A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

Ruy Espinheira Filho

Biografia

 

Poesias Eternas

A Canção de Beatriz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A Canção de Beatriz

                  

                                                                                            para Núbia Maria

 

 

                         

                            

Nunca mais.
Sobre isso nunca mais.
Não falo.
        Que adianta
        se não adianta?
Falar falar falar
e sair
para ser machucada
de novo
e novamente e outra vez e sempre
e ainda mais
dolorida porque chamei
o que estava fechado no
esquecimento
porque
ressenti?
                        Ah
me desculpe
não digo nada
não
só que meu nome é Beatriz
dos Anjos Silva
39 anos
mas não pareço: desde menina
esta cara
de menina.
Só digo
que o pior mesmo
é a polícia.  Muito pior
que os homens, os amantes, os 
maridos, muito, muito
pior.   
                (mas entenda, não falo de
gigolô, que nunca tive: não
sou feia.)
                        Esses
de farda.  Um até
bem-educado
me roubou.  Disse: meu bem,
vamos?  Quando acordei
cadê
        desodorante,
        calcinha,
        sutiã?
só o dinheiro
não perdi.  Foi Deus
        graças a Deus
        que guiou
minha mão com o dinheiro 
para o sapato velho 
tão velho que o miserável desprezou.
Desodorante,
calcinha,
sutiã.
Mas eu disse
deixe estar.
 

Essa gente não presta.
                Faz
uma semana
o rapaz motorista na porta da casa dele
o soldado vinha e disse: documento.  
E o outro meteu a mão no bolso: não 
tinha nada.  E o soldado foi 
xingando, foi 
passando rasteira, foi 
chutando a cara 
e eu só ali na esquina vendo 
tudo
        e então saiu 
a mulher com o filhinho 
nos braços e 
pelo amor de Deus o senhor mata 
meu marido!
        E o soldado: cala 
a boca, puta 
não tem marido.  E ela:
        pára com isso.
E ele
chutando o outro: cala 
a boca!  E deu um tapa 
na mulher 
e
quando vi
                um soco
na testa da criança!

não aguentei, corri, falei: moço, 
é uma criança!  E ele 
me bateu 
com as costas da mão 
que eu rodei
        mas voltei
em cima: é
uma criança!  E ele
xingou de tudo e foi andando
        e disse
quando voltar não quero ver ninguém
ou levo tudo em cana.
                        E o rapaz
quebrado
                e o filho
com um calombo que crescia 
o menininho
                        nem sei mesmo se vai 
se criar.
                Essa gente.
        Uma vez
meu marido,
um que está comigo e eu tomo conta,
me deu um soco aqui, no lado esquerdo, 
e eu caí
        e quando levantei
foi com a mão 
na pedra
e fiz chuva de pedra nele
                                 e ele pulava
e eu pedra
e pedra
e ele pulando
e então veio a polícia e perguntou:
                        por que 
essa violência?
                e eu:
        pergunte
pra ele antes
o que ele me fez
                e o soldado:
tu é desaforada, aprende, peste!
                        e foi
me dando tapa
e levou ele e eu na viatura 
e eu disse: vocês estão errados.  E o soldado: 
cala a boca, vagabunda.  E eu: não sou
vagabunda.  E ele me bateu 
de novo
na cara
        e meu marido 
calado
        e me mandaram sentar 
no colo dele 
e ficaram se rindo 
e na delegacia eu contei tudo 
mas ninguém que ligou.
        E perguntei
a ele
ao meu marido:
                com que mão, 
desgraçado,
tu me bateu?
                E ele estendeu a mão 
e eu dei pancada nela
                        e pedi
um cassetete
pra quebrar ela
                mas ninguém deu,
falavam: ela tá doida.
                        E eu tava
doida mesmo.  Eu tava doida.  Mas depois 
passou.
                Só que ainda
vou dar e troco nele.
 

É por isso que eu não falo mais 
nessas coisas.  Dá um frio,
                        uma vertigem
aqui dentro,
                        uma vontade
de sumir no chão.
                        Que adianta?
                Nada
tem jeito.  Nunca.  Mas com homem 
que a gente gosta, que a gente toma conta, 
é menos ruim,

       às vezes é até bom.
                Eles batem 
mas
é só maluqueira
de cachaça e maconha.  E jogo.  E intriga 
de mulher.  Ah, ruim 
é mulher.  Ficam de olho 
no homem da gente.
        Vão inventando
contam mentira pra ele
                e ele então
se esquenta e vem bater.
        Por que
eu pergunto
        se o dinheiro tá aqui? 
        se a comida tá pronta? 
        se a roupa tá lavada?
e não aceito
                        e quando 
um me bate 
eu bato nele 
do mesmo jeito estilo eu bato nele
meu sangue eu vou buscar.
                Não é a polícia, 
depois se acerta tudo
                no carinho.
Ah
menos aquele
que uma noite chegou e me bateu 
e quando eu quis bater 
pegou uma cadeira e quebrou 
minha cabeça
        fiquei zonza,
no escuro,
        depois vi:
                         tava no chão
e tanto sangue
e ele me olhava
                assustado
e largou a cadeira e me pegou
        me levantou
como se eu fosse criancinha
com cuidado
                me carregou
pela rua
chamou um táxi e me levou
                pro pronto-socorro
e lá
cortaram meu cabelo
lavaram a ferida
deram doze pontos
duas injecções
e me mandaram pra casa e ele, 
me deitou na cama e foi 
buscar comida 
e leite e ficou 
tomando conta
        murcho
                e eu disse
não tem importância
esquece.
                        E ele
balançou a cabeça
                tão triste
pediu perdão
chorou
e eu passei a mão no cabelo dele
e repeti
não tem importância.
E fiquei boa e a gente
se gostava tanto
                         e uma noite
ele estava dormindo e peguei um pau
e
quebrei a cabeça dele do jeito que ele tinha
quebrado a minha
e ele pulou
                doido 
gritando e me xingando e se batendo 
pelas paredes
                sujando 
tudo de sangue 
como eu naquele dia 
e eu
quis pegar ele e levar
                como me levou 
pro pronto-socorro 
queria
trazer ele de volta e tomar conta 
e ficar com ele de quem gostava tanto 
mas estava horrível
                rodando no quarto 
e correu e abriu a porta e
                        sumiu 
ainda escuto seu grito e tenho pena 
e pensei
                amanhã ele volta 
mas não voltou 
nem depois 
nem nunca
às vezes eu fico lembrando como a gente se
gostava tanto 
tanto.
Desodorante,
calcinha,
sutiã.
                Bem que eu disse: 
deixe estar.
                Passou um ano e encontrei ele 
fardado
fazendo pose na praça
                        e falei:
olha
tu é polícia mas é ladrão, 
me roubou.  Agora vai e faz 
uma compra pra mim 
pois tu me roubou naquela noite 
e me diga
pra que queria calcinha e sutiã: 
pra tuas negas ou 
pra tu mesmo?
                agora anda 
e me compra comida 
tudo do melhor 
ou vou ao teu comando e faço queixa.  
E ele foi 
e fez a compra 
e agora
quando me vê corta volta
        aprendeu 
quem é Beatriz 
dos Anjos Silva
        39 anos
que ninguém dá.  A cara 
não diz
        mas não sou mais menina
como antes
de cabelos compridos e cantando 
a cantiga da história,
        aquela:
Capineiro de meu pai
não me corte o meu cabelo
minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou 
pelo figo da figueira
que o sabia beliscou
triste cantiga
mas eu mesma não era triste 
sonhava
com o cavalo branco
sonhava
de olhos abertos
esperava
porque o homem prometeu
                aquele homem 
que dormiu uma noite lá em casa
nem lembro dele
                        lembro 
do cavalo que disse ia trazer 
para mim
um cavalinho branco
ele falou
pequenininho e alvo como nuvem
e sonhei
que ele vinha
no dia da primeira comunhão 
branco branco
como o vestido feito por minha mãe
                que Deus a tenha e não deixe 
                sofrer por mim
mas ele não veio
nunca veio
ficou só esta lembrança de sonho 
e um resto de raiva.
 

                        Ah, não ligue 
pra Beatriz, um olho quase perdido,
mas que ainda faz inveja nessas mulheres aí
umas podres
todas com despeito
porque tenho um homem pra dar carinho 
comida bebida roupa lavada 
e ele sempre vem 
às vezes some uns tempos mas já volta 
a gente briga
                se pega
        se unha
mas se gosta tanto
por isso elas invejam e quando eu passo 
gritam
                lá vai ela
                a vaca a
                metida a merda
                mas eu
faço que nem escuto
e vou
de cabeça erguida
dando o desprezo que elas merecem 
essas
as crocodilas.
 

Capineiro de meu pai.
Meu pai não tinha capineiro: era ele mesmo 
na roça.
                Tinha
os pés sujos
        as mãos duras
                        o rosto fechado.
Um dia me mandou pro mundo
                        que é lugar 
                                de desonradas 
dizendo graças a Deus tua mãe não viveu pra ter 
                                este desgosto 
e foi tudo como um pesadelo e nunca mais 
acordei.
Mas não culpo ele:
espero
que me perdoe
esteja vivo ou morto 
pelo amor de minha mãe.
                Ah, por isso
é que não quero falar. É que peço 
me deixem.
                        Me esqueçam
como quero esquecer.
Lembrar somente 
as ingazeiras o riacho o dia
nascendo, no morro
                        a mula Candelária 
a cachorra Raposa
                        meus irmãos pequenos
que é feito deles? 
mas me deixem
                        nem isso
que era bom demais
pra isto aqui agora que é pior sem fim
                        minha Nossa Senhora 
mas eu vou levando
e até que penso 
não é tão ruim
que somos a gente nesta sociedade 
só a gente
que cuida de tudo
                se acaba
homem menino mulher
                        e até por amor 
se desgraça
                        mas é a gente 
                        somos a gente mesma 
                        não é ninguém 
                        por isso eu agradeço 
                        levanto as mãos 
                        e agradeço 
porque é só a gente mesma
não é como lá fora.
 

Capineiro
de meu pai
agora meu pai sou eu 
                        eu 
que me mando pro mundo 
este mundo
                        eu mesma meu pai 
e minha mãe
muito mais minha mãe 
eu me consolando como ela fazia 
ela tão boa que morreu chorando 
pedindo pra não morrer 
como eu ainda escuto de noite
                        dormindo 
às vezes também acordada 
minha mãe
acho que agora é santa
                        já era santa 
como gostava dela 
como gosto
uma vez conheci uma mulher
morava aqui perto 
no alto da ladeira 
uma mulher moça que escolhia homem 
podia escolher pois não faltava 
praqueles dentes brancos
                        aquela pele 
morena de veludo
                aqueles peitos 
empinados
        cinturinha
                        fala
macia
        olhos
queimando como um fogo
preto preto
        aquela
Raquel
                        pois um dia a gente 
foi acudir:
tinha
se cortado toda com caco de vidro 
e uma velha disse:
                        lembrou 
da mãe
quando lembra da mãe se corta toda bate 
a cabeça nos móveis na parede 
pobrezinha
                        e um mês depois 
        eu soube 
comprou um remédio
                        umas bolas
e destilou
e tomou tudo pela veia e vomitou 
que era só sangue 
cada grito era sangue
quando voltou do hospital estava caída
                cadê mais 
arranjar homem?
                        os olhos 
apagados
        depois sumiu 
foi pedir esmola ou acabar de vez 
pra não lembrar mais da mãe.
Por isso digo
até que tenho sorte.  Cortada já fui 
mas não por mim.
                Uma vez a navalha
de uma puta velha
                por causa de homem
que queria ir comigo
                não com ela
e ela
me cortou
olha aqui no braço
                        e eu acertei 
uma garrafa no nariz da bruxa 
mas foi só
aí foi só
                ruim mesmo 
foi com ele
Arnaldo
        que não durou muito
                morreu 
brigando com parceiros de erva e pico 
Arnaldo
alto bonito cabelo liso 
gostou de mim
                               dividi
o quarto com ele
e era tudo bom
                        até 
que ele endoidava na rua e chegava 
pra quebrar 
e um dia
chegou tão que me pegou 
e disse vou te matar
                era forte 
fiquei sem defesa e ele enfiou a faca 
por sorte
pegou numa costela aqui
quebrou a ponta
só cortou
mesmo assim foi muito sangue 
o rapaz vizinho viu
        gritou
        Arnaldo correu
mas sujo de sangue e a polícia 
prendeu ele.
                Não passaram três dias
fui lá
disse pro delegado: solte meu homem 
foi eu que ele furou
                        não foi você 
e ele falou: esse sujeito 
lhe mata qualquer hora
                        e eu respondi
a vida é minha
e ele soltou Arnaldo 
e ele voltou comigo 
e eu acho que ia acabar furando ele um dia 
mais cedo ou mais tarde 
mas os parceiros furaram antes 
no peito e nas costas 
na mão esquerda também 
o rosto era como se ainda estivesse vivo 
só um pouco pálido 
e eu fui ao enterro com um vestido preto bonito
                que tomei emprestado
e ficava como se tivesse sido feito 
em meu corpo.
                Nem dois meses
e eu já com Luís
como até hoje
às vezes a gente briga se pega se unha 
mas se gosta tanto
                ele é bom
não foi ele
que fez mal ao meu olho
                este aqui
não foi ele
quem foi não quero dizer 
nem pensar 
só quero esquecer a fera 
e me operar
pra enxergar direito novamente
 

Ah
já cansei de correr
                        posto 
                        clínica 
                        hospital 
não é aqui é lá é mais adiante 
é não sei onde
        é
na puta que o pariu
cansei cansei 
mas não posso cansar
não quero ficar cega
                Nossa Senhora me ajude 
eu assim e o miserável nem nada 
quem vai mexer?
                me lembro do gari:
                morreu
e ficou morto e o assassino
ele
na rua pra fazer mais
pra ofender meu olho.
Chega
não falo mais           
não falo
se falasse vocês nem imaginam 
mas não falo
                        guardo minha boca 
que adianta?
                Me deixem no meu canto
que eu aqui fico pedindo a Deus pra não cair nunca
                no mundo lá de fora                     
que é muito pior.

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