Biografia
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Poesias Eternas Lamento para a Língua Portuguesa O retrato de francisca matroco
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Lamento Para a Língua Portuguesa
(04/04/1997)
não és mais do que as
outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se
imagina
que alguma vez uma outra
língua possa
pôr-te incolor, ou
inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera
aspirina,
ou tirar-nos de vez de
alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e
repentina.
mas é o teu país que te
destroça,
o teu próprio país
quer-te esquecer
e a sua condição te
contamina
e no seu dia a dia te
assassina.
mostras por ti o que lhe
vais fazer:
vai-se por cá mingando e
desistindo,
e desde ti nos deitas a
perder
e fazes com que fuja o
teu poder
enquanto o mundo vai de nós
fugindo:
ruiu a casa que és do
nosso ser
e este anda por isso
desavindo
connosco, no sentir e no
entender,
mas sem que a desavença
nos importe
nós já falamos nem
sequer fingindo
que só ruínas vamos
repetindo.
talvez seja o processo ou
o desnorte
que mostra como é
realidade
a relação da língua
com a morte,
o nó que faz com ela e
que entrecorte
a corrente da vida na
cidade.
mais valia que fossem de
outra sorte
em cada um a força da
vontade
e tão filosofais
melancolias
nessa escusada busca da
verdade
e que a ti nos prendesse
melhor grade.
bem que ao longo do tempo
ensurdecias,
nublando-se entre nós os
teus cristais,
e entre gentes remotas
descobrias
o que não eram notas
tropicais
mas coisas tuas que não
tinhas mais,
perdidas no enredar das
nossas vias
por desvairados, lúgubres
sinais,
mísera sorte, estranha
condição,
em que, por nos
perdermos, te perdias.
neste turvo presente tu
te esvais,
por ser combate de armas
desiguais.
matam-te a casa, a
escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a
propaganda,
o discurso político, a
paixão
de estranhas novidades, a
ciranda
da violência alvar que não
abranda
entre rádios, jornais,
televisão.
e toda a gente o diz,
mesmo essa que anda
por tempos de ignomínia
mais feliz
e o repete por luxo e não
comanda,
com o bafo de hienas dos
covis,
mais que uma vela vã nos
ventos panda
cheia do podre cheiro a
que tresanda.
foste memória, música e
matriz
de um áspero combate:
apreender
e dominar o mundo e as
mais subtis
equações em que é
igual a xis
qualquer das dimensões
do conhecer,
dizer de amor e morte, e
a quem quis
e soube utilizar-te, do
viver,
do mais simples viver
quotidiano,
de ilusões e silêncios,
desengano,
sombras e luz, risadas e
prazer
e dor e sofrimento, e de
ano a ano,
passarem aves, ceifas,
estações,
o trabalho, o sossego, o
tempo insano
do sobressalto a vir a
todo o pano,
e bonanças também e
tais razões
que no mundo costumam
suceder
e deslumbram na só
variedade
de seu modo, lugar e
qualidade,
e coisas certas,
inexactidões,
venturas, infortúnios,
cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a
percorrer,
e arados, atrelagens e
veleiros,
pedacinhos de conchas,
verde jade,
doces luminescências e
luzeiros,
que podias dizer e
desdizer
no teu corpo de tempo e
liberdade.
agora que és refugo e
cicatriz
esperança nenhuma hás-de
manter:
o teu próprio domínio
foi proscrito,
laje de lousa gasta em
que algum giz
se esborratou informe em
borrões vis.
de assim acontecer,
ficou-te o mito
de seres de vastos, vários
e distantes
mundos que serves mal nos
degradantes
modos de nós contigo.
nem o grito
da vida e do poema são
bastantes,
por ser devido a um outro
e duro atrito
que tu partiste até as
próprias jantes
nos estradões da história:
estava escrito
que iam desconjuntar-te
os teus falantes
na terra em que nasceste.
eu acredito
que te fizeram avaria
grossa.
não rodarás nas rotas
como dantes,
quer murmures, escrevas,
fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda
és nossa,
e crescemos em ti. nem
imaginas
que alguma vez uma outra
língua possa
pôr-te incolor, ou
inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs
aspirinas,
ou tirar-nos de vez de
alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas
repentinas.
enredada em vilezas, ódios,
troça,
no teu próprio país te
contaminas
e é dele essa miséria
que te roça.
mas com o que te resta me
iluminas.
Uma
Carta no Inverno
O tempo não podia correr
numa ilha sem lugar e sem sombras.
mas abolido o tempo, a
história deixava de existir.
ao princípio era a ninfa
e o silêncio da máquina do mundo.
era o silêncio no mais
puro momento da sua glória inteligível.
Concerto Campestre, 1993
O retrato de francisca matroco
no outono de 1879, em
vila viçosa,
mais exactamente a
dezoito de outubro,
henrique pousão desenhou
o retrato de francisca matroco,
sua prima, talvez já sua
namorada.
deve tê-la feito sentar
no vão de uma janela
para que ao chegar a luz
à sua pele
o sol de outono pousasse
mais moroso
sobre o lado direito e as
sombras fossem leves,
levemente esfumadas,
luminosas,
na sua face esquerda. os
olhos dela captavam
a transparência da
tarde, isto enquanto o fitava,
quase séria mas doce,
numa pose benigna
que continha o sorriso,
nem podemos dizer
da melancolia alentejana
a espelhar
no seu rosto um horizonte
manso e ondulante, nem
que ela estivesse triste.
«donaire» era a palavra,
antigamente, que lhe
assentava bem,
com o pequeno véu
mosqueado no alto da cabeça
e os cabelos curtos
tombando sobre a testa,
em frágil desalinho.
pousão, se já tivesse
andado por itália,
pensaria «tanto gentile e
tanto onesta», enquanto
os cinzas ténues
lhe saiam da mão e
sugeriam o nariz recto e modelavam
a firmeza do queixo e
davam um toque natural
às sobrancelhas quase
interrogativas e
rematavam num laço o
frouxo das rendas e dos
tafetás em torno do
pescoço, pousão tinha
vinte anos e francisca
andaria pela mesma idade:
vê-se que estava pronta
a dedicar-lhe a sua vida
mesmo que imaginasse a
morte dele dali a cinco,
mas não era possível
que a doença
já ensombrasse aquele
amor discreto,
em vila viçosa, para
mais numa casa que era
da madrinha de pousão,
entre os reposteiros afastados
em que o ar se enrolava,
escuros móveis brunidos,
credências,
daguerreotipos da família
e um jarrão de cravinas
sob o espelho grande
que prolongava as
pranchas do sobrado.
«o meu par é o mais
lindo
que anda aqui na roda
inteira», terá ele
trauteado mentalmente,
misturando oliveirasao desenho
naquela hora burguesmente
lírica, na pacatez
dessa inquieta alegria em
que mostrava
a segurança dos seus
dotes e o retrato
ia ficando parecido no
seu jogo de penumbras
imponderáveis, como um
milagre fotográfico
entre perfumes vindos lá
de fora e o bem-estar
do recanto. francisca
aguardava, talvez submissa
mas ferozmente certa
desse resultado.
era um momento do lápis
em que aflorava a sua vida
e se concentrava no
devagar da tarde,
depois de os olhos de
pousão intensamente
a percorrerem,
interrogando-a para que ela
não duvidasse nunca dos
amores no outono,
nem dos silêncios de uma
vila no alentejo,
nem da luz, nem das
sombras, nem da realidade.
"o retrato de francisca matroco e outros poemas",
Quetzal Editores, Lisboa, 1998.
infância: construção
da idade adulta
simulada na escrita que
nos rói
pela ficção do que se
desoculta
no excesso do real que
assim constrói,
quando a maturidade nos
insulta
o coração precário por
que sói
displicente fazer-nos
pagar multa
e às vezes nos fraqueja
e às vezes dói.
há um arbusto intenso
entre corais
e sóis insuportáveis e
submersos
na maré cintilante, mas
alcance-a
um embuste do tempo e
fica a mais
a baixa-mar falhada de
alguns versos:
desconstrução da idade
adulta, a infância.
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.