A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE

Biografia

1765-1805

Portugal Portugal 

Bocage 

Poeta lírico neoclássico português, que tinha pretensão a vir a ser um segundo Camões, mas que dissipou suas energias numa vida agitada. Nasceu em Setúbal, em 15/09/1765 e morreu em Lisboa (21/12/1805), aos 40 anos de idade, vítima de um aneurisma. Nos últimos anos o poeta vivia com uma irmã e uma sobrinha, sustentando-as com traduções de livros didáticos. Para viver seus últimos dias, inclusive, teve de valer-se de um amigo (José Pedro da Silva) que vendia, nas ruas de Lisboa, suas derradeiras composições: Improvisos de Bocage na Sua Mui Perigosa Enfermidade e Coleção dos Novos Improvisos de Bocage na Sua Moléstia. Filho de um advogado, fugiu de casa aos 14 anos para juntar-se ao exército. Foi transferido para a Armada dois anos depois. Como integrante da Academia da Armada Real, em Lisboa, dedicou seu tempo a casos amorosos, poesia e boêmia. Em 1786 foi enviado, tal qual seu herói Camões, para a Índia (Goa e Damão) e, também como Camões, desiludiu-se com o Oriente. Depois, por vontade própria e à revelia de seus superiores, dirigiu-se a Macau, voltando a Portugal em 1790. Ingressou então na Nova Arcádia — uma academia literária com vagas vocações igualitárias e libertárias —, usando o pseudônimo de Elmano Sadino. Contudo, de temperamento forte e violento, desentendeu-se com seus pares, e suas sátiras a respeito deles levou à sua expulsão do grupo. Seguiu-se uma longa guerra de versos que envolveu a maior parte dos poetas lisboetas. Em 1797, acusado de heresia, dissolução dos costumes e idéias republicanas, foi implacavelmente perseguido, julgado e condenado, sendo sucessivamente encarcerado em várias prisões portuguesas. Ali realizou traduções de Virgílio, Ovídio, Tasso, Rousseau, Racine e Voltaire, que o ajudaram a sobreviver seus anos seguintes, como homem livre. Ao recuperar a liberdade, graças à influência de amigos, e com a promessa de criar juízo, o poeta, envelhecido, parece ter abandonado a boêmia e zelado até seus últimos momentos por impor aos seus contemporâneos uma imagem nova: a de homem arrependido, digno e chefe de família exemplar. Sua passagem pelo Convento dos Oratorianos (onde é doutrinado, logo após sua saída da cadeia) parece ter contribuído para tal. Portugal, na época de Bocage, era um império em ruínas, imerso no atraso, na decadência econômica e na libertinagem cortesã, feita às custas da miséria de servos e operários, perpetuando o pantanal cinzento do absolutismo e das atitudes inquisitoriais, da Real Mesa Censória e dos calabouços destinados aos maçons e descontentes. Ninguém encarnou melhor o espírito da classe dirigente lusitana do fim do século XVIII do que Pina Manique. Ex-policial e ex-juiz, conquistou a confiança dos poderosos, tornando-se o grande senhor do reinado de D. Maria I (só oficialmente reconhecida como louca em 1795), reprimindo com grande ferocidade tudo o que pudesse lembrar as "abomináveis idéias francesas". Graças a ele, inúmeros sábios, cientistas e artistas conheceram o caminho do exílio. Bocage usou vários tipos de versos, mas fez o melhor no soneto. Não obstante a estrutura neoclássica de sua obra poética, seu intenso tom pessoal, a freqüente violência na expressão e a auto-dramatizada obsessão face ao destino e à morte, anteciparam o Romantismo. Suas poesias, Rimas, foram publicadas em três volumes (1791, 1799 e 1804). O último deles foi dedicado à Marquesa de Alorna, que passou a protegê-lo. Os poemas não censurados do autor são geralmente convencionais e bajulatórios, copiando a lição dos mestres neoclássicos e abusando da mitologia, uma espécie de poesia acadêmica feita por e para iniciados. Outra parcela de sua obra é considerada pré-romântica, trazendo para poesia o mundo pessoal e subjetivo da paixão amorosa, do sofrimento e da morte. Já sua poesia censurada surgiu da necessidade de agradar ao público que pagava: com admirável precisão, o poeta punha o dedo acusador nas chagas sociais de um país de aristocracia decadente, aliada a um clero corrupto, comprometidos ambos com uma política interna e externa anacrônica para aquele momento. Também está presente ali a exaltação do amor físico que, inspirado no modelo natural, varre longe todo o platonismo fictício de uma sociedade que via pecado e imoralidade em tudo o que não fosse convenientemente escondido.

  Principais obras SONETOS e EPIGRAMAS.

Obra:

Poesia
Rimas (3 volumes), 1791, 1799 e 1804, 1791
 

Sítios:

Auto-retrato
   http://www.terravista.pt/Enseada/5066/bocage.htm

Biografia
   http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/bocage

Biografia
    http://www.ipn.pt/literatura/bocage.htm

Biografia
   http://www.geocities.com/Paris/Lights/6041/bocage-bio.htm

Bocage- Vida e obra
   http://atelier.hannover2000.mct.pt/~pr349

Oito sonetos de Bocage
   http://www.terravista.pt/PortoSanto/7400/poesia/bocage.html

Poemas de Bocage
   http://www.terravista.pt/Guincho/2482/bocage.html

Poemas de Bocage
   http://viriato.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/bocage.html

Recensão Crítica às Fábulas de Bocage
   http://www.ipn.pt/literatura/letras/recen077.htm

 

 

Poesias Eternas

Meu ser evaporei na lida insana

Já Bocage não sou

Nos campos o vilão sem sustos passa

Vós, crédulos mortais, alucinados

Magro, de olhos azuis, carão moreno

Nariz, Nariz e Nariz

O Cão e a Cadela

A Macaca

Pena de Talião

Ó Tranças de que Amor Prisão Me Teces

A Um Mau Médico

Camões, Grande Camões, Quão Semelhante...

Quer Ver Uma Perdiz Chocar Um Gato...

Epigrama Imitado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Meu ser evaporei na lida insana

 

Meu ser evaporei na lida insana

Do tropel das paixões que me arrastava,

Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Em mim, quase imortal, a essência humana!

 

De que inúmeros sóis a mente ufana

A existência falaz me não doirava!

Mais eis sucumbe a Natureza escrava

Ao mal, que a vida em sua origem dana.

 

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumiu dos desenganos.

 

Deus... ò Deus! Quando a morte à luz me roube,

Ganhe um momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube!

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Já Bocage não sou!...

 

Já Bocage não sou!... À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento...

Eu aos céus ultrajei! O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.

 

Conheço agora já quão vã figura

Em prosa e verso fez meu louco intento.

Musa! tivera algum merecimento

Se um raio da Razão seguisse pura!

 

Eu me arrependo; a língua quase fria

Brade em alto pregão à mocidade

Que atrás do som fantástico corria:

 

Outro Aretino fui... A santidade

Manchei! Oh! se me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos, crê na eternidade!

 

LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, P. 237

 

 

Nos campos o vilão sem susto passa

 

Nos campos o vilão sem susto passa

inquieto na corte o nobre mora;

o que é ser infeliz aquele ignora,

este encontra nas pompas a desgraça;

 

aquele canta e ri, não se embaraça

com essas coisas vãs que o mundo adora;

este (oh cega ambição!) mil vezes chora,

porque não acha bem que o satisfaça;

 

aquele dorme em paz no chão deitado,

este no ebúrneo leito precioso

nutre, exaspera velador cuidado,

 

triste, sai do palácio majestoso.

Se hás-de ser cortesão mas desgraçado,

anter ser camponês e venturoso.

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Vós, Crédulos Mortais, Alucinados

 

Vós, crédulos mortais, alucinados

de sonhos, de quimeras, de aparências

colheis por uso erradas consequências

dos acontecimentos desastrados.

 

Se à perdição correis precipitados

por cegas, por fogosas, impaciências,

indo a cair, gritais que são violências

de inexoráveis céus, de negros fados.

 

Se um celeste poder tirano e duro

às vezes extorquisse as liberdades,

que prestava, ó Razão, teu lume puro?

 

Não forçam corações as divindades,

fado amigo não há nem fado escuro:

fados são as paixões, são as vontades.

 

 

Magro, de Olhos Azuis, Carão Moreno

 

Magro, de olhos azuis, carão moreno,

bem servido de pés, meão na altura,

triste de facha, o mesmo de figura,

nariz alto no meio e não pequeno.

 

Incapaz de assistir num só terreno,

mais propenso ao furor do que à ternura,

bebendo em níveas mãos por taça escura

de zelos infernais letal veneno.

 

Devoto incensador de mil deidades

(digo, de moças mil) num só momento

e somente no altar amando os frades,

 

eis Bocage, em quem luz algum talento.

Saíram dele mesmo estas verdades

num dia em que se achou mais pachorrento.

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A macaca

Em verso alexandrino

Nos serros do Brasil diz certo autor que havia 

Uma namoradeira, uma sagaz bugia. 

Milhões de chichisbéus pela taful guinchavam, 

E por não terem asa, o rabo lhe arrastavam. 

Qual, caindo-lhe aos pés de amores cego e louco, 

Nas cabeludas mãos lhe apresentava um coco; 

Qual do açúcar brilhante a sumarenta cana; 

E qual um ananás, e qual uma banana. 

Ela com riso astuto, ela com mil caretas, 

Lhe entretinha a paixão, lhe ia doirando as petas; 

Os olhos requebrava ao som de um suspirinho: 

A todos prometia o mais fiel carinho, 

E, se algum lhe rogava especial favor, 

À terna petição dizia: "Sim, senhor." 

Mas com muita esperança o fruto era nenhum, 

E os pobres animais ficavam em jejum. 

Leitores, há mulher tão destra e tão velhaca, 

Que nisto não ganha inda a melhor macaca. (Bocage)

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Bocage
 

A um mau médico

Doutor, até do hospital
Te sacode enfermo bando.
Qual será disto a causal?
É porque, em tu receitando,
Qualquer doença é mortal.

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                        (Bocage)

 

 

Camões, grande Camões, quão semelhante...

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co'o sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurante,
Da penúria cruel no horror me vejo.
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas . . . oh, tristeza! . . .
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.
  

                        (Bocage)

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Epigrama imitado

Levando um velho avarento
Uma pedrada no olho,
Põe-se-lhe no mesmo instante
Tamanho como um repolho.

Certo, doutor, não das dúzias,
Mas sim do médico perfeito,
Dez moedas lhe pedia
Para o livrar do defeito.

"Dez moedas! (diz o avaro)
Meu sangue não desperdiço:
Dez moedas por um olho!
O outro eu dou por isso."
  

                        (Bocage)

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Magro, de olhos azuis

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

  

                        (Bocage)

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Nariz, nariz e nariz

Nariz, nariz, e nariz,
Nariz, que nunca se acaba;
Nariz, que se ele desaba,
Fará o mundo infeliz;
Nariz, que Newton não quis
Descrever-lhe a diagonal;
Nariz de massa infernal,
Que, se o cálculo não erra,
Posto entre o Sol e a Terra,
Faria eclipse total!

  

                        (Bocage)

O cão e a cadela

Em verso alexandrino

Tinha de uma cadela um cão fome canina, 

Ele bom perdigueiro, ela de casta fina: 

Mil foscas lhe fazia o terno maganão, 

Mas gastava o seu tempo, o seu carinho em vão. 

Dando no chichisbéu dentada e mais dentada, 

A fêmea parecia um cadela honrada 

E incapaz de ceder às pretensões de amor. 

Mas o amante infeliz foi sabedor 

De que a mesma, em que via ações tão desabridas, 

Era co'um torpe cão fagueira às escondidas. 

Se és sagaz, meu leitor, talvez tenhas visto 

Cadelas de dois pés, que também fazem isto. (Bocage)

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Bocage
 

Ó tranças de que amor prisão me teces

Ó tranças de que Amor prisões me tece,
Ó mãos de neve, que regeis meu fado!
Ó tesouro! Ó mistério! Ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Ó ledos olhos, cuja luz parece
Tênue raio de sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!


Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois? Sois de Vênus? — É mentira;
Sois de Marília, sois dos meus amores.

  

                        (Bocage)


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Pena de Talião

Ao Padre José Agostinho de Macedo

Tu nihil invita dices, faciesve Minerva. Horácio, 

Arte Poética, V, 385 Invidia rumpantur ut ilia Codro. 

Virgílio, Écloga VII (. . .) Refalsado animal, das trevas sócio, 

Depõe, não vistas de cordeiro a pele. 

Da razão, da moral o tom que arrogas, 

Jamais purificou teus lábios torpes, 

Torpes do lodaçal, donde zunindo 

(Nuvens de insetos vis) te sobem trovas 

À mente erma de idéias, nua de arte. (. . .) 

Sanguessuga de pútridos autores, 

Que vais com cobre vil remir das tendas, 

Enquanto palavroso impõe aos néscios 

E a crédulo tropel, roncando, afirmas 

Que resolveste o que roçaste apenas 

(Falo das Artes, das Ciências falo); 

Enquanto a estátua da Ignorância elevas, 

Os dias eu consumo, eu velo as noites 

Nos desornados, indigentes lares; 

Submisso aos fados meus ali componho 

À pesada existência honesto arrimo, 

Co'a mão, que Febo estende aos seus, a poucos. 

Ali deveres, que não tens, nem prezas, 

Com fraternal piedade acato, exerço; 

Cultivo afetos à tua alma estranhos, 

Dando à virtude quanto dás ao vício. 

Não me envilece ali de um frade o soldo, 

Ali me esforça ao gênio as ígneas asas 

Coração benfazejo, e tanto e tanto 

Que a ti, seu depressor, protege, acolhe; 

Que em redondo caráter te propaga 

A rapsódia servil, poema intruso, 

Pilhagem que fizeste em mil volumes, 

Atulhado armazém de alheios fardos, 

Onde a Monotonia os mexe, os volve, 

E onde teimosa Apóstrofe se esfalfa, 

Já co'os Céus intendendo e já co'a Terra. (. . .) 

Prossegue em detrair-me, em praguejar-me, 

Porque Délio dos prólogos te exclui: 

Pregoa, espalha em sátiras, em lojas 

Que Zoilos não mereço, e sê meu Zoilo: 

Chama-me de Tisífone enteado, 

Porque em fêmeo-belmírico falsete 

Não pinto os zelos, não descrevo a morte; 

Erra versos, e versos sentencia; 

Condena-me a cantar de Ulina e d'anos. 

Agrega o magro Elmano ao fulho Esbarra; 

Ignora o baquear, que é verbo antigo, 

Dos Sousas, dos Arrais somente usado; 

Metonímias, sinédoques dispensa; 

Dá-me as pueris antíteses, que odeio; 

De estafador de anáforas me encoima; 

Faze (entre insânias) um prodígio, faze 

Qual anda o caranguejo andar meus versos; 

Supõe-me entre barris, entre marujos 

(De alguns talvez teu sangue as veias honre): 

Mas não desmaies na sua carreira; avante, 

Eia, ardor, coração . . . vaidade, ao menos! 

As oitavas ao Gama esconde embora, 

Nisso não perdes tu nem perde o mundo; 

Mas venha o mais: epístolas, sonetos, 

Odes, canções, metamorfoses, tudo . . . 

Na frente põe teu nome, e estou vingado. (Bocage)


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Quer ver uma perdiz chocar um gato...

Quer ver uma perdiz chocar um rato,
Quer ensinar a um burro anatomia,
Exterminar de Goa a senhoria,
Ouvir miar um cão, ladrar um gato;

Quer ir pescar um tubarão no mato,
Namorar nos serralhos da Turquia,
Escaldar uma perna em água fria,
Ver um cobra castiçar co'um pato;

Quer ir num dia de Surrate a Roma,
Lograr saúde sem comer dois anos,
Salvar-se por milagre de Mafoma;

Quer despir a bazófia aos Castelhanos,
Das penas infernais fazer a soma,
Quem procura amizade em vis gafanos.

  
                        (Bocage)

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 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

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