais decisiva na descoberta dos atratores estranhos e reconhece a influência de Smale sobre toda uma geração de pesquisadores, da qual fez parte.

O próprio Smale identifica, em um artigo de 1998, intitulado Chaos: find a horseshoe in the beachs of Rio, a confluência de três “tradições” de pesquisa em seu trabalho: a) a primeira tradição diz respeito ao estudo realizado pelos matemáticos ingleses Mary Cartwright (1900-1998) e John Littlewood (1885-1977), que investigavam a equação desenvolvida por Balthasar van der Pol; b) a segunda tradição vem com George David Birkhoff (1884-1944), um dos raros matemáticos norte-americanos que estudava os trabalhos de Poincaré e professor do jovem Edward Lorenz, no M.I.T., por um breve período; c) e a terceira o trabalho de matemáticos soviéticos da Escola de Gorki aos quais ele teve uma primeira introdução em Princeton, logo após a segunda guerra mundial, através de um grupo liderado por Solomon Lefschetz. Essa Escola tem início nos anos 1930 com Alexander Andronov (1901-1952) e Lev Pontryagin (1908-1988).

a) Segundo Smale [1999], ele estava no Rio de Janeiro quando leu uma carta de Norman Levinson sobre resultados que Cartwright e Littlewood tinham obtido, contrariando conclusões suas publicadas recentemente.

A equação de van der Pol,..., é um oscilador não-linear. Cartwright e Littlewood demonstraram que, sob condições adequadas, um oscilador forçado de van der Pol exibe um complicado movimento aperiódico. Hoje podemos ver que essa foi uma das primeiras descobertas do caos. Seu trabalho foi parte do esforço de guerra. Eletrônica significava radar, e não foi por coincidência que a equação de van der Pol surgiu no campo da eletrônica. [Stewart, 1989:161]

O contato com esses resultados o levaram a descobrir o mecanismo da ferradura.

b) Recebeu influências de Birkhoff folheando a coletânia de obras da biblioteca do IMPA (Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada). Birkhoff havia se aprofundado na “conjectura de Poincaré”, sobre a existência de “pontos homoclínicos” e Smale concluiu que os pontos homoclínicos também continham uma ferradura.

A história dos sistemas dinâmicos, nesse período, também contou com a colaboração de um brasileiro, Maurício Peixoto [Garcia, 2003], ainda hoje pesquisador do IMPA. Peixoto trabalhava com Lefschetz, em Princeton. Utilizando um tratamento topológico, em 1959, provou que a maioria dos sistemas bidimensionais são “estruturalmente estáveis” [10] . Neste mesmo ano, apresentado por Elon Chaves, recebeu no Rio de Janeiro o matemático Steve Smale. Seus resultados impressionaram Smale.

c) Foi através de Peixoto que Smale entrou em contato com a Escola de Gorki e o conceito de “estabilidade estrutural”. Este contato não só o levou à solução da “conjectura de Poincaré” em dimensões maiores que 4 mas também permitiu obter outros resultados em topologia [Smale, 1999].

Além de Lyapunov, Andronov e Pontryagin, outro importante matemático soviético foi Andrei Nikolaevich Kolmogorov (1903-1987).

Na área que nos diz respeito, ele é conhecido por ter previsto com sucesso a repartição espectral das flutuações de um fluido muito turbulento, uma contribuição fundamental que explica como a energia das flutuações turbulentas se reparte em função de sua escala espacial. Igualmente célebre é o teorema KAM (dos nomes de Kolmogorov, Arnold e Moser), que trata da estabilidade dos regimes quase-periódicos nos sistemas conservativos, como o problema dos três corpos (1954). ... Duas outras contribuições importantes de Kolmogorov relacionam-se com a área do caos, o conceito de entropia de Kolmogorov e o de complexidade algorítmica (1958) [Bergé, 1994:265]

Smale inaugurou uma linguagem própria (com termos como difeomorfismo, homeomorfismo, etc.) tornando-se quase incompreensível para praticantes de outras disciplinas. Somente quando entrou em contato com René Thom (criador da Teoria da Catástrofe), a partir de 1970, passou a ser entendido e aplicado em economia, mecânica celeste, circuitos eletrônicos, biologia, entre outros campos de pesquisa.

2- O artigo do astrônomo do observatório de Nice, Michel Hénon, com seu jovem colaborador Carl Heiles, dava uma solução elegante ao problema dos três corpos de Poincaré. Ficou demonstrado definitivamente que um sistema conservativo de três corpos pode manifestar comportamento caótico. Hénon interessou-se também pelo problema da turbulência em fluídos, para o qual contribuiu com um modelo exemplar [11] .

Alguns anos depois (1976), o mesmo M. Hénon e um de nós (Y. P.) propúnhamos uma iteração simples de duas dimensões que permitia obter o famoso "atrator de Hénon", que se tornou um modelo muito clássico no estudo do caos dissipativo. [Bergé, 1994:268]

3- No artigo de 1971, estudando um modelo para a turbulência em fluidos, Ruelle e Takens identificaram um novo tipo de atrator e o chamaram de “atrator estranho” [12] . Este trabalho teve um impacto considerável na comunidade científica, propiciando o aparecimento de diversos grupos de pesquisa em mecânica dos fluidos.

É curioso saber que, como até confessou um desses autores, eles não conheciam nem o artigo de Lorenz nem certas idéias de Poincaré acerca da instabilidade das trajetórias. [Bergé, 1994:266]

            Foi no contexto da pesquisa em modelos matemáticos para a turbulência que o comportamento caótico começou a sair do imaginário matemático e passou representar modelos para fenômenos reais.

 

A Turbulência, a duplicação de períodos e a universalidade de Feigenbaum

 

Os pesquisadores em Mecânica dos Fluidos vinham há muito tempo tentando um modelo para o fenômeno da turbulência. O artigo de Ruelle e Takens começava a indicar uma nova direção, identificando inconsistência matemática em modelos até então muito bem estruturados, como o modelo dos “modos”.

            A dupla de cientistas não se limitou ao trabalho teórico e logo contatou uma equipe de cientistas experimentais, trabalhando especificamente na questão da rota para a turbulência. O modelo matemático de Ruelle e Takens levava a crer que as sucessivas etapas entre a passagem do regime estacionário para o turbulento eram marcadas por descontinuidades muito mais bruscas que as previstas pelo modelo anterior. Mas até então não passavam de resultados meramente matemáticos.

Ian Stewart também discute este episódio histórico no livro “Será que Deus Joga Dados?”. Embora não tão diretamente envolvido quanto Ruelle e Bergé, descreve muito bem a polêmica em torno da turbulência. O distanciamento de Stewart age a seu favor quando descreve as respectivas contribuições de Navier, Stokes, Landau, Hopf, Couette, Taylor, Ruelle, Takens, Gollub, Swinney, entre outros.

            Poincaré já havia advertido sobre sistemas que comportam-se de maneira regular para alguns parâmetros e passam a ter comportamento errático quando esses parâmetros são modificados, mas foi no estudo da transição do regime de escoamento laminar para o turbulento que se desenvolveram grandes controvérsias a respeito dessa propriedade. Vários modos de transição foram identificados, sendo que três deles se mostraram mais comuns: intermitência, quase-periodicidade e duplicação de período.

O modo de transição por duplicação de período, proposta por Mitchell Feigenbaum quando estudava certas características do “mapa logístico”, surgiu em plena efervescência do nascimento do Caos enquanto nova linha de pesquisa e causou um grande impacto na comunidade científica. Feigenbaum percebeu a existência de relações matemáticas “universais” entre as sucessivas bifurcações presentes nesse modo de transição. Foi tão grande a repercussão dessa descoberta que pode-se incluí-la entre um dos fatos científicos que se tornaram um verdadeiro fenômeno publicitário. Um fato curioso é que o trabalho de Feigenbaum sequer tinha rigor exigido pelos matemáticos, mas a beleza dos resultados e o aval de um resultado experimental executado com grande rigor tecnológico por Albert Libchaber o consagraram definitivamente. Libchaber estudou a transição para a turbulência utilizando o hélio líquido num compartimento muito pequeno, o que eliminava grande parte do “ruído” dos sistemas fluidos, e obteve resultados experimentais muito favoráveis à intuição de Feigenbaum [Aubin, 2002].

É importante ressaltar que, apesar de todos esses avanços, o problema da turbulência ainda não está de todo resolvido. Por exemplo, não se sabe se a turbulência real satisfaz à invariância de escala, como prevê a teoria de Kolmogorov. Essa teoria supõe que a turbulência seja espacialmente homogênea, o que pode não ser verdade.

            Além do estudo da turbulência uma série de outros experimentos vieram a corroborar os comportamentos matemáticos previstos pela Teoria do Caos. O primeiro, ou um dos primeiros, foi um sistema mecânico do tipo oscilador amortecido forçado, desenvolvido por uma equipe da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos em 1979.

A pesquisa experimental forneceu uma base ainda mais sólida ao estudo do Caos nos anos 1980, quando surgiram novos métodos matemáticos de análise de dados. Métodos que possibitaram reconstruir um atrator num espaço de fases n-dimensional a partir de uma única série temporal – o mais utilizado é o método das coordenadas retardadas (time delay) – e outros que permitiram medir a dimensão do atrator, cruciais para o estudo do comportamento de um sistema dinâmico experimental. A partir desses métodos tornou-se possível a identificação de comportamentos caóticos em experimentos reais.

... Em 1983, alguns físicos teóricos – por um lado, P. Grassberger e I. Proccacia, por outro lado a equipe americana de J. D. Farmer, E. Ott e J. A. Yorke – propuseram, praticamente ao mesmo tempo, meios para calcular a dimensão topológica dos atratores reconstruídos com base em sinais experimentais. [Bergé, 1994:272]

Os atratores estranhos geram figuras com dimensão fracionária, conhecidas como Fractais. Através do cálculo dessa dimensão [13] pode-se inferir algumas características do comportamento caótico.

A relação entre o comportamento caótico e a dimensão fracionária do atrator estranho contribuiu para se estabelecer uma estreita, porém enganosa, ligação entre o Caos e os Fractais. Embora também tenha extensões na teoria dos sistemas dinâmicos não-lineares – diversas figuras fractais são geradas por sistemas de equações não-lineares –, a história dos Fractais e suas aplicações se desenvolveu de forma totalmente independente da história do Caos. A grande maioria dos fractais não tem nenhuma ligação com o comportamento caótico.

 

O sucesso da Teoria e sua contribuição para a epistemologia

 

Os anos de 1980 vieram a consagrar um enorme desenvolvimento da Teoria do Caos. James Gleick descreve os desdobramentos do sucesso da teoria nos meios acadêmicos no período de maior efervescência do estudo do Caos num capítulo intitulado “Revolução”.

Os caoticistas ou caologistas (esses neologismos eram ouvidos) começaram a surgir com desproporcional freqüência nas listas anuais de bolsas e prêmios importantes. Em meados da década de 80 um processo de difusão acadêmica tinha levado os especialistas em caos a posições de influência nas burocracias universitárias.[Gleick, 1987:34]

            Mas esse sucesso teve seu período áureo, conforme comenta David Ruelle. Os resultados mais atuais em física não têm provocado a mesma euforia de décadas anteriores.

 Esse sucesso foi benéfico para as matemáticas, nas quais a teoria dos sistemas dinâmicos diferenciáveis ganhou com as idéias novas sem degradar a atmosfera de pesquisa (a dificuldade técnica das matemáticas torna difícil a enganação). Na física do caos, infelizmente, o sucesso foi acompanhado de um declínio da produção de resultados interessantes, e isso apesar dos anúncios triunfalistas de resultados retumbantes. Quando as coisas se tiverem assentado e apreciarmos sobriamente a dificuldade dos problemas que se colocam, talvez vejamos surgir uma nova onda de resultados de alta qualidade.[Ruelle, 1991:98]

Apesar dos resultados mais recentes não terem a qualidade esperada por Ruelle, a Teoria do Caos deixou um grande legado à filosofia da ciência e em especial à epistemologia.

Além de transformar em “demônio” a inteligência hipotética de Laplace, desequilibrando a confiança na capacidade de previsão da ciência, o Caos expandiu o conceito de irreversibilidade aos sistemas conservativos, afinal, a inexatidão das condições iniciais as tornam irrecuperáveis se o sistema for altamente sensível [Prigogine, 1996].

O estudo dos sistemas dinâmicos se apropriou e contribuiu para a evolução de uma ferramenta tecnológica de impacto sem precedentes na história da Ciência: o computador. Entre os anos de 1960 e 1970 viu-se emergir uma nova e revolucionária forma de produção científica com novos métodos de pesquisa baseados na utilização de computadores, uma verdadeira revolução epistemológica que acentuou a estreita dependência entre ciência e tecnologia, inaugurando uma autêntica “tecnociência”. Aos procedimentos experimentais “in vivo” e “in vitro” veio se somar o “in silico”.

O caos tornou-se não apenas teoria, mas também método; não apenas um cânone de crenças, mas também uma maneira de fazer ciência. O caos criou sua técnica própria de usar computadores, técnica que não exige a enorme velocidade dos Crays e Cybers, mas até favorece terminais modestos que permitem interação flexível. Para os pesquisadores do caos, a matemática tornou-se uma ciência experimental, com o computador substituindo os laboratórios cheios de tubos de ensaio e microscópios.[Gleick, 1987:34]

            Outra implicação epistemológica diz respeito à limitação da reprodução de experimentos em laboratório. Sistemas que apresentam comportamento caótico dificilmente serão passíveis de repetição exata, na qual, partindo-se de uma determinada condição inicial chega-se à uma mesma condição final. Essa dificuldade marcou a ciência contemporânea com um traço de imprevisibilidade.

A imprevisibilidade, porém, não foi a única razão pela qual físicos e matemáticos começaram a levar os pêndulos novamente a sério nas décadas de 1960 e 1970.

Os estudiosos da dinâmica caótica descobriram que o comportamento irregular de sistemas simples agia como um processo criativo. Gerava complexidade: padrões de organização variada, por vezes estáveis e por vezes instáveis, por vezes finitos e por vezes infinitos, mas sempre com o fascínio das coisas vivas.[Gleick, 1987:38]

            Os padrões aos quais Gleick se refere são estudados sob a denominação geral de auto-organização [Debrun, 1996; Nussenzveig, 1999]. Diversos sistemas até então inexplicáveis (principalmente os sistemas biológicos, como o funcionamento do cérebro e as propriedades do DNA) encontram indícios de explicação na teoria da auto-organização. No entanto, todo este fascínio ainda permanece ausente das escolas.

 

A formação de professores

 

            A partir da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, foi inaugurada uma reformulação de todo o sistema educacional brasileiro. Esta reformulação modificou profundamente as diretrizes da educação formal inicial, a Educação Básica, bem como, paralelamente, da formação de professores. O ensino por “competências” gerou uma fértil discussão que provocou uma profunda revisão dos currículos, tanto da Educação Básica quanto da Educação Superior, em especial, dos cursos de Licenciatura. Desenvolver competências implica em adotar um currículo que garanta a democratização das conquistas culturais acumuladas historicamente mas que possibilite a mobilização imediata da produção cultural atual, ou seja, um currículo mais aberto às inovações trazidas pela vivência dos aprendizes. Assim, nos cursos de Licenciatura foi dada uma ênfase especial para o conhecimento prático adquirido nos estágios. No Ensino Médio, destacou-se a inserção de temas contemporâneos nas sugestões apontadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais e Orientações Curriculares. É neste contexto que pesquisadores, professores e futuros professores se voltam para a produção de novos materiais didáticos, sobre temas muitas vezes já amplamente divulgados pelos meios de comunicação, buscando melhorar o diálogo entre a Escola e a sociedade a que pertence.

A Teoria do Caos se enquadra entre os temas contemporâneos que despertam muita polêmica e curiosidade. O movimento histórico que atribuiu ao Caos o status de campo de investigação científica autorizou a apropriação de sua terminologia (não-linearidade, sensibilidade às condições iniciais, atrator estranho, bifurcação, fractal, auto-organização) a diversas áreas do conhecimento humano e das artes, inaugurando o que poderia ser chamado de um novo “paradigma”, não no sentido estrito definido por Kuhn, mas num sentido cultural mais amplo. Em face às instabilidades que caracterizam a sociedade contemporânea, é razoável que se recorra a um modelo de explicação científica que reconheça um comportamento complexo em equações simples e a dificuldade de se obter previsões mesmo em fenômenos não aleatórios.

O professor da Escola Básica não pode se omitir diante da curiosidade motivada por esse contexto cultural e continuar a se limitar ao ensino da ciência linear, previsível e bem comportada e, o que ainda é pior, acreditar que é a única que existe. Junto com a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica, a Teoria do Caos acrescenta novas formas de compreender a produção científica. Gleick cita a afirmação do físico Joseph Ford:

“A relatividade eliminou a ilusão newtoniana sobre o espaço e o tempo absolutos; a teoria quântica eliminou o sonho newtoniano de um processo controlável de mensuração; e o caos elimina a fantasia laplaciana da previsibilidade determinista”. [Gleick, 1987:5]

A principal contribuição do ensino da Teoria do Caos na formação docente é questionar a confiabilidade na capacidade de previsão da Ciência. É necessário discutir as aproximações provocadas pela linearização, esclarecer que na realidade poucos sistemas reais são lineares e que a previsibilidade tem um alcance mais limitado do que transparece nas leis físicas, em função da dificuldade em se conhecer com exatidão as condições iniciais.

            O estudo do Caos permite também demonstrar que sistemas simples podem apresentar comportamentos complicados, subvertendo a noção comum de que comportamentos complicados só podem ser obtidos de sistemas complicados. Certos fenômenos puderam ser equacionados, ainda que aproximadamente, através de sistemas bem mais simples do que o pressuposto (a turbulência em fluidos, diversos mecanismos de regulação do metabolismo humano, etc.). Por outro lado, encontra-se comportamento caótico em sistemas aparentemente simples (certos circuitos eletrônicos, as batidas do coração, etc.).

Outro argumento em favor do ensino desta teoria é a possibilidade de apropriação de ferramentas de programação computacional. A maioria dos sistemas dinâmicos não-lineares não têm solução analítica. A única maneira de saber as condições futuras desses sistemas é recorrer à integração numérica. Mesmo que não seja exigido o domínio da programação computacional para o aprendizado da Teoria, o simples manuseio de um programa de compilação, o contato com a noção de algoritmo e a leitura dos comandos de uma linguagem de programação podem contribuir para romper a condição de mero usuário imposta pela sofisticada “caixa preta” da interface gráfica composta de ícones e janelas.

Por último, mas não menos importante, a Teoria do Caos carrega um forte caráter multidisciplinar desde a sua criação, como se pode perceber neste artigo. Embora tenha um forte viés matemático e grande apropriação pelos físicos, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento contribuíram para a sua conceitualização e continuam adaptando ou desenvolvendo ferramentas para estudar o comportamento caótico. Um curso introdutório desta teoria não pode deixar de transparecer essa característica.

Um grupo de alunos da disciplina Metodologia e Prática de Ensino de Física da UFSC, no segundo semestre de 2004, produziu um sítio de divulgação sobre Caos [14] utilizando basicamente informações obtidas na rede Internet. Em entrevista, ao final da participação no mini-curso citado, no início de 2006, a grande maioria dos licenciandos admitiu ser possível uma adaptação para o Ensino Médio. A partir deste mini-curso, direcionado para professores em formação ou formados, disponível na rede, pretende-se ampliar o debate sobre a inserção do tema Caos no Ensino Médio.

 

Referências Bibliográficas

 

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BERGÉ, Pierre; POMEAU, Yves; DUBOIS-GANCE, Monique (1996) – Dos ritmos ao caos – São Paulo: Editora da UNESP.

DEBRUN, M.; GONZALES, M. E. Q. e PESSOA JR, O (orgs) (1996) – Auto-organização: estudos interdisciplinares em filosofia, ciências naturais e humanas e artes – (Coleção CLE, v. 18) – Campinas, SP: Unicamp.

DRESDEN, Max (1992) – Chaos: A New Scientific Paradigm - or Science by Public Relations? An historically oriented pedagogical essay - Part I – The Physics Teacher, vol. 30, jan..

GARCIA, Ronaldo Alves (2003) – Sistemas dinâmicos no Brasil – Palestra ministrada no IX Seminário de Iniciação Científica da UFG em dezembro de 2001 e na Jornada de Matemática de Rialma em julho de 2003.

GLEICK, James (1989) – Caos: a criação de uma nova ciência – Rio de Janeiro: Editora Campus.

HILBORN, Robert C. (2004) – Sea gulls, butterflies and grasshoppers: A brief history of the butterfly effect in nonlinear dynamics – American Journal of Physics, 72 (4), April – American Association of Physics Teacher. doi: 10.1119/1.1636492.

LORENZ, Edward Norton (1995) – The Essence of Chaos – USA: University of Washington Press.

LUFIEGO, M; BASTIDA, M. F.; RAMOS, F.; SOTO, J. (1994) – Epistemologia, Caos y Enseñanza de las Ciências – Enseñanza de las Ciências, vol. 12, nº 1 – Barcelona: ICE de la Universitat Autônoma de Barcelona.

MATTHEWS, Michael R. (1995) – História, filosofia e ensino de ciências: a tendência atual de reaproximação – Caderno Catarinense de Ensino de Física, vol. 12, nº 3 – Florianópolis: UFSC.

MOREIRA, Ildeu de Castro (1992) – Os primórdios do Caos Determinístico – Revista Ciência Hoje, vol. 14, nº 80 – São Paulo: SBPC.

______________________ (1993) – Sistemas Caóticos em Física – Uma Introdução – Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 15 nºs 1 a 4 – São Paulo: USP.

______________________ (1999) – Fractais – In. NUSSENSVEIG, Moysés (org.) (1999) – Complexidade e Caos – Rio de Janeiro: Editora UFRJ/COPEA.

NUSSENSVEIG, Moysés (org.) (1999) – Complexidade e Caos – Rio de Janeiro: Editora UFRJ/COPEA.

OSTERMANN, Fernanda (2000) – Tópicos de Física Contemporânea em escolas de nível médio e na formação de professores – Tese de Doutorado – Instituto de Física, UFRGS.

PEDUZZI, Luiz O. Q. (2001) – Sobre a utilização didática da História da Ciência – In. PIETROCOLA, Maurício (org.) – Ensino de Física: conteúdo, metodologia e epistemologia numa concepção integradora – Florianópolis: Editora da UFSC.

PIQUEIRA, José Roberto C. (1996) – Estabilidade Estrutural e Organização – In DEBRUN, M.; GONZALES, M. E. Q. e PESSOA JR, O (orgs.) – Auto-organização: estudos interdisciplinares em filosofia, ciências naturais e humanas e artes – (Coleção CLE, v. 18) – Campinas, SP: Unicamp.

PRIGOGINE, Ilya (1996) – O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza – São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista.

RUELLE, David (1993) – Acaso e Caos – São Paulo: Editora da UNESP.

SILVEIRA, Fernando Lang da (1993) – Determinismo, previsibilidade e Caos – Caderno Catarinense de Ensino de Física, vol. 10, nº 2 – Florianópolis: UFSC.

SMALE, Steve (1999) – Uma ferradura nas praias do Rio de Janeiro – Ciência Hoje, vol. 26 – nº 156. SBPC.

STEWART, Ian (1989) – Será que Deus Joga Dados? – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

 

Sítios Citados (última visita em 21/09/2006)

 

Projeto Caos – publicado por Paulo Celso Ferrari:

http://www.geocities.ws/projeto_caos_ufg

Animação em Flash para o problema dos 3 corpos – produzido pelo grupo UPSCALE da Universidade de Toronto:

http://www.upscale.utoronto.ca/GeneralInterest/Harrison/Flash/Chaos/ThreeBody/ThreeBody.html

Applet em Java para o mapa logístico – produzido por António Miguel de Campos:

http://to-campos.planetaclix.pt/fractal/caos.html

Applet em Java para o Atrator de Hénon – produzido por Marcos Luiz Mucheroni:

http://www.marcosmucheroni.pro.br/Henon.html

Sítio da disciplina Metodologia e Prática de Ensino de Física da UFSC:

http://www.ced.ufsc.br/men5185/

 

Notas:

[1] Acesse uma versão preliminar deste mini-curso na página http://www.geocities.ws/projeto_caos_ufg.

[2] Uma noção de integrabilidade pode ser encontrada em Moreira [1993].

[4] Simplificadamente, espaço de fase é o espaço de representação das principais variáveis dinâmicas de um sistema.

[5] Um applet que simula o mapa logístico pode ser encontrado em:

http://to-campos.planetaclix.pt/fractal/caos.html .

[6] A forma geral do mapa logístico é Xn+1=µXn(1 – Xn). Cada termo seguinte é obtido a partir do anterior.

[7] Cópia do artigo original e uma versão traduzida pode ser obtida no site http://www.geocities.ws/projeto_caos_ufg

[8] Atrator é a região do espaço de fase para onde o sistema dinâmico tende num futuro muito distante.

[9] Cópia do original e uma versão traduzida pode ser encontrada no site http://www.geocities.ws/projeto_caos_ufg

[10] Veja o conceito de estabilidade estrutural em Piqueira [1996].

[11] O atrator de Hénon pode ser visualizado na página http://www.marcosmucheroni.pro.br/Henon.html

[12] “Estranho” por não se enquadrar nas duas possibilidades até então conhecidas: ponto e círculo.

[13] veja um exemplo em Moreira [1999].

[14] Publicado na página da disciplina: http://www.ced.ufsc.br/men5185/ .

 


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