A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

VASCO GRAÇA MOURA

Biografia

 

Poesias Eternas

Lamento para a Língua Portuguesa

O retrato de francisca matroco

Soneto para um Regresso

O Tempo Não Podia Correr...

 

 

 

 

 

 

 

 

Lamento Para a Língua Portuguesa

(04/04/1997)

 

 

 

não és mais do que as outras, mas és nossa,

e crescemos em ti. nem se imagina

que alguma vez uma outra língua possa

pôr-te incolor, ou inodora, insossa,

ser remédio brutal, mera aspirina,

ou tirar-nos de vez de alguma fossa,

ou dar-nos vida nova e repentina.

mas é o teu país que te destroça,

o teu próprio país quer-te esquecer

e a sua condição te contamina

e no seu dia a dia te assassina.

mostras por ti o que lhe vais fazer:

vai-se por cá mingando e desistindo,

e desde ti nos deitas a perder

e fazes com que fuja o teu poder

enquanto o mundo vai de nós fugindo:

ruiu a casa que és do nosso ser

e este anda por isso desavindo

connosco, no sentir e no entender,

mas sem que a desavença nos importe

nós já falamos nem sequer fingindo

que só ruínas vamos repetindo.

talvez seja o processo ou o desnorte

que mostra como é realidade

a relação da língua com a morte,

o nó que faz com ela e que entrecorte

a corrente da vida na cidade.

mais valia que fossem de outra sorte

em cada um a força da vontade

e tão filosofais melancolias

nessa escusada busca da verdade

e que a ti nos prendesse melhor grade.

bem que ao longo do tempo ensurdecias,

nublando-se entre nós os teus cristais,

e entre gentes remotas descobrias

o que não eram notas tropicais

mas coisas tuas que não tinhas mais,

perdidas no enredar das nossas vias

por desvairados, lúgubres sinais,

mísera sorte, estranha condição,

em que, por nos perdermos, te perdias.

neste turvo presente tu te esvais,

por ser combate de armas desiguais.

matam-te a casa, a escola, a profissão,

a técnica, a ciência, a propaganda,

o discurso político, a paixão

de estranhas novidades, a ciranda

da violência alvar que não abranda

entre rádios, jornais, televisão.

e toda a gente o diz, mesmo essa que anda

por tempos de ignomínia mais feliz

e o repete por luxo e não comanda,

com o bafo de hienas dos covis,

mais que uma vela vã nos ventos panda

cheia do podre cheiro a que tresanda.

foste memória, música e matriz

de um áspero combate: apreender

e dominar o mundo e as mais subtis

equações em que é igual a xis

qualquer das dimensões do conhecer,

dizer de amor e morte, e a quem quis

e soube utilizar-te, do viver,

do mais simples viver quotidiano,

de ilusões e silêncios, desengano,

sombras e luz, risadas e prazer

e dor e sofrimento, e de ano a ano,

passarem aves, ceifas, estações,

o trabalho, o sossego, o tempo insano

do sobressalto a vir a todo o pano,

e bonanças também e tais razões

que no mundo costumam suceder

e deslumbram na só variedade

de seu modo, lugar e qualidade,

e coisas certas, inexactidões,

venturas, infortúnios, cativeiros,

e paisagens e luas e monções,

e os caminhos da terra a percorrer,

e arados, atrelagens e veleiros,

pedacinhos de conchas, verde jade,

doces luminescências e luzeiros,

que podias dizer e desdizer

no teu corpo de tempo e liberdade.

agora que és refugo e cicatriz

esperança nenhuma hás-de manter:

o teu próprio domínio foi proscrito,

laje de lousa gasta em que algum giz

se esborratou informe em borrões vis.

de assim acontecer, ficou-te o mito

de seres de vastos, vários e distantes

mundos que serves mal nos degradantes

modos de nós contigo. nem o grito

da vida e do poema são bastantes,

por ser devido a um outro e duro atrito

que tu partiste até as próprias jantes

nos estradões da história: estava escrito

que iam desconjuntar-te os teus falantes

na terra em que nasceste. eu acredito

que te fizeram avaria grossa.

não rodarás nas rotas como dantes,

quer murmures, escrevas, fales, cantes,

mas apesar de tudo ainda és nossa,

e crescemos em ti. nem imaginas

que alguma vez uma outra língua possa

pôr-te incolor, ou inodora, insossa,

ser remédio brutal, vãs aspirinas,

ou tirar-nos de vez de alguma fossa,

ou dar-nos vidas novas repentinas.

enredada em vilezas, ódios, troça,

no teu próprio país te contaminas

e é dele essa miséria que te roça.

mas com o que te resta me iluminas.

 

 

 Uma Carta no Inverno

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O tempo não podia correr numa ilha sem lugar e sem sombras.

mas abolido o tempo, a história deixava de existir.

ao princípio era a ninfa e o silêncio da máquina do mundo.

era o silêncio no mais puro momento da sua glória inteligível.

 

 

Concerto Campestre, 1993

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O retrato de francisca matroco

 

no outono de 1879, em vila viçosa,

mais exactamente a dezoito de outubro,

henrique pousão desenhou o retrato de francisca matroco,

sua prima, talvez já sua namorada.

 

deve tê-la feito sentar no vão de uma janela

para que ao chegar a luz à sua pele

o sol de outono pousasse mais moroso

sobre o lado direito e as sombras fossem leves,

 

levemente esfumadas, luminosas,

na sua face esquerda. os olhos dela captavam

a transparência da tarde, isto enquanto o fitava,

quase séria mas doce, numa pose benigna

 

que continha o sorriso, nem podemos dizer

da melancolia alentejana a espelhar

no seu rosto um horizonte manso e ondulante, nem

que ela estivesse triste. «donaire» era a palavra,

 

antigamente, que lhe assentava bem,

com o pequeno véu mosqueado no alto da cabeça

e os cabelos curtos tombando sobre a testa,

em frágil desalinho. pousão, se já tivesse

 

andado por itália, pensaria «tanto gentile e

tanto onesta», enquanto os cinzas ténues

lhe saiam da mão e sugeriam o nariz recto e modelavam

a firmeza do queixo e davam um toque natural

 

às sobrancelhas quase interrogativas e

rematavam num laço o frouxo das rendas e dos

tafetás em torno do pescoço, pousão tinha

vinte anos e francisca andaria pela mesma idade:

 

vê-se que estava pronta a dedicar-lhe a sua vida

mesmo que imaginasse a morte dele dali a cinco,

mas não era possível que a doença

já ensombrasse aquele amor discreto,

 

em vila viçosa, para mais numa casa que era

da madrinha de pousão, entre os reposteiros afastados

em que o ar se enrolava, escuros móveis brunidos,

credências, daguerreotipos da família

 

e um jarrão de cravinas sob o espelho grande

que prolongava as pranchas do sobrado.

«o meu par é o mais lindo

que anda aqui na roda inteira», terá ele

 

trauteado mentalmente, misturando oliveirasao desenho

naquela hora burguesmente lírica, na pacatez

dessa inquieta alegria em que mostrava

a segurança dos seus dotes e o retrato

 

ia ficando parecido no seu jogo de penumbras

imponderáveis, como um milagre fotográfico

entre perfumes vindos lá de fora e o bem-estar

do recanto. francisca aguardava, talvez submissa

 

mas ferozmente certa desse resultado.

era um momento do lápis em que aflorava a sua vida

e se concentrava no devagar da tarde,

depois de os olhos de pousão intensamente

 

a percorrerem, interrogando-a para que ela

não duvidasse nunca dos amores no outono,

nem dos silêncios de uma vila no alentejo,

nem da luz, nem das sombras, nem da realidade.

 

 

"o retrato de francisca matroco e outros poemas",

Quetzal Editores, Lisboa, 1998.

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soneto para um regresso

 

infância: construção da idade adulta

simulada na escrita que nos rói

pela ficção do que se desoculta

no excesso do real que assim constrói,

 

quando a maturidade nos insulta

o coração precário por que sói

displicente fazer-nos pagar multa

e às vezes nos fraqueja e às vezes dói.

 

há um arbusto intenso entre corais

e sóis insuportáveis e submersos

na maré cintilante, mas alcance-a

 

um embuste do tempo e fica a mais

a baixa-mar falhada de alguns versos:

desconstrução da idade adulta, a infância.

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