O Traje Académico em Coimbra
Ao
contrário do que possa pensar-se, a Universidade
Portuguesa [1] não teve um
uniforme instituído desde o princípio,
nem para os estudantes, nem para os professores. Não
significa isto, no entanto, que o seu vestuário
não estivesse regulamentado, antes pelo contrário.
Na Idade Média, e em parte até ao Liberalismo,
o peso do gosto individual na forma de vestir era muito menor
do que actualmente: a indumentária devia reflectir
claramente o lugar de cada indivíduo na ordem
social.[2] Assim, o vestuário dos elementos
da Corporação Universitária tinha que
espelhar de alguma forma a pertença a essa corporação.
Havia, por um lado, diversas limitações oficiais
a esse vestuário, de forma a torná-lo sóbrio,
decente, e a impedir que colidisse com os privilégios
e características próprias dos trajes de outros
elementos da sociedade (certas cores e certos tecidos,
por exemplo, estavam reservados a determinados estatutos sociais). Nos Estatutos de 1431, D. João I mandou que
D. Manuel I, por volta de 1503, D. João III, na "Ordenança para os estudantes da Universidade de Coimbra", de 1539:
E D. João IV, nos Estatutos de 1653 (chamados Estatutos Velhos):
Por
outro lado, a Universidade estava intimamente ligada à
Igreja, era efectivamente uma instituição
eclesiástica, e uma grande parte dos estudantes
e mestres eram clérigos. É pois natural
que os universitários adoptassem uma maneira
de vestir eclesiástica. António Nunes (em
"Subsídio...", pág. 405-406) dá-nos
uma caracterização do vestuário
dos estudantes de Coimbra nos séculos XVI e XVII:
As
lobas dos colégios eram de cores variadas (dentre as que
não eram proibidas, claro): em Todos os Santos
usavam o pardo, em S. Miguel roxo escuro, em S. Paulo castanho
escuro, etc. Mas o preto viria a dominar.[9] Desta forma, no seu início, o objectivo principal do Traje Académico, não era, como muitas vezes se diz, igualizar os estudantes, mas antes fazer distinguir os académicos na sociedade.[10] A igualização entre estudantes acontecia (até certo ponto) porque, vindo estes de estatutos sociais (isto é, lugares na sociedade) diversificados, deviam convergir na posição académica. Apesar
da falta de uniformização, os estudantes eram obrigados
a usar alguma forma de traje académico.[11] De notar que essa obrigatoriedade era permanente,
nas aulas ou fora delas, dentro da cidade de
Coimbra (território académico).[12] A uniformização plena do traje académico aconteceu possivelmente na passagem do século XVII para o XVIII. O médico António Ribeiro Sanches, que estudou em Coimbra de 1716 a 1719, diz no "Método para aprender a estudar Medicina" (1763):
Existe uma boa descrição de como seria o Traje Académico nos finais do século XVIII, válida também para o início do século XIX. Na edição de 1791 da Macarronea Latino-Portuguesa (o conjunto de textos conhecido como Palito Métrico), vem incluída a "Economia Escolástica - segunda parte do Sábio em Mês e Meio", de António Castanha Neto Rua, que acerca do Traje Académico diz entre outras coisas o seguinte:
As características medievais e clericais da Universidade de Coimbra começam a diminuir com a reforma do Marquês de Pombal, em 1772. Mas é só com o triunfo do Liberalismo em 1834 que começa verdadeiramente a aparecer uma universidade laica: o Foro Académico é extinto [15], a Faculdade de Cânones (i. e., Direito Canónico) e a de Leis (i. e., Direito "Civil", no sentido de laico) são unificadas na nova Faculdade de Direito (o que representou de facto a absorção da de Cânones pela de Leis); a Faculdade de Teologia vai perdendo peso constantemente; as ordens religiosas são extintas, o que acarreta o fim dos colégios e dos lentes monásticos; em 1841 é nomeado o primeiro reitor leigo; etc. Muita coisa continua, como a própria Faculdade de Teologia, o latim como língua oficial (mas as aulas são em português), o juramento do dogma da Imaculada Conceição feito pelos caloiros no acto da matrícula (!), etc. Mas estes aspectos mantêm-se até à República por conservadorismo, como pormenores. A Universidade já não é uma instituição eclesiástica, e sim estatal. Os estudantes são cada vez mais filhos de burgueses a prepararem a sua carreira (particularmente na Faculdade de Direito, onde é recrutada a maioria da classe dirigente do Portugal Liberal). A Capa e
Batina não é abolida, apesar do seu carácter
clerical e de várias outras críticas relacionadas:
que é um símbolo do passado, medieval, que é
desconfortável e não se adapta ao clima
de Coimbra, etc. Mas passa a ser obrigatória
apenas dentro da Universidade [16].
Segundo Trindade Coelho (estudante de 1880 a 1885):
O Romantismo do século XIX fomenta a idéia do estudante boémio, cábula, poeta ou músico, namoradeiro, etc. E a Capa e Batina é indissociável desse estudante romântico:
A capa, em particular, como símbolo de todo o Traje Académico, era particularmente venerada:
Agora sim, aparece a defesa do Traje Académico como factor de igualização dos estudantes:
Outra grande vantagem é o seu carácter económico:
O
aburguesamento da Universidade acaba por impor o aburguesamento
do Traje Académico. No tempo do Mata-Carochas
(1860-1865), a Capa e Batina ainda mantinha um aspecto
bastante clerical: "O vestuário é capa e batina; capa até ao tornozelo, com gola militar; batina curta até ao joelho, dois dedos abaixo; calção, meia preta de laia, sapato e volta em vez de gravata, como o padre. Mas em 1863
muita coisa muda. O reitor Basílio Alberto Sousa
Pinto (1859-1863) tinha sido extremamente severo na imposição
do rigor da Capa e Batina, e o seu sucessor, Vicente Ferrer
Neto Paiva, num edital de 10 de Novembro de 1863 liberaliza
bastante, nomeadamente no uso de calças em vez de calções.
Trindade Coelho caracteriza assim o Traje Académico
do seu tempo, 20 anos depois desse edital:
Este "novo" Traje
Académico seria criticado por Ramalho Ortigão
em 1888, no Álbum de Costumes Portugueses: "O estudante de batina, meias altas, cabeção e volta [...] é uma espécie extinta hoje na série zoológica da Universidade. [...] O grave uniforme decompôs-se pelo modo mais irreverentemente pelintra. O cabeção e a volta foram substituídos pelo colarinho postiço e pela gravata do futriquismo liró. A batina degenerou num casaco gebo e mestiço, de padre à paisana. A calça escorreu inartística e besta, pela perna abaixo, esbeiçando apolainada sobre a odiosa bota de elástico. Assim o belo costume histórico da antiga Universidade se perverteu sem se reformar, reduzindo-o a uma aproximação cenográfica de entremez barato ou zarzuela pobre." Os estudantes,
cada vez mais burgueses (menos clérigos) e atraídos
por idéias republicanas e anti-clericais, não sentiam
qualquer identificação com um hábito
eclesiástico, e, através do desrespeito pelas
normas de uso do Traje Académico, iam-no de facto
modificando. Em 1898: "[A calça] nem sempre é preta. A gravata, umas vezes encarnada, outras branca e só por esquecimento é que ela é preta, como o regulamento ordena. A capa é usada com frequência dobrada e deitada sobre um dos ombros, trazendo-a muitas vezes na mão. E aqueles que querem usar bengala fazem-no, muito embora isso não deva ser permitido a quem se apresenta de capa e batina."[27] Aos usos da capa
sobre um dos ombros ou na mão, António Nunes
acrescenta "colocada no braço em jeito de gabardine [...]
ou enrolada no colarinho, ‘para diferenciar os estudantes dos
seminaristas e padres’".[28]
É interessante
notar que muitas décadas depois de o uso da capa enrolada
no colarinho se ter generalizado se mantiveram duas situações
de excepção, provavelmente ambas em sinal de
respeito pelo sagrado: na missa (capa simplesmente pelas costas,
sem dobras no colarinho) e em sinal de luto (com a batina fechada
- possivelmente em imitação da antiga batina eclesiástica
- e a capa não só sem dobras mas também apertada
com os colchetes do colarinho - possivelmente reminiscência
de quando a capa tinha cordões). Pela mesma época: "Ali para a ladeira de Seminário, já distante da Universidade, juntou-se um dia uma célebre "república" de moços lisboetas, que se encarregou de modificar o aspecto clerical do estudante da nossa Universidade. Segundo António
Nunes, foi também esta república que introduziu
a Batina com bandas de cetim e pregas posteriores. Isto é,
a total substituição da Batina propriamente dita
por uma verdadeira sobrecasaca. Faltava apenas a
estabilização das cores da gravata, colete e calças
no preto e a generalização de algumas destas
variantes (como a Batina-sobrecasaca), que só se deram
já na República, para se ver atingido o Traje
Académico que se tem mantido praticamente inalterado
nas últimas décadas. Nos últimos
tempos da Monarquia falava-se insistentemente da abolição
da obrigatoriedade do Traje Académico, visto como
anacrónico, e até mesmo da sua proibição,
devido às maneiras aberrantes como era usado.
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[1] Maneira "conveniente" de designar a universidade fundada em 1288/1290 em Lisboa, transferida em 1308 para Coimbra, em 1388 de novo para Lisboa, em 1354 outra vez para Coimbra, em 1377 para Lisboa, onde esteve um longo (!) período de 160 anos e definitivamente instalada em Coimbra a partir de 1537. [2] Cf. Léo Moulin, A Vida Quotidiana dos Estudantes na Idade Média, Lisboa: Livros do Brasil, 1994, págs. 44-46. [3] Os primeiros estatutos da Universidade de Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1991, pág. 16; também citado em Maria Teresa Nobre Veloso, "O Quotidiano da Academia" (in História da Universidade em Portugal, I volume, tomo I, Coimbra: Universidade de Coimbra e Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, págs. 129-151), pág. 134. [4] Em Os primeiros estatutos da Universidade de Coimbra, pág. 17, aparece a seguinte tradução desta passagem, da responsabilidade do Prof. Doutor Monsenhor Cónego José Geraldes Freire, catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra:
Não
tenho grande competência como tradutor de latim
medieval, mas do alto da minha ignorância atrevo-me a achar
esta tradução um pouco livre e a usar no texto principal
uma tradução da minha autoria, feita quando ainda
não conhecia esta. Vejo apenas duas diferenças significaticas:
"per modum universsi" creio poder significar quer "segundo o costume
da Universidade" quer "dentro dos limites da universidade", e prefiro
a segunda apenas para explicar o "vel" (= ou); "in aparatu
in generali sive doctoralli" é mais complicado –
traduzir "generali" por "dos mestres" parece-me de facto demasiado
livre, pelo menos para os efeitos deste texto. De qualquer forma ficam-me
dúvidas sobre esta passagem, que a mim parece
indicar que os doutores e mestres podiam usar luxo não
académico ("geral") ou, em alternativa, doutoral. Não
parece haver quaisquer dúvidas nenhumas sobre a secção
final, que estipula que os licenciados, os bacharéis
e os estudantes não graduados deveriam usar
roupa sóbria ("honesta"), com os comprimentos indicados. [5]
Os primeiros estatutos da Universidade de Coimbra, pág.
34; também citado em Maria Teresa Nobre Veloso, "O
Quotidiano da Academia", pág. 134. [6]
Cf. Manuel Cabral e Rui Marrana, Quid Praxis,
Porto: Associação de Estudantes
da Universidade Católica Portuguesa no Porto,
1982, pág. 52, e Alberto Sousa Lamy, A Academia
de Coimbra 1537-1990, Lisboa: Rei dos Livros, 1990,
pág. 649. [7]
Cf. António Nunes, "Subsídio para o
estudo genético-evolutivo do Hábito
Talar na Universidade de Coimbra" (in Universidade(s)
- História, Memória, Perspectivas,
vol.3, Coimbra, 1991, págs. 399-419), pág.
407, e Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra,
pág. 649 e seg. [8] Isto
é, os que viviam nos Colégios, espécie
de Residências, normalmente pertencentes a
Ordens Clericais. [9] António
de Oliveira, “O Quotidiano da Academia”, (in História
da Universidade em Portugal, I volume, tomo
II, Coimbra: Universidade de Coimbra e Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997, págs.617-692), págs.
643-644. [10] Existiam
outras formas de distinção, como o Foro
Académico: os universitários (incluindo
os funcionários e todos os que trabalhassem para a Universidade)
estavam fora da alçada das autoridades comuns.
Tinham tribunais, cadeia e mesmo polícia (os
verdeais) próprios. [11] António
de Oliveira, “O Quotidiano da Academia”, págs.
642-643. [12] Lamy,
Academia de Coimbra, pág. 653. [13] Ignoro
qual a diferença entre a abatina (batina) e a loba,
para além do tecido. [14] Cit.
em Lamy, Academia de Coimbra, pág. 651. [15] Embora
se mantivessem algumas reminiscências, como a Polícia
Académica, com menos poderes é certo,
mas que haveria de desempenhar o seu papel disciplinar nas
tentativas de manter o Traje Académico correctamente
usado. [16] Lamy, Academia
de Coimbra, pág. 653. [17] In
illo tempore, Lisboa: Publicações
Europa-América, s/d, pág. 127. [18] José
do Patrocínio, prefácio a Antão
de Vasconcelos, Memórias do Mata-Carochas,
Porto: Companhia Portuguesa Editora,1920, (págs. 9-25,)
pág. 11. [19] Antão
de Vasconcelos, Mata-Carochas, pág. 60. [20] Antão
de Vasconcelos, Mata-Carochas, pág. 78. >[21]
Augusto Hilário (?), quadra do Fado Hilário. [22] José
do Patrocínio, prefácio ao Mata-Carochas,
pág. 11. [23] Antão
de Vasconcelos, Mata-Carochas, pág 36. [24] Trindade
Coelho, In illo tempore, pág. 138. [25] Antão
de Vasconcelos, Mata-Carochas, págs. 36-37. [26] Trindade
Coelho, In illo tempore, pág. 127. [27] Joaquim
Martins de Carvalho, in O Conimbricense, 15 de Outubro
de 1898, citado em Alberto Sousa Lamy, Academia de Coimbra,
pág. 656. [28] António
Nunes, A Alma Mater Conimbrigensis na Fotografia Antiga,
Coimbra: Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1990, legenda
nº 41. [29] Octaviano
de Sá, Nos Domínios de Minerva, Coimbra,
1939, págs. 46 e segs. [30] António Nunes, "Subsídio...",
pág. 411 e seg. |