A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

LUÍS DE MONTALVOR

Biografia

 

1891-1947

 

Portugal Portugal

Luís de Montalvor (pseudônimo de Luís Felipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos).

Conhecido como o poeta de Orpheu.

 

Poesias Eternas

Narciso

 

 

 

 

 

 

 

  

 

Narciso

a Fernando Pessoa

 

 

 

Erram no oiro da tarde as sombras de estas ninfas!

 

E até onde irá o aroma dos seus gestos

que sei tentam prender meus olhos que, funestos,

sonham um esplendor fatal de pedrarias?

 

Tarde de tentação! Que estranhas melodias

inquietam o ceo de um rumor ignorado?

Seringe! Tua flauta arrosa de encantado

e sangue de Ilusão esta tarde em demencia

que a legenda recorda; e da immortal essencia

do sonho esta hora antiga exhuma o velho idilio.

 

Há mãos de festa e sonho em meu deserto exilio!

 

A Beleza é pra mim, ó ninfas! o segredo

com que Deus me vestiu de Lindo!... Ai, tenho medo

de morrer o que sou às mãos desse desejo

das ninfas; mas está a sombra que não vejo

depois e antes de mim e, se afundo olhar na ancia

de me ver, só me vejo ao collo da Distancia!

Deixai dormir um pouco o ceo nos olhos meus,

eu não os quero abrir antes que os feche, - Deus! -

 

Ninfas! vós penteais o pavor à janella

da minha alma atravez a hora sombria e bella.

Corôas não serão sobre mim as de flôres

que desfolhais, mas brancos braços de amôres

que abrem nocturnamente e num paiz sem dia...

 

Sois o sonho de mim ao collo da Alegria!

Vossa presença põe o medo em meu destino.

 

As taças que entornais do aroma sibillino

da seducção, de tédio enchem o que me déste,

Ó Deus!

Gela meu ser ao sorriso terrest'e

das virgens, que reflecte a tarde a rescender

do olor de Pan!

...E o olhar dóe por não o esconder

do ceo; pois para toda a alma dormir, do bello,

o serafico azul é como um pezadêlo!

 

Porêm como fugir ao sonho que me faz

como estrangeiro em mim; do bello azul, voraz

a bôca triste, sem côr e de humanas dôres -

como se triunfal e de palidas flôres

da noite, fôssem de um sonho, na hora escultado?

 

Captivo em mim sou como o dragão que, inviolado,

bebe a scintilação, as s'nora claridade

do cabello sinistro, onde a luz arde e invade

de metalico hallor o nixo onde se acoite...

 

Vossos cabelos ali! chovem como oiro, à noite!

como fios de horror da teia do mistério...

 

Do cabello, o esplendor do oiro esteril, é aério

c'mo de arachnideo sonho ou de siderio tecto

cinzelado no olhar - um reflexo de insecto -

no frio vôo num ar de somno e oiro e luto...

 

Avalanches de tédio em seu cabello escuto!...

 

 

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Fixo a carne, spectral, como ante inerte frizo

de sombras, a nudez, linha esquecida em riso

sobre chammas, cruel, - Joia dos calafrios! -

Um horror de ónix néva entre os meus dedos frios!

 

Contemplo o meu destino em mim.

Ninfas, adeus!

Meus gestos irreais tem seculos de Deus!

Na paisagem do ser corre um rio sem fim:

Os meus gestos são como a outra margem de mim...

Cai alma no jardim dos meus sonhos funestos.

É sempre noite lá no fundo dos meus gestos

onde espreita Deus: há luar nas minhas mãos...

As mãos abanam no ar os nossos gestos vãos,

- mundos de sonolencia ardendo em reliquarios:

Joias celestes, vós, meus gestos solitarios!

 

Por mim divaga o ceo. E morre um diadêma

à minha fronte triste e pensativa, emblêma

da alma palida como um velho pálio ou ouro...

Comtudo que torpor me encosta ao sorvedouro

c'mo esfinge que se inclina ao abysmo e debruça,

a mirar a alma, irmã de um sonho que soluça?

E que um gesto sem nome em minha alma se aclara,

e no Jardim de Deus sou a ideia mais rara!

 

Meus gestos vão como esta agua sempre correndo

pra a foz do nada; encosto a minha alma, tremendo,

à voz da agua - cristal sonoro do alhear-me!

 

No novelo de mim a minha ancia a enredar-me.

 

Ò água sempre triste em seu ir pela parte

da terra que é lívida e c'mo alma que se farte

de sonhos! Não será a minha sombra ausente

um ar vosso - ou serei a imagem da corrente?

 

Quem descesse o mistério e visse a semelhança

nesse intimo torpor das cousas, onde cansa

essa fuga do tempo em sombra reflectida...

Eu nunca terei dois gestos irmãos na vida,

e se olhasse pra traz t'ria medo de mim...

(Inter-linio de nós no sonho d'alêm-fim)

O que me reflectir roubará meu segredo.

O tempo escorre por nós como alguem com medo

por sobre um muro... Crio olhos de ser distante...

Na alma porei as mãos como por um quadrante...

As mãos são tempo... e tudo é um somno de si...

 

Miro-me, e não serei a sombra onde vi?...

 

Ó espelho sem hora! Ó água em somno, lustral,

- espelho horizontal de tédio c'mo um canal

sem ter fundo nem fim. Meu perfil sua dôr!

Só me reflicto e não me vejo no torpor

da agua que abana o tempo... ai, o tempo é a voz

com que se acorda o medo - escultura de nós

na distancia...

Em rumor, na agua, vago demencia

e durmo de Beleza ao collo da Aparencia,

que foge como esta agua e este tempo a correr...

Marulhar de mim no fundo do meu ser...

Só as mãos sabem ter o ar de sonhos contin'os...

Ai! Se o olhar cai nas mãos, desenham-se destinos

como arabescos...

Abro os braços, mas em vão,

e ergo-me de mim com veste de comoção!

 

Resta-me contemplar pela noite que inundo

de mim, pendido sobre a aparencia do mundo,

Minha sombra exilada esculto-a na doçura!

 

Perturbo-me de Deus nos braços da Ternura!

Sinto que a minha voz já atravessou Deus!...

Cresço sobre mim, ó noite em delírio!

Adeus!

Imagem de ser bello às mãos da minha infancia.

 

Sou echo de rumor quebrado na distancia.

 

Alma da noite antiga incendiada a lavores!

 

 

 

in Orpheu 2

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