Os Bandidos das Chacinas

Um mergulho no mundo da barbárie da Grande São Paulo, onde as quadrilhas fizeram dos morticínios em série uma ocorrência quase banal

Bruno Paes Manso

Esta é a história de uma sucessão de crimes brutais que deveriam provocar a indignação de todos os brasileiros. Eles são cometidos rotineiramente na Grande São Paulo, a maior e a mais rica região metropolitana do país. Ficaram conhecidos como chacinas. Seus números chocam. Desde que começaram a ser contabilizados, em 1995, foram registrados 281 casos, que levaram quase 1 000 pessoas à morte. A grande maioria não registrava passagem pela polícia. De cada 100 vítimas, três tinham entre 1 e 2 anos de idade. De cada dez, cinco não chegaram a completar 20 anos. Assassinatos múltiplos não acontecem com freqüência semelhante em nenhum outro lugar do Brasil. Entra ano, sai ano, ocorre uma chacina na capital paulista de seis em seis dias. Em 1999, até agosto, houve 49 extermínios e morreram 147 pessoas. Qual a explicação para tamanha barbárie? Sempre se acreditou que esses morticínios são o resultado de guerras entre traficantes ou do acerto de contas com consumidores de drogas caloteiros. Trata-se de um erro. O problema é bem mais complicado. Para apresentá-lo, VEJA entrevistou doze matadores. São ladrões - sobretudo de carga, banco e carro-forte -, vivem na periferia de São Paulo, dizem que acreditam em Deus e orgulham-se de ter carro do ano. Eles contaram por que matam, como vivem sua rotina de roubos e homicídios, quais são seus métodos e o que os leva a nunca se arrepender do que fazem.

A lógica brutal do extermínio

Eles matam o jurado de morte e todos os que, por infelicidade, se encontram no local da execução

Bruno Paes Manso

A luz vermelha se acendeu no semáforo. Embora fosse tarde da noite, o táxi freou. Levava três passageiros do trabalho para casa, na Zona Sul de São Paulo. Nesse momento, o Voyage roubado que o seguia a distância acelerou e deu uma pequena batida em sua traseira. O taxista desceu para verificar o estrago. Os dois ocupantes do Voyage também saíram, já empunhando suas armas. Dentro do táxi, os três passageiros nem sequer tiveram tempo de reagir. Odair Ferreira, 60 anos, seu filho Odair Tadeu, 34, e Sérgio Nakano, 41, morreram na hora. O motorista fugiu correndo. Os matadores escaparam em duas motos que os apoiavam. Nunca foram descobertos. Durante dois anos, a polícia paulista investigou o assassinato, cometido no dia 24 de fevereiro de 1995, ouviu 25 pessoas e chegou a alguns prováveis suspeitos. Mas a apuração parou sem que ninguém fosse indiciado, e o processo foi arquivado como "crime de autoria desconhecida". Para a polícia, Odair Ferreira teria morrido por problemas ligados a dívidas em seu pequeno supermercado na periferia de São Paulo. O filho Tadeu e o gerente do supermercado, Sérgio Nakano, foram assassinados porque estavam em sua companhia. Os matadores não queriam deixar testemunhas.

Na Grande São Paulo, chacinas como essa se repetem em média cinco vezes por mês. Em geral envolvem três mortos, mas já houve casos com oito e até com doze vítimas fatais. Elas correspondem, em números absolutos, a perto de 3% dos assassinatos na região. Apesar de se tratar da minoria das ocorrências, as chacinas enquadram-se numa das modalidades mais comuns de homicídios na periferia: os crimes premeditados, com hora marcada para acontecer. Em 1984, o total de assassinatos foi de 3.500. No ano passado, já estava na casa das 8.500 mortes. Para a cadeia, vai uma ínfima minoria.

Ao contrário dos homicídios provocados por brigas em bar, desentendimentos amorosos, dívidas financeiras e outros motivos banais, os crimes premeditados são de difícil apuração. Quase nunca têm testemunhas. Quando têm, elas sentem-se intimidadas e silenciam. Por trás das chacinas, há criminosos contumazes, conhecidos e temidos em sua região, onde os moradores não ousam apontá-los nem ao melhor amigo, quanto mais à polícia. Isso ajuda a explicar por que a polícia, ao fim de investigações ineptas, classifica tais crimes como insolúveis.

Para montar um retrato realista das chacinas, VEJA decidiu tentar uma entrevista com matadores. O caminho até eles começou com uma pesquisa em processos que envolvem homicídios desse tipo na vara criminal do Tribunal de Justiça de Santo Amaro, cuja jurisdição engloba a área mais violenta de São Paulo. Por meio desse levantamento e de consultas com promotores que lá atuam, buscou-se saber quem são os advogados que os matadores procuram para defendê-los. O nome mais recorrente foi o de Roberto Ribeiro, que trabalha na área desde o início dos anos 80 e atende a cerca de 100 processos criminais ao ano. Ribeiro aceitou colocar o repórter em contato com clientes que poderiam levá-lo ao encontro de pessoas que teriam participado de chacinas. A condição imposta é que nenhuma delas seria identificada. Ela foi aceita. Não havia outra forma de chegar a elas para contar, por meio de seus depoimentos, como são cometidos os crimes que a polícia não consegue evitar nem resolver. Ainda que quisesse colaborar nas investigações ou denunciar os matadores, o repórter nada teria de relevante a acrescentar ao que aqui está publicado. Não poderia identificá-los nem reconhecê-los. As pessoas que se apresentaram como matadores estavam mascaradas. Os clientes que levaram o repórter até elas não deram seus nomes.

Houve dois encontros, em dias sucessivos. No primeiro, ao qual compareceram oito matadores, foram sete horas de entrevista. Ao segundo, estiveram presentes catorze, dos quais quatro concordaram em falar. Cada um deles usou um apelido, que provavelmente não é o que adota ou pelo qual é conhecido no mundo do crime. Todos portavam armas. Seis concordaram em posar para fotos. Revelaram então uma compulsão maligna pelo exibicionismo. De revólveres e pistolas em punho, fizeram questão de simular a forma com que, segundo disseram, costumam posicionar-se para realizar as execuções. O matador que se identificou como "Flamarion" sugeriu que fosse fotografado sozinho ao lado de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. "Gostaria de sair com cara de gente boa em pelo menos uma foto", disse ele, que no lugar da máscara branca de pano resolveu colocar no rosto um capuz escuro de lã, desses que motociclistas usam. O capuz fora trazido pelo fotógrafo em sua bolsa, e "Flamarion", ao vê-lo, achou que serviria como um disfarce melhor.

Os doze matadores com quem VEJA conversou disseram que tinham uma lista de futuras vítimas. Eles vivem em liberdade e apenas um é procurado pela polícia. São homens entre 22 e 35 anos. Quatro brancos, oito pardos. Nenhum negro. A grande maioria afirmou ter o primário incompleto. Três declararam-se analfabetos. Um disse que tenta terminar o 2º grau. Muitos se gabaram de ter um carro do ano na garagem. Todos contaram que são casados ou vivem com uma mulher e que têm filhos. Uma das revelações mais surpreendentes foi a de que alguns deles, como se fossem cidadãos ordeiros que respeitam a lei, disseram estar preocupados com a violência do mundo de hoje. Veemente, um dos matadores declarou sentir-se indignado diante das cenas de crime a que seu filho pequeno é obrigado a assistir na televisão.

Sem exceção, usavam camisa para fora da calça. Explicaram que andam assim por cautela. Se estiverem armados, o revólver não fica à mostra. Se não estiverem, deixam a dúvida. São pessoas frias e não se mostram arrependidas do que fazem. Segundo eles, todas as suas vítimas tinham motivo para morrer. Contaram que, uma vez que começaram a matar, matarão sempre. Acreditam que cada vítima tenha alguém para vingá-la, seja um filho, um irmão, um amigo, seja um cúmplice. Esse alguém, raciocinam, terá de ser morto antes de alcançar seu intento, numa seqüência de carnificina sem fim.

Para se certificar de que os entrevistados relataram cenas verídicas e que realmente haviam participado delas, VEJA examinou os inquéritos e procurou a família das vítimas das duas chacinas que tinham sido descritas com dados objetivos, como ano, local e número de mortos. Em relação a ambas, os relatos puderam ser confirmados. Os respectivos inquéritos encontram-se no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo, o DHPP. Uma das chacinas é narrada no início desta reportagem. Ela foi investigada pela equipe B Sul e arquivada como "crime de autoria desconhecida". Durante a entrevista, o matador que se identificou como "Fumaça" assumiu a autoria do crime.

- Eu matei o velho, o filho do velho e o japonês que estava com eles - afirmou "Fumaça". - O taxista que levava os três a gente deixou escapar.

Segundo as declarações de "Fumaça", os três foram assassinados porque o comerciante se desentendeu com um amigo dos chacineiros. Na noite da tragédia, a dona de casa Cacilda Ferreira, mulher de Odair Ferreira e mãe de Odair Tadeu, teve uma reação desesperada. Ao receber a notícia do outro filho, Murilo, gritou que ele estava mentindo. Em seguida, colocou os pratos para toda a família, tirou do forno a pizza que preparara, sentou-se à mesa e ficou esperando. Ela tentava convencer a si própria de que a história era uma brincadeira de mau gosto. Não era. Murilo confirmou tudo para a irmã, que se trancou no quarto, tomou vários tranqüilizantes e só saiu dois dias depois, quando a porta foi arrombada por parentes, preocupados com o pior. Eles acabavam de entrar em um pesadelo sem volta. Até hoje, passados mais de quatro anos, o fantasma do crime os persegue. Com medo de ser as próximas vítimas dos mesmos assassinos, procuram esconder-se. Já se mudaram três vezes. Poucas pessoas, incluindo os mais próximos, conhecem o atual endereço, em um bairro de classe média da cidade. Cacilda quase não vai a lugar nenhum e continua chorando todos os dias.

A outra chacina relatada pelos matadores ocorreu em 13 de julho de 1993, também na Zona Sul de São Paulo. Foi um caso típico dessa modalidade de crime. Aconteceu na madrugada, dentro de um bar. O alvo era o dono, Geraldo Medeiros de Almeida. Ele teria denunciado um dos matadores à polícia. Dois fregueses, José Carlos da Silva e Francisco Antônio Alves Vianna, que não tinham nada a ver com a história, morreram enquanto tomavam cerveja. Os bandidos que na entrevista se identificaram como "Wolverine" (nome de um personagem justiceiro de histórias em quadrinhos), "Baixinho" e "Zé Bonitinho" contam como realizaram a execução.

- A parada era para acontecer em um bar da parte de baixo da Zona Sul - diz "Wolverine". - Faz um tempinho, uns cinco, seis anos. Era para derrubar um. Acabou que matamos três.

- Tinha mais dois que estavam lá, entendeu? - diz "Baixinho". - Morreram de graça.

- Fomos de cara limpa, sem nada [ou seja, não usaram máscara nem disfarce] - diz "Zé Bonitinho". - Éramos uns sete. Fomos em um carro e duas motos. Se entra muita gente no mesmo carro, a polícia cresce os olhos, e a gente pode ser presa. Por essas bandas, muito homem no mesmo carro é certeza de confusão. Os carros e as motos precisam ser todos cabritos, roubados, para não sujar. Chegamos ao bar, havia três pessoas. Tinha de morrer todo mundo. Ficaram três de um lado, três do outro. Eu entrei no bar, vi que estava tudo tranqüilo, já catei um e comecei a atirar. É o sinal de que os outros podem invadir. Sempre tem um primeiro na frente, sentado, que a gente pega de escudo, para o caso de alguém revidar.

- A questão é a seguinte: estamos ou não estamos mostrando a cara? - diz "Baixinho". - Se usamos máscara, aí tudo bem, a gente cata só o cara certo. Se vamos de cara limpa, mano, a gente não pode deixar testemunha.

A mulher do dono do bar, Francisca Maria Almeida, ouviu os tiros de sua casa, que ficava a poucos metros de distância. Foi correndo até lá. Encontrou Geraldo caído, ainda vivo. Saiu pela rua para pedir ajuda, mas ele morreu antes que pudesse ser atendido. A polícia tampouco elucidou essa chacina. Ela foi investigada pela equipe E Sul do DHPP e, mais uma vez, arquivada como "crime de autoria desconhecida". Apesar do medo que sentia de que os assassinos viessem atrás dela, Francisca Maria continuou morando na mesma casa, com dois filhos pequenos. "Não quis nem quero saber quem matou o meu marido", diz ela. "É a única forma que tenho para sobreviver."

Por que tantas mortes? O que está por trás delas? Por que a polícia não consegue evitá-las? Por que, salvo exceções raríssimas, os criminosos não são descobertos, presos, julgados e condenados? As autoridades não dão respostas satisfatórias para essas perguntas. Há uma idéia geral e distorcida de que o morticínio está basicamente ligado ao tráfico de drogas. Não está. As chacinas escondem uma realidade da periferia desconhecida dos paulistanos. Para começar, os traficantes, embora também matem, não são os maiores chacineiros. As chacinas são cometidas em grande parte por criminosos ligados a roubo e receptação de carga, roubo a banco, assalto a carro-forte, receptação e venda de arma, roubo e desmanche de carro - e igualmente em decorrência do tráfico de drogas. Todas essas atividades criminosas criam problemas e rixas entre os marginais envolvidos. Matar é a forma aceita entre eles para resolvê-los. Nas despoliciadas franjas de São Paulo, as vítimas morrem sem saber de onde vem a bala e descobrem o final próximo apenas quando se encontram diante do pelotão de fuzilamento.

Diferentemente do Rio de Janeiro, os grupos que atuam no crime organizado em São Paulo não possuem comandos centralizados. São autônomos e formam bandos específicos para cada ação. O mesmo criminoso que rouba caminhões pode ser chamado para atacar um carro-forte. Eles têm uma grande rede de contatos, iniciada nas cadeias. Reunidos em quadrilhas, assaltam, dividem o butim e vai cada um para um lado. Nesse submundo sem hierarquias, como não há chefões e os criminosos se relacionam de igual para igual, a decisão de condenar um desafeto à morte é tomada individualmente.

A regra entre eles é clara. Quem passa o outro para trás sabe que comprou uma briga fatal. Eles investigam superficialmente, julgam e executam a pena com rapidez. Foi o que fizeram com o dono do supermercado, seu filho e o gerente. Atrapalhar um determinado serviço criminoso merece o mesmo veredicto. Convencidos de que sua sobrevivência exige que desconfiem de tudo e de todos, não precisam de muita convicção para dar a sentença. Alcagüetar, ou seja, entregar uma pessoa para a polícia, é considerado motivo justo para a morte. Isso custou a vida do dono do bar e de seus dois fregueses. Com a fama de matadores que adquirem, cometem outro tipo de homicídio que, segundo eles, serve para limpar os bairros onde moram. Passam a matar estupradores, assaltantes comuns e jovens viciados em crack. Não consideram que executá-los seja crime. Em sua linguagem, é "faxina". Seguem o mesmo método. Se houver testemunhas, elas quase sempre morrem.

Os bandidos paulistas que praticam chacinas não devem ser confundidos com os chamados "justiceiros", que executavam criminosos ou supostos criminosos em troca de dinheiro. Nos anos 80, os justiceiros eram contratados por comerciantes ou cidadãos comuns da periferia para livrar o bairro das pessoas que lhes causavam problemas. Nomes como os de Cabo Bruno, que era membro da Polícia Militar mas trabalhava como pistoleiro para esses comerciantes, João do Balaio e Índio eram freqüentes nas páginas policiais da época. Alguns justiceiros recebiam por morte, outros eram remunerados mediante uma taxa fixa de proteção, colhida entre os pequenos empresários da região. A polícia calcula que eles tenham matado pelo menos 150 pessoas, a grande maioria em bairros pobres da Zona Sul da cidade. Os justiceiros minguaram nas estatísticas da polícia. Casos isolados aparecem, como o da chacina ocorrida no último dia 12 de junho, em que o pistoleiro José Raimundo da Silva matou sete pessoas no Jardim Varginha, na Zona Sul. Ele confessou à polícia que recebia entre 1.000 e 5.000 reais por morte. Mas ocorrências como essa se tornaram ocasionais. "Hoje, só trouxa pensa como os justiceiros", diz "Flamarion". "Os justiceiros ganhavam fama, iam para a cadeia e apodreciam por lá, sem ter ninguém para tirar eles de dentro. A gente não gosta de fama. Fama faz a polícia crescer os olhos, faz o valente querer te matar para alcançar fama também, e você acaba arrumando mais problema."

Os matadores das chacinas afirmam que não assassinam por dinheiro. Assassinam, segundo a lógica de bandidos, para aplicar a própria justiça a bala. Dizem que visam sempre a uma determinada pessoa, jurada de morte. Se estiver sozinha, morre apenas ela. Se não estiver, morre quem se encontrar a seu lado no momento da execução. Pode ser a mulher, o filho, mesmo se for uma criança, um amigo, um colega, um simples circunstante - ou todos juntos. Dificilmente deixam testemunhas. Pagam com a vida os que tiveram a infelicidade de estar no lugar errado na hora errada. Os assassinos só se limitam ao alvo escolhido, poupando os que se encontram na cena do crime, quando a ação é cuidadosamente planejada e se sentem seguros de que jamais serão reconhecidos.

"Quanto menos sujar, quanto menos gente morrer, melhor", diz "Flamarion". "Mas existem pessoas difíceis de ser localizadas, e, quando aparece a oportunidade, pode acontecer de morrer todo mundo que está junto." Para os matadores, a chacina não é um objetivo. É uma decorrência. Há alguém condenado por eles. Chega a seus ouvidos o paradeiro dessa pessoa. Os matadores vão atrás. Às vezes, dizem, nem sequer têm tempo de providenciar máscaras para cobrir o rosto. Em outras ocasiões, o condenado encontra-se em um local movimentado, cheio de gente. Quando é assim, não pensam duas vezes. "Se está na madrugada, bebendo com gente ruim, coisa boa não deve ser", diz "Wolverine". "Por isso, morre também. É uma testemunha a menos."

Com os assassinos

Os matadores revelam por que matam, quais são seus métodos e o que os leva a não temer a polícia

Bruno Paes Manso

Em grupos separados, os matadores foram chegando aos poucos. Traziam algumas garrafas de uísque e cachaça, armas carregadas e máscaras. Falaram sobre seus crimes brutais durante cerca de onze horas, em duas rodadas de conversa realizadas em dias sucessivos. Um dos membros do grupo, que não é procurado pela polícia, escolheu o local do encontro, transmitido a VEJA por seu advogado. Cada um se identificou com um apelido, declarou a idade e disse onde nasceu.

"Fumaça", 35 anos, foi o mais loquaz. Contou que trabalhava na roça, no interior do Ceará, criando galinha. Aos 18 anos, mudou-se para São Paulo. Na década de 80, cometeu os primeiros homicídios. Hoje, rouba e faz receptação de cargas, além de vender armas.

"Wolverine", 23 anos, é paulistano e, diferentemente dos outros do grupo, afirma ganhar dinheiro limpo na economia informal, como motorista. Cursa o 2º colegial e mora com os pais e a mulher. Apesar de não trabalhar em atividades ligadas a roubos e interceptação, "Wolverine" integra um bando de matadores. Uma vez que matou o primeiro, há sete anos, segundo ele, não teve mais como parar porque, afirma, também passou a correr risco de vida.

"Flamarion", de 31 anos, nasceu em Sergipe. Único entre eles a nunca ter sido preso, é receptador de mercadorias roubadas. Por isso, intitula-se comerciante. Bem-humorado, pai de duas filhas, fez questão de dizer que tem carro do ano e está bem de vida.

"Paulista", 28 anos, é também receptador. Compra de ladrões e vende para camelôs.

"Cabreiro", de 33 anos, e "Zé Bonitinho", 22, justificaram as alcunhas. O primeiro mostrou-se o mais desconfiado e o segundo foi apontado pelos comparsas como um grande mulherengo. São assaltantes de carro-forte e de carga. "Zé Bonitinho" disse que acabou de ser pai. No final da gravidez, sempre que saía de casa em busca de uma de suas novas vítimas, pedia que a mulher rezasse para que o bebê não nascesse enquanto estivesse fora.

"Baixinho", 26 anos, afirmou ser motoboy. Alegou que começou a matar porque achou necessário vingar um parente assassinado. Depois disso, passou a fazer parte de grupos de matadores. Declarou que pretende mudar de vida, voltar para Fortaleza, sua cidade natal, e criar os dois filhos em paz. Antes, porém, pretende acertar contas com duas pessoas que o teriam passado para trás. "Só sossego no dia em que eu conseguir derrubar esses caras", afirmou.

Por que matam

"Paulista": "Existem vários motivos que levam o cara a merecer morrer, posso citar três, quatro ou dez. Muitas vezes, a gente dá ajuda para ele, sai com ele para roubar, para matar, arruma uns esquemas para ele ganhar dinheiro e tal. E ele é o primeiro a pular fora, a deixar você no meio do fogo. Esse cara merece morrer. Outro caso. Cagüeta sem vergonha. Ele vai para uma ação com você, para puxar uma carga, roubar um banco, matar alguém, e acaba entregando um monte de gente. Vai preso e, para livrar a cabeça dele, serve a sua para a polícia. Não tem homem que agüenta ficar quieto quando a polícia quer que ele fale. É choque, porrada. Só que homem de verdade assina até 200 homicídios, mas como se fosse bronca dele. Assina e assume a responsabilidade. Ele vai preso, mas não vai morrer".

"Wolverine": "Muitas vezes, é preciso derrubar também gente que você não conhece. Se meu amigo diz: 'Se eu matar esse cara, vão me reconhecer no bairro', aí eu mato para ele. É normal isso acontecer. Há pouco mais de um mês, peguei dois carinhas desse jeito, para ajudar um amigo. De repente, quando eu precisar, ele pode fazer a mesma coisa para mim".

"Flamarion": "Não mato por dinheiro, mato comprando bronca. Eu sou comerciante. Você vai ficar no lugar cinco anos. Vai fazer o quê? Vai catando um, vai catando outro, vai catando dez, vai surgindo gente para matar. No momento que você catou um aqui, outros vão querendo te pegar. E você precisa matar antes que eles te matem".

"Wolverine": "Conheci o pessoal na minha vila, a gente jogava no mesmo time de futebol. Os caras iam para as diligências, eu sempre ficava. Daí morreu um amigo nosso. Fazia segurança em escola. Tinha uns pilantras que mataram o cara. A gente foi para cima. Foi a primeira vez. E se o cara é sangue bom, ele continua no time. Não acaba. Nunca acaba".

Crack

Uma das explicações dadas pela polícia para o crescimento das mortes embaixo de seus olhos foi o aumento do consumo do crack em São Paulo, a partir de 1993. É uma droga barata, que causa forte dependência física e psíquica aos que a consomem. Entre 1989 e 1993, o número anual de assassinatos na Grande São Paulo estabilizou-se na casa dos 5.500. Em 1994, quando o crack começou a se espalhar entre os traficantes da região, os homicídios chegaram a quase 7.000. Nos morros do Rio de Janeiro, os chefes do crime organizado proibiram sua venda.

"Flamarion": "Matando os nóias, que são os garotos viciados em crack, a gente evita que eles sujem a área. É como limpar um lixo da rua. Sabe quando junta aquele lixo? No ambiente que você trabalha, não precisa arrumar a mesa? É a mesma coisa com a gente. Precisamos limpar o ambiente de trabalho. Matar os nóias é obrigação".

"Wolverine": "Todo dia tem BO de um nóia. A gíria BO vem de boletim de ocorrência e significa um problema que alguém arruma para a gente. Matar nóia é limpeza. Você derruba o cara, coloca dentro do carro, leva na represa, rasga a barriga dele e joga dentro do rio. Quem vai achar o cara? Ninguém acha".

Polícia

"Flamarion": "A polícia é canelinha seca. A gente é tudo calibre pesado. Eles andam com uns Rossis, uns Taurus 38 que esquentam depois de alguns tiros. Depois de um tempo atirando, esquenta o tambor e a bala explode no tambor".

"Wolverine": "É só você estar com uma matraquinha 45, de sessenta tiros, e ficar segurando o gatilho em cima da viatura. Quando escutar a primeira rajada, eles somem. Não tem como segurar".

"Baixinho": "A viatura passa na frente de um grupo como o nosso e nunca pára e enquadra. Ela passa e lá na frente pede reforço para depois voltar. A única vantagem que a polícia tem é o reforço. Ela não chega atacando. Nem pode".

Armas

"Baixinho": "Para matar, eu prefiro uma 45 automática. Arma em que eu confio. Bate a bala, cai, já era. Se é uma de impacto, ela te joga 3 metros para trás. Por que todo mundo gosta de 38? O 38 tem impacto. Uma 765, não. Às vezes, você dá cinco tiros no cara, o cara vai caindo, ainda saca a arma e acerta você. É muito rápido. Ele sente que foi baleado, mas continua atirando".

"Paulista": "A gente precisa sempre andar com a camisa para fora da calça. Neguinho passa e vê que você está à vontade, sem camisa e tal, logo percebe que você está desarmado e ataca. Mesmo que eu esteja desarmado, preciso andar com a camisa para fora. Pelo menos fica aquela dúvida. Está armado ou não está? Você não pode nunca demonstrar".

Quantos matou?

"Flamarion": "Que eu participei diretamente, foram uns trinta, quarenta. Com os outros, mais de sessenta. É difícil contar. A gente atua em grupo".

"Baixinho": "Não conto, não, de jeito nenhum. Sou supersticioso, dá azar, dá insônia, a gente vai dormir, fica contando, contando, e não dorme".

"Zé Bonitinho": "Nos últimos dois meses, eu matei uns oito. A maioria treta de bairro. É assim que nasce. Não é que a gente pede para nascer. Aparece automaticamente".

"Fumaça": "É gente... É gente... Sessenta, setenta... Você pode mudar a pergunta?"

Métodos

"Zé Bonitinho": "Os primeiros tiros têm de ser sempre no peito, porque tem mais espaço para acertar. Só atiro na cabeça se ele estiver muito, muito perto. Mas eu gosto de matar o cara à queima-roupa. Quem sacar primeiro é o dono da festa".

"Flamarion": "Quem se vira muito por sua conta, naquela história de cada um por si, acaba matando o outro. Aqui é diferente do Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, em que existem líderes".

"Paulista": "É muito difícil morrer alguém quando se assalta um carro-forte. A não ser que o guarda atire nele e ele precise se defender. São pessoas especializadas. Se ele cai em cana, a polícia respeita. Tem celular na cadeia, dá 50 paus e vai para a rua. É o ladrão sangue bom, nunca atrasa o lado de ninguém".

"Cabreiro": "Um cara que mata no caixa eletrônico, no assalto, eu não concordo. A mulher assusta, o cara atira. Não é homem. Está atrás de dinheiro, pipado, fumou crack e não segura a bronca. Isso não é ladrão, é um cara cheio de crack na cabeça. É uma covardia".

Arrependimento

"Baixinho": "Você fica chateado e até com trauma na cabeça quando vê que acertou uma criança. O adulto, quando ele vê uma porção de bala, sabe o que significa aquela correria. Uma criança não. Ela morre sem saber qual é o motivo. Nesse caso dá arrependimento".

Religião

"Paulista": "Parece que tem horas que Deus coloca o cara no caminho da gente só para a gente poder derrubar. Aquele sangue ruim que Deus não conseguiu matar, de diabetes, de câncer e o diabo a quatro, Ele coloca no caminho da gente. Se existir céu e inferno, como os religiosos falam, eu não acho que o cara que matou vai para o inferno. Deus faz o julgamento lá e Ele sabe. Eu nunca matei ninguém inocente".

"Flamarion": "Sempre falo com Nossa Senhora Aparecida. Antes, durante e depois. Matando ou não, eu converso com ela. Quando visito a igreja, eu até tremo. Eu rezo para Deus também. Quando eu vou matar eu peço: se Deus quiser, esse cara vai".

"Fumaça": "Sou filho de Deus e gosto muito de São Jorge Guerreiro. Tenho em casa uma imagem, dou água e tudo, acendo vela de sétimo dia, tem a oração dele, forte, para tirar todos os males. Vou também a igreja de crente. Para padre eu nunca confessei. Pode sujar, né? Vai saber o que ele vai contar para os outros".

"Baixinho": "Tenho muita fé em Deus, mas não meto Deus no meio dessas histórias, não. Quando tenho de matar, o negócio é comigo e não acho que tenho de pedir para Deus".

"Cabreiro": "Deus me ajuda muito porque eu nunca matei ninguém por dinheiro. E já recebi muitas propostas. Posso estar passando fome, que eu não mato por dinheiro. Acho que Deus leva isso em consideração".

Família

"Wolverine": "Minha mulher muitas vezes desconfia do nosso movimento, mas não posso contar para ela tudo o que acontece. É até uma forma de se prevenir. Às vezes você conta para a mulher, ela não agüenta a pressão, cagüeta você para alguém e você acaba tendo de matar a própria mulher. Minha mãe não sabe o que eu faço. Ela sabe que eu ando armado, que eu tenho uns problemas por aí. Já cheguei em casa com a roupa manchada de sangue. Falo que é briga. Minha irmã pensa que eu não tenho coragem de matar um mosquito. Meu pai sabe, porque uma vez a gente foi viajar para o interior, na casa do meu tio, eu e um truta meu. E uns carinhas tinham roubado meu tio e a gente derrubou os dois por lá. Daí meu pai percebeu que eu tinha derrubado os caras e ficou mais quieto comigo. Ele não gosta, não incentiva, porque não queria nunca ver o filho preso. Mas às vezes ele vê ladrão na TV e comenta: 'Tem de matar todos esses pilantras'.".

"Flamarion": "Quero que minha mulher tenha orgulho de mim e possa dizer 'enquanto eu vivi com esse guerreiro, não me faltou nada'. Depois que eu morrer, tudo bem. Quero ser lembrado dessa forma, por ela e pelos meus filhos".

"Cabreiro": "Outro dia eu estava em casa assistindo à televisão com meu filho e vi uma rebelião no Cidade Alerta, com o cara furando o estuprador. Eu acho que isso não pode passar na televisão. O Programa do Ratinho é outro. A gente tem filho pequeno, não dá para passar essas coisas na televisão a essa hora".

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