A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

JOSÉ SARAMAGO

Biografia

 

1922

Portugal

José Saramago

José Saramago nasceu em Azinhaga, na Golegã, em 1922.

José Saramago tem desempenhado diversas profissões ao longo da sua vida desde jornalista, director literário e de produção de uma editora, director-adjunto do Diário de Notícias, desenhador, funcionário público e tradutor.

Colaborou com produções suas em diversas publicações nomeadamente a Seara Nova, o Diário de Lisboa, A Capital e O Jornal do Fundão.

A sua obra estende-se pela poesia, ficção e teatro, sendo de 1947 a sua primeira obra, Terra com Pecado.

Em 1980 recebeu o Prémio Cidade de Lisboa, pela sua obra Levantado do Chão, que também lhe granjeou o Prémio Internacional Ennio Flaiano.

Em 1984, recebeu o Prémio do PEN Clube Português, Prémio da Crítica, Prémio D. Dinis, Prémio Grinzane-Cavour, Prémio do jornal The Independent pela obra O Ano da Morte de Ricardo Reis e em 1991 recebeu o Grande Prémio do Romance e Novela da APE, pela obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

José Saramago recebeu em 1992 os Prémios Internacional Literário Mondello e Literário Brancatti, ambos italianos e atribuídos pelo conjunto da sua obra, em 1993 o Prémio Vida Literária da APE, em 1995, o Prémio Consagração SPA e em 1995 o Prémio Camões.

José Saramago é um dos mais significativos escritores portugueses da actualidade, um dos mais conhecidos internacionalmente e um dos escritores mais traduzidos da literatura em língua portuguesa.

Em 1999 José Saramago recebeu o prémio Nobel da Literatura pelo conjunto da sua obra.

 

 

Obra:

Ficção
Manual de Pintura e Caligrafia, 1977
Objecto Quase, 1978
Poética dos Cincos Sentidos, 1979
Levantado do Chão , 1980
Memorial do Convento , 1982
O Ano da Morte de Ricardo Reis , 1984
A Jangada de Pedra , 1986
História do Cerco de Lisboa , 1989
O Evangelho Segundo Jesus Cristo , 1991
Ensaio Sobre a Cegueira , 1995
 

Teatro
A Noite , 1979
Que Farei com Este Livro? , 1980
A Segunda Vida de Francisco de Assis , 1987
In Nomine Dei , 1993
 

Poesia
Os Poemas Possíveis, 1966
Provavelmente Alegria, 1970
O Ano de 1993, 1975
 


Cadernos de Lanzarote - 3 volumes
Deste Mundo e do Outro, 1971
A Bagagem do Viajante, 1973
As Opiniões que o DL Teve, 1974
Os Apontamentos, 1976
Viagem a Portugal, 1981
 

 

O Nobel Lusófono!

 

Poesias Eternas

Poema Para Luís de Camões

Poema à Boca Fechada

Espaço Curvo e Finito

Retrato do Poeta Quando Jovem

Fala do Velho do Restelo

O Ano 1993: Diversas Poesias

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4

6

14

16

29

 

 

 

 

POEMA PARA LUÍS DE CAMÕES  

  

Meu amigo, meu espanto, meu convívio,  

Quem pudera dizer-te estas grandezas,  

Que eu não falo do mar, e o céu é nada  

Se nos olhos me cabe.  

A terra basta onde o caminho pára,  

Na figura do corpo está a escala do mundo.  

Olho cansado as mãos, o meu trabalho,  

E sei, se tanto um homem sabe,  

As veredas mais fundas da palavra  

E do espaço maior que, por trás dela,  

São as terras da alma.  

E também sei da luz e da memória,  

Das correntes do sangue o desafio  

Por cima da fronteira e da diferença.  

E a ardência das pedras, a dura combustão  

Dos corpos percutidos como sílex,  

E as grutas do pavor, onde as sombras  

De peixes irreais entram as portas  

Da última razão, que se esconde  

Sob a névoa confusa do discurso.  

E depois o silêncio, e a gravidade  

Das estátuas jazentes, repousando,  

Não mortas, não geladas, devolvidas  

À vida inesperada, descoberta,  

E depois, verticais, as labaredas  

Ateadas nas frontes como espadas,  

E os corpos levantados, as mãos presas,  

E o instante dos olhos que se fundem  

Na lágrima comum. Assim o caos  

Devagar se ordenou entre as estrelas.  

  

Eram estas as grandezas que dizia  

Ou diria o meu espanto, se dizê-las  

Já não fosse este canto. 

 

PROVAVELMENTE ALEGRIA

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Poema à Boca Fechada

 

Não direi:

Que o silêncio me sufoca e amordaça.

Calado estou, calado ficarei,

Pois que a língua que falo é de outra raça.

 

Palavras consumidas se acumulam,

Se represam, cisterna de águas mortas,

Ácidas mágoas em limos transformadas,

Vaza de fundo em que há raízes tortas.

 

Não direi:

Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,

Palavras que não digam quanto sei

Neste retiro em que me não conhecem.

 

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,

Nem só animais boiam, mortos, medos,

Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam

No negro poço de onde sobem dedos.

 

Só direi,

Crispadamente recolhido e mudo,

Que quem se cala quando me calei

Não poderá morrer sem dizer tudo.

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Espaço Curvo e Finito

 

Oculta consciência de não ser,

Ou de ser num estar que me transcende,

Numa rede de presenças e ausências,

Numa fuga para o ponto de partida:

Um perto que é tão longe, um longe aqui.

Uma ânsia de estar e de temer

A semente que de ser se surpreende,

As pedras que repetem as cadências

Da onda sempre nova e repetida

Que neste espaço curvo vem de ti.

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Retrato do Poeta Quando Jovem

 

Há na memória um rio onde navegam

Os barcos da infância, em arcadas

De ramos inquietos que despregam

Sobre as águas as folhas recurvadas.

 

Há um bater de remos compassado

No silêncio da lisa madrugada,

Ondas brancas se afastam para o lado

Com o rumor da seda amarrotada.

 

Há um nascer do sol no sítio exacto,

À hora que mais conta duma vida,

Um acordar dos olhos e do tacto,

Um ansiar de sede inextinguida.

 

Há um retrato de água e de quebranto

Que do fundo rompeu desta memória,

E tudo quanto é rio abre no canto

Que conta do retrato a velha história.

 

 

OS POEMAS IMPOSSÍVEIS

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FALA DO VELHO DO RESTELO


Aqui, na Terra, a fome continua, 

A miséria, o luto, e outra vez a fome.  

  

Acendemos cigarros em fogos de napalme 

E dizemos amor sem saber o que seja. 

Mas fizemos de ti a prova da riqueza, 

E também da pobreza, e da fome outra vez. 

E pusemos em ti sei lá bem que desejo 

De mais alto que nós, e melhor e mais puro. 

  

No jornal, de olhos tensos, soletramos 

As vertigens do espaço e maravilhas: 

Oceanos salgados que circundam 

Ilhas mortas de sede, onde não chove. 

  

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa 

Onde come, brincando, só a fome, 

Só a fome, astronauta, só a fome, 

E são brinquedos as bombas de napalme. 

 
 

                        (José Saramago)

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O ANO 1993 - Diversas Poesias

Do Livro O ANO 1993:

2
Os  habitantes da cidade doente de peste estão
reunidos na praça grande que assim ficou conhecida
porque todas as outras se atulharam de ruínas
 
Foram tirados das suas casas por uma ordem
que ninguém ouviu
 
Porém segundo estava escrito em lendas anti-
quíssimas haveria vozes vindas do céu ou trom-
betas ou  luzes extraordinárias e todos quiseram 
estar presentes
 
Alguma coisa podia talvez uceder  no  mundo
antes do triunfo  final da peste nem que fosse uma
peste maior
 
Ali  estão  pois  na praça angustiados e em silêncio
à espera
 
E  depois  nada mais se ouve que uma aérea e
delicada música de cravo
 
Qualquer fuga composta há duzentos e cin-
qüenta anos por João Sebastião Bach em Leipzig
 
É  então  que  os homens e as mulheres sem espe-
rança se deixam cair no pavimento estalado da praça
 
Enquanto  a música  se afasta e voa sobre os cam-
pos desvastados

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 O  interrogatório do homem que saiu de casa de-
pois da hora de recolher começou há quinze dias e
ainda não acabou
 
Os  inquiridores fazem uma pergunta em cada
sessenta minutos vinte quatro por dia e exi-
gem  cinquenta e nove respostas diferentes para
cada uma
 
É um método novo
 
Acreditam que é impossível não estar a resposta
verdadeira entre as cinqüenta e nove que foram
dadas
 
E  contam  com a  perspicácia do ordenador para
descobrir qual delas seja e a sua ligação com as
outras
 
Há quinze dias que o homem não dorme nem
dormirá enquanto o ordenador não disser não pre-
ciso de mais ou o médico não preciso de tanto
 
Caso em que terá o seu definitivo sono
 
O  homem que saiu  de casa depois da hora de
recolher não dirá por que saiu 
 
E  os  inquiridores não sabem que a verdade está
na sexagésima resposta 
 
Entretanto a tortura continua até que o médico
declare 
 
Não vale a pena

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Um  dos  resultados  da catástrofe foi que de uma
hora para a outra  os animais  domésticos deixaram
de o ser
 
A   primeira  vítima  de que  houve notícia  foi a
mulher do governador escolhido pelo ocupante
 
Quando o macaco  amestrado que a divertia  nas
horas  de  aborrecimento a crucificou  no portão do
jardim enquanto as galinhas saíram da capoeira para
vir arrancar-lhe à bicada as unhas dos pés
 
Muitas velhinhas inocentes foram arranhadas
por gatos castrados de estimação em memória do
atentado sofrido
 
E  numerosas crianças ficaram infelizmente cegas
pelos bicos agudos das aves que se atiravam dos ra-
mos e das alturas como pedras
 
Privadas dos animais domésticos as  pessoas
dedicaram-se activamente ao cultivo de flores
 
Destas não há que esperar mal se não for dada
excessiva importância ao recente caso de uma rosa
carnívora
  

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Nos quatro pontos cardeais os vigias defendem o
sono  cansado da tribo ou rebanho de gente que va-
gueia pelos campos
 
Um  homem  ao norte  uma  mulher  ao  sul   outro
homem a oriente e a ocidente a segunda  mulher
 
Estão  sentados  de  pernas cruzadas atentos a to-
das as sombras e gritam quando há perigo
 
Mas  porque  os  perseguidores  não  gostam  de
atacar na escuridão  a  noite  decorre  muitas vezes
calma apenas fria
 
Ao  amanhecer  a  tribo  acorda  e  divide-se  em
quatro grupos conforme  os  pontos cardeais  e  vai
agradecer aos vigias a vida conservada
 
Depois o homem  do  norte e a mulher  do sul  o
homem do oriente e a mulher do ocidente juntam  os
sexos porque assim foi decidido que deveria aconte-
cer todas as manhãs
 
Enquanto a união dura cantam em redor a única
canção feliz que não esqueceram
 
O  sol  levanta-se sobre os quatro corpos nus que
são a esperança inconsciente da tribo
 
Entretanto acende-se a  primeira fogueira e o
fumo azul da lenha sobe para o céu

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Podia ter acontecido a qualquer hora do dia
 
Quando  debaixo do sol a horda se deslocasse na
rasa e dura planície
 
Ou  quando  à sombra de  uma  rocha  alta  acredi-
tasse  no fim dos males do mundo só porque ali uma
frescura passageira os tornava distantes
 
Ou  quando  a penumbra miserável fizesse apete-
cer uma lenta dissolução no espaço
 
Mas  foi  de  noite  na  negrura aflita da caverna lá
onde só o olho vermelho  das brasas tinha pena dos
homens
 
E  onde o cheiro dos corpos humilhados de gases
de suor de descargas de sémen
 
E  onde  intermináveis  insónias  se  resolviam em
suicídios
 
Que  subitamente  um  homem  descobriu que não
sabia ler
 
Em vão recordava as letras em vão as desenhava
ele próprio na memória
 
Eram  riscos  cegos na  escuridão  desenhos   de
Marte Mercúrio ou Plutão  ou ainda a escrita do  sis-
tema planetário da Betelgeuse
 
Nada  que  fosse  humano  e  fraterno  nada que ti-
vesse o gosto comum do pão e do sal
 
Quando  o  sol  nasceu  e  a  horda  saiu  para o ar
livre e para o mundo aprisionado
 
O  homem  sentou-se  no  chão  dobrado como um
feto
 
E  prometeu  morrer  sem  resistência   se  a  lepra
que lhe nascera durante a noite não fosse nunca des-
coberta pelos companheiros que talvez ainda soubes-
sem ler
 
 

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Levantou-se  então  um  grande  vento que varreu
de estrema a estrema entre  o  mar  e a  fronteira  a
terra dos homens
 
Durante  três  dias  soprou  constante  arrastando
as nuvens dos  incêndios e o cheiro da carne morta
dos invasores
 
Durante três  dias  as  árvores   foram   sacudidas
mas nenhuma arrancada porque este vento era igual
a uma mão apenas firme
 
As carcaças dos  animais  mecãnicos  rolavam  pe-
las planícies como arbustos desenraizados e tudo era
arrastado para longe para os países onde os pesade-
los nascem e o terror
 
Depois  choveu  e  a terra ficou subitamente verde
com um  enorme  arco-íris  que  não se  desvaneceu
nem quando o sol se pôs
 
Nessa  primeira   noite  ninguém  dormiu  e  toda  a
gente saiu das cidades para ver melhor as sete cores 
contra o fundo negríssimo do céu
 
E  houve   quem  chorasse   de  joelhos  na   terra
branda nas  ervas  que  rescendiam  do  vertiginoso
cheiro do húmus
 
E  houve   quem  ininterruptamente  cantasse  uma
extática melodia  não ouvida  antes  que  era  o longo
suspiro soluço da vida que nascendo se sufoca plena
na garganta
 
E  pelos  campos  fora arderam fogueiras altas que
fizeram  da   terra   vista   do   espaço   um   outro  céu
estrelado 
 
E  um  homem  e  uma  mulher  caminharam entre a
noite e as ervas naturais  e  foram  deitar-se  no  lugar 
precioso onde nascia o arco-íris
 
Ali  se  despiram e nus debaixo  das  sete cores fo-
ram toda  a  noite  um novelo de vida  murmurante  so-
bre a erva calcada e cheirosa das seivas derramadas
 
Enquanto   longe  no  mar  o  outro  ramo  do  arco-
-íris mergulhava  até  ao fundo das águas e os peixes
deslumbrados  giravam em redor da luminosa coluna
 
O  dia  amanheceu  numa  terra  livre  por  onde cor-
riam  soltos  e  claros  os  rios  e  onde  as  montanhas
azuis mal repousavam sobre as planícies
 
A   mulher   e   o   homem   voltaram   à   cidade  dei-
xando pelo chão  um  rasto  de  sete  cores  lentamente
diluídas até se fundirem no verde absoluto dos
prados
 
Aqui   os   animais   verdadeiros   pastavam   erguen-
do  os   focinhos   húmidos   de   orvalho   e   as  árvores
carregavam-se  de  frutos  pesados  e  ácidos enquanto
no   interior   delas   se   preparavam   as   doce   combi-
nações químicas do outono
 
Entretanto  o  arco-íris  tem   voltado   todas   as  noi-
tes e isso é um bom sinal
(José Saramago)

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