A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

Mário de Sá Carneiro

Biografia

 

1890-1916

 

Portugal Portugal

 

Poesias Eternas

POESIAS, Edições Ática, Lisboa,

LÍRICAS PORTUGUESAS, Portugália Editora, 1ª Série, 3ª edição)

Outros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quase

 

Um pouco mais de sol - eu era brasa,

Um pouco mais de azul - eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...

 

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído

Num baixo mar enganador de espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

 

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim - quase a expansão...

Mas na minh'alma tude se derrama...

Entanto nada foi só ilusão!

 

De tudo houve um começo... e tudo errou...

- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -

Eu falhei-me entr os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou mas não voou...

 

Momentos de alma que desbaratei...

Templos aonde nunca pus um altar...

Rios que perdi sem os levar ao mar...

Ânsias que foram mas que não fixei...

 

Se me vagueio, encontro só indícios...

Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios...

 

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí...

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...

 

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

 

Um pouco mais de sol - e fora brasa,

Um pouco mais de azul - e fora além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...

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Anto

 

Caprichos de lilás, febres esguias,

Enlevos de Ópio - Íris-abandono...

Saudades de luar, timbre de Outono,

Cristal de essências langues, fugidias...

 

O pagem débil das ternuras de cetim,

O friorento das carícias magoadas;

O príncipe das Ilhas transtornadas -

Senhor feudal das Torres de marfim...

 

 

 

 

 

 

Eu não sou eu nem sou outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro.

 

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Cinco Horas

 

Minha mesa no Café,

Quero-lhe tanto... A garrida

Toda de pedra brunida

Que linda e que fresca é!

 

Um sifão verde no meio

E, ao seu lado, a fosforeira

Diante ao meu copo cheio

Duma bebida ligeira.

 

(Eu bani sempre os licores

Que acho pouco ornamentais:

Os xaropes têm cores

Mais vivas e mais brutais).

 

Sobre ela posso escrever

Os meus versos prateados,

Com estranheza dos criados

Que me olham sem perceber...

 

Sobre ela descanso os braços

Numa atitude alheada,

Buscando pelo ar os traços

Da minha vida passada.

 

Ou acendo cigarros,

- Pois há um ano que fumo -

Imaginário presumo

Os meus enredos bizarros.

 

(E se acaso em minha frente

Uma linda mulher brilha,

O fumo da cigarrilha

Vai beijá-la, claramente...)

 

Um novo freguês que entra

É novo actor no tablado,

Que o meu olhar fatigado

Nele outro enredo concentra.

 

E o carmim daquela boca

Que ao fundo descobro, triste,

Na minha ideia persiste

E nunca mais se desloca.

 

Cinge tais futilidades

A minha recordação,

E destes vislumbres são

As minhas maiores saudades...

 

(Que história de Oiro tão bela

Na minha vida abortou:

Eu fui herói de novela

Que autor nenhum empregou...).

 

Nos cafés espero a vida

Que nunca vem ter comigo:

- Não me faz nenhum castigo,

Que o tempo passe em corrida.

 

Passar tempo é o meu fito,

Ideal que só me resta:

P'ra mim não há melhor festa,

Nem mais nada acho bonito.

 

- Cafés da minha perguiça,

Sois hoje - que galardão! -

Todo o meu campo de acção

E toda a minha cobiça.

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O Recreio

 

Na minha Alma há um balouço

Que está sempre a balouçar -

Balouço à beira dum poço,

Bem difícil de montar...

 

- E um menino de bibe

Sobre ele sempre a brincar...

 

Se a corda se parte um dia

(E já vai estando esgarçada),

Era uma vez a folia:

Morre a criança afogada...

 

- Cá por mim não mudo a corda,

Seria grande estopada...

 

Se o indez morre, deixá-lo...

Mais vale morrer de bibe

Que de casaca... Deixá-lo

Balouçar-se enquanto vive...

 

- Mudar a corda era fácil...

Tal ideia nunca tive...

 

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Pied-de-nez

 

Lá anda a minha Dor às cambalhotas

No salão de vermelho atapetado -

Meu cetim de ternura engordurado,

Rendas da minha ânsia todas rotas...

 

O Erro sempre a rir-me em destrambelho -

Falso mistério, mas que não se abrange...

De antigo armário que agoirente range,

Minha alma actual o erverdinhado espelho...

 

Chora em mim um palhaço às piruetas;

O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido -

E, entretanto, foram de violetas,

 

Deram-me beijos sem os ter pedido...

Mas como sempre, ao fim - bandeiras pretas,

Tômbolas falsas, carroussel partido...

 

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Fim

 

Quando eu morrer batam em latas,

Rompam aos saltos e aos pinotes,

Façam estalar no ar chicotes,

Chamem palhaços e acrobatas!

 

Que o meu caixão vá sobre um burro

Ajaezado à andaluza...

A um morto nada se recusa,

E eu quero por força ir de burro!

 


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O Lord

 

Lord que eu fui de Escócias doutra vida.

Hoje arrasta por esta a sua decadência,

Sem brilho e equipagens.

Milord reduzido a viver de imagens,

Pára às montras de jóias de opulência

Num desejo brumoso - em dúvida iludida...

(Por isso a minha raiva mal contida,

- Por isso a minha eterna impaciência).

 

Olha as Praças, rodei-as...

Quem sabe se ele outrora

Teve Praças, como esta, e palácios e colunas -

 

Longas terras, quintas cheias,

Iates pelo mar fora,

Montanhas e lagos, florestas e dunas...

 

(- Por isso a sensação em mim fincada há tanto

Dum grande património algures haver perdido;

Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido -

E a Cor na minha Obra o que ficou do encanto...)

 

 

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Vontade de dormir

Fios de oiro puxam por mim

A soerguer-me na poeira -

Cada um para seu fim,

Cada um para seu norte...

 

...................................................................

 

- Ai que saudade da morte...

 

...................................................................

 

Quero dormir... ancorar...

 

....................................................................

 

Arranquem-me esta grandeza!

- P'ra que me sonha a beleza

Se a não posso transmigrar?

 

 

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Caranguejola

 

Ah, que me metam entre cobertores,

E não me façam mais nada!...

Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,

Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

 

Lá vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...

Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...

Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado

Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

 

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.

Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...

Que querem fazer de mim com este enleios e medos?

Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

 

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,

E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...

Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -

Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

 

Se me doem os pés e não sei andar direito,

Pra qu hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?

Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde

Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?

E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?

Deixa-te de ilusões, Mário! Bem edrédon, bom fogo -

E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

 

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.

Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?

Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me prà enfermaria! -

Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;

Em Paris, é preferível, por causa da legenda...

De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;

E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

 

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,

Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.

Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...

Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou

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 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

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