A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

POLÍBIO GOMES DOS SANTOS

Biografia

 

1911-1939

 

Portugal Portugal

Políbio Gomes dos Santos (1911-1939) nasceu e faleceu em Ansião. Morreu prematuramente de tuberculose.

Obras: As Três Pessoas, Coimbra, 1938; Voz Que Escuta "Novo Cancioneiro", Coimbra, 1944; Poemas, Ed. Limiar, Porto, 1981

 

Poesias Eternas

Epitáfio

Génesis

Poema da Voz que Escuta

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 Epitáfio

 

Menino, bem menino, fiz o meu balão

Papel de seda às cores...

- Tantas eram!

Ai, nunca mais as vi, nos olhos se perderam.

Quando a tarde morria o meu balão subiu

E tão direito ia, tão veloz correu

Que eu disse: "Vai tombar a Lua

E talvez queime o céu."

 

Anoiteceu.

E no horizonte o meu balão era uma rosa

Vermelha, não minha, aflitiva,

Murchando,

Poisando na água pantanosa

De além.

 

Ninguém o viu.

 

Ninguém colheu a angústia dum balão ardendo.

Somente a água verde rebrilhou acesa,

Clamorosa e podre,

Como nos incêndios de Veneza

E rãs, acreditando o mal mortal e seu

Foram fugindo, pela noite fria,

Do balão que ardeu.

 

Ó tu, quem sejas, o balão fui eu!

 

Março, 1939

 

VOZ QUE ESCUTA, Novo Cancioneiro,1944

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Poema da Voz Que Escuta

 

Chamam-me lá em baixo.

São as coisas que não poderam decorar-me:

As que ficaram a mirar-me longamente

E não acreditaram;

As que sem coração, no relâmpago do grito,

Não poderam colher-me.

Chamam-me lá em baixo,

Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,

Onde a multidão formiga

Sem saber nadar.

Chamam-me lá em baixo

Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante

E transparente e desgraçado e vil

Quando a noite vem, criança distraída,

Que debilmente apaga os traços brancos

Deste quadro negro - a Vida.

Chamam-me lá em baixo:

Voz de coisas, voz de luta.

É uma voz que estala e mansamente cala

E me escuta.

 

Março, 1939

 

VOZ QUE ESCUTA, Novo Cancioneiro,1944

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Génesis

 

O mundo existe desde que eu fui nado.

Tudo o mais é um... era uma vez

- A história que se contou.

 

No princípio criou-se o leite que mamei

E eu vi que era bom e chorei

Quando a fonte materna secou.

 

A terra era sem forma

E vazia;

Havia trevas no abismo.

 

E formou-se o chão

E amassou-se o pão

Que eu comi.

(Era este auela esponja que eu mordia,

Que eu babava,

Que eu sujava,

Que uma gente andrajosa pedia).

 

E então se fez

a geração remota dos papões:

Nascera a esmola, o medo, a prece

E o rosto que empalidece...

E a rosa criou-se,

Desejada,

E logo o espinho,

A lágrima,

O sangue.

Este era vermelho e doce,

A lágrima doce, brilhante, salgada;

No espinho havia o gosto

Da vingança perfumada.

 

E eu vi que tudo era bom.

 

E fizeram-se os luminares

Porque eu tinha olhos,

E o som gez-se de cantares

E de gemidos, Porque eu tinha ouvidos.

Nasceram as águas

E os peixes das águas

E alguns seres viventes da terra

E as aves dos céus.

O homem que então era vagamente feito,

Dominou o homem, comprimiu-lhe o peito,

E fizeram-se as mágoas

E o adeus.

 

E eu vi que tudo era bom.

 

A mulher só mais tarde se fez:

Foi duma vez

Em que eu e ela nos somámos

e ficámos três.

 

Nisto e no mais se gastaram

Sete longuíssimos dias.

 

O mundo era feito

E embora por tudo e por nada imperfeito,

Eu vi que era bom.

 

Acaba o mundo

Quando eu morrer.

Sim... será o fim!:

Também tu deixas de existir,

No mesmo dia.

 

E o resto que se seguir

É profecia.

 

 

Poemas,Campo das Letras, 1998

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