JOSÉ SARAMAGO
Biografia
1922 Portugal
O Nobel Lusófono!
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Poesias Eternas |
Meu amigo, meu espanto,
meu convívio,
Quem pudera dizer-te
estas grandezas,
Que eu não falo do mar,
e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o
caminho pára,
Na figura do corpo está
a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o
meu trabalho,
E sei, se tanto um homem
sabe,
As veredas mais fundas da
palavra
E do espaço maior que,
por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da
memória,
Das correntes do sangue o
desafio
Por cima da fronteira e
da diferença.
E a ardência das pedras,
a dura combustão
Dos corpos percutidos
como sílex,
E as grutas do pavor,
onde as sombras
De peixes irreais entram
as portas
Da última razão, que se
esconde
Sob a névoa confusa do
discurso.
E depois o silêncio, e a
gravidade
Das estátuas jazentes,
repousando,
Não mortas, não
geladas, devolvidas
À vida inesperada,
descoberta,
E depois, verticais, as
labaredas
Ateadas nas frontes como
espadas,
E os corpos levantados,
as mãos presas,
E o instante dos olhos
que se fundem
Na lágrima comum. Assim
o caos
Devagar se ordenou entre
as estrelas.
Eram estas as grandezas
que dizia
Ou diria o meu espanto,
se dizê-las
Já não fosse este
canto.
PROVAVELMENTE ALEGRIA
Não direi:
Que o silêncio me sufoca
e amordaça.
Calado estou, calado
ficarei,
Pois que a língua que
falo é de outra raça.
Palavras consumidas se
acumulam,
Se represam, cisterna de
águas mortas,
Ácidas mágoas em limos
transformadas,
Vaza de fundo em que há
raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço
de as dizer merecem,
Palavras que não digam
quanto sei
Neste retiro em que me não
conhecem.
Nem só lodos se
arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam,
mortos, medos,
Túrgidos frutos em
cachos se entrelaçam
No negro poço de onde
sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e
mudo,
Que quem se cala quando
me calei
Não poderá morrer sem
dizer tudo.
Oculta consciência de não
ser,
Ou de ser num estar que
me transcende,
Numa rede de presenças e
ausências,
Numa fuga para o ponto de
partida:
Um perto que é tão
longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de
temer
A semente que de ser se
surpreende,
As pedras que repetem as
cadências
Da onda sempre nova e
repetida
Que neste espaço curvo
vem de ti.
Há na memória um rio
onde navegam
Os barcos da infância,
em arcadas
De ramos inquietos que
despregam
Sobre as águas as folhas
recurvadas.
Há um bater de remos
compassado
No silêncio da lisa
madrugada,
Ondas brancas se afastam
para o lado
Com o rumor da seda
amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio
exacto,
À hora que mais conta
duma vida,
Um acordar dos olhos e do
tacto,
Um ansiar de sede
inextinguida.
Há um retrato de água e
de quebranto
Que do fundo rompeu desta
memória,
E tudo quanto é rio abre
no canto
Que conta do retrato a
velha história.
OS POEMAS IMPOSSÍVEIS
FALA DO VELHO DO RESTELO
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
(José Saramago)
Do Livro O ANO 1993:
O interrogatório do homem que saiu
de casa de-
pois da hora de recolher começou há quinze
dias e
ainda não acabou
Os inquiridores fazem uma pergunta em cada
sessenta minutos vinte quatro por dia e exi-
gem cinquenta e nove respostas diferentes para
cada uma
É um método novo
Acreditam que é impossível não
estar a resposta
verdadeira entre as cinqüenta e nove que foram
dadas
E contam com a perspicácia
do ordenador para
descobrir qual delas seja e a sua ligação
com as
outras
Há quinze dias que o homem não dorme
nem
dormirá enquanto o ordenador não disser
não pre-
ciso de mais ou o médico não preciso
de tanto
Caso em que terá o seu definitivo sono
O homem que saiu de casa depois da hora
de
recolher não dirá por que saiu
E os inquiridores não sabem que
a verdade está
na sexagésima resposta
Entretanto a tortura continua até que o médico
declare
Não vale a pena
|
Um dos resultados da catástrofe
foi que de uma
hora para a outra os animais domésticos
deixaram
de o ser
A primeira vítima de
que houve notícia foi a
mulher do governador escolhido pelo ocupante
Quando o macaco amestrado que a divertia
nas
horas de aborrecimento a crucificou
no portão do
jardim enquanto as galinhas saíram da capoeira
para
vir arrancar-lhe à bicada as unhas dos pés
Muitas velhinhas inocentes foram arranhadas
por gatos castrados de estimação em memória
do
atentado sofrido
E numerosas crianças ficaram infelizmente
cegas
pelos bicos agudos das aves que se atiravam dos ra-
mos e das alturas como pedras
Privadas dos animais domésticos as pessoas
dedicaram-se activamente ao cultivo de flores
Destas não há que esperar mal se não
for dada
excessiva importância ao recente caso de uma
rosa
carnívora
|
Nos quatro pontos cardeais os vigias defendem o
sono cansado da tribo ou rebanho de gente que
va-
gueia pelos campos
Um homem ao norte uma mulher
ao sul outro
homem a oriente e a ocidente a segunda mulher
Estão sentados de pernas cruzadas
atentos a to-
das as sombras e gritam quando há perigo
Mas porque os perseguidores
não gostam de
atacar na escuridão a noite
decorre muitas vezes
calma apenas fria
Ao amanhecer a tribo acorda
e divide-se em
quatro grupos conforme os pontos cardeais
e vai
agradecer aos vigias a vida conservada
Depois o homem do norte e a mulher
do sul o
homem do oriente e a mulher do ocidente juntam
os
sexos porque assim foi decidido que deveria aconte-
cer todas as manhãs
Enquanto a união dura cantam em redor a única
canção feliz que não esqueceram
O sol levanta-se sobre os quatro corpos
nus que
são a esperança inconsciente da tribo
Entretanto acende-se a primeira fogueira e o
fumo azul da lenha sobe para o céu
|
Podia ter acontecido a qualquer hora do dia
Quando debaixo do sol a horda se deslocasse na
rasa e dura planície
Ou quando à sombra de uma
rocha alta acredi-
tasse no fim dos males do mundo só porque
ali uma
frescura passageira os tornava distantes
Ou quando a penumbra miserável fizesse
apete-
cer uma lenta dissolução no espaço
Mas foi de noite na negrura
aflita da caverna lá
onde só o olho vermelho das brasas tinha
pena dos
homens
E onde o cheiro dos corpos humilhados de gases
de suor de descargas de sémen
E onde intermináveis insónias
se resolviam em
suicídios
Que subitamente um homem descobriu
que não
sabia ler
Em vão recordava as letras em vão as
desenhava
ele próprio na memória
Eram riscos cegos na escuridão
desenhos de
Marte Mercúrio ou Plutão ou ainda
a escrita do sis-
tema planetário da Betelgeuse
Nada que fosse humano e
fraterno nada que ti-
vesse o gosto comum do pão e do sal
Quando o sol nasceu e
a horda saiu para o ar
livre e para o mundo aprisionado
O homem sentou-se no chão
dobrado como um
feto
E prometeu morrer sem resistência
se a lepra
que lhe nascera durante a noite não fosse nunca
des-
coberta pelos companheiros que talvez ainda soubes-
sem ler
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Levantou-se então um grande
vento que varreu
de estrema a estrema entre o mar
e a fronteira a
terra dos homens
Durante três dias soprou
constante arrastando
as nuvens dos incêndios e o cheiro da carne
morta
dos invasores
Durante três dias as árvores
foram sacudidas
mas nenhuma arrancada porque este vento era igual
a uma mão apenas firme
As carcaças dos animais mecãnicos
rolavam pe-
las planícies como arbustos desenraizados e
tudo era
arrastado para longe para os países onde os
pesade-
los nascem e o terror
Depois choveu e a terra ficou subitamente
verde
com um enorme arco-íris que
não se desvaneceu
nem quando o sol se pôs
Nessa primeira noite ninguém
dormiu e toda a
gente saiu das cidades para ver melhor as sete cores
contra o fundo negríssimo do céu
E houve quem chorasse
de joelhos na terra
branda nas ervas que rescendiam
do vertiginoso
cheiro do húmus
E houve quem ininterruptamente
cantasse uma
extática melodia não ouvida
antes que era o longo
suspiro soluço da vida que nascendo se sufoca
plena
na garganta
E pelos campos fora arderam fogueiras
altas que
fizeram da terra vista
do espaço um outro céu
estrelado
E um homem e uma mulher
caminharam entre a
noite e as ervas naturais e foram
deitar-se no lugar
precioso onde nascia o arco-íris
Ali se despiram e nus debaixo das
sete cores fo-
ram toda a noite um novelo de vida
murmurante so-
bre a erva calcada e cheirosa das seivas derramadas
Enquanto longe no mar
o outro ramo do arco-
-íris mergulhava até ao fundo
das águas e os peixes
deslumbrados giravam em redor da luminosa coluna
O dia amanheceu numa terra
livre por onde cor-
riam soltos e claros os
rios e onde as montanhas
azuis mal repousavam sobre as planícies
A mulher e o
homem voltaram à cidade
dei-
xando pelo chão um rasto de
sete cores lentamente
diluídas até se fundirem no verde absoluto
dos
prados
Aqui os animais
verdadeiros pastavam erguen-
do os focinhos húmidos
de orvalho e as árvores
carregavam-se de frutos pesados
e ácidos enquanto
no interior delas
se preparavam as doce combi-
nações químicas do outono
Entretanto o arco-íris tem
voltado todas as noi-
tes e isso é um bom sinal
|
(José Saramago) |
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