A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

JOAQUIM NAMORADO

Biografia

1914-1986

Portugal Portugal

Joaquim Namorado (1914-1986) alentejano de Alter do Chão licenciou-se em Coimbra em Matemática e foi professor do ensino particular. Foi um dos principais propulsionadores do neo-realismo português.

Das suas obras destacamos: Aviso à Navegação, "Novo Cancioneiro", Coimbra, 1941; Incomodidade, poesia, Coimbra, 1945; Poesia Necessária, Coimbra, 1966

 

Poesias Eternas

Aviso à Navegação

Cantar de Amigo

Caridade

Fábula

Legenda

Manhã de Abril

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fábula

 

No tempo em que os animais falavam

Liberdade!

Igualdade!

Fraternidade!

 

LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, P. 205

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Legenda

 

Façam ruínas

do que me afirmo,

espalhem ao vento as cinzas

do que sou:

na parcela mais remota do que fui

estou.

 

INCOMODIDADE, LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, P. 206

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Aviso à Navegação

 

Alto aí!

Aviso à navegação!

Eu não morri:

Estou aqui

na ilha sem nome,

sem latitude nem longitude,

perdida nos mapas,

perdida no mar Tenebroso!

Sim, eu,

o perigo para a navegação!,

o dos saques e das abordagens,

o capitão da fragata

cem vezes torpedeada,

cem vezes afundada,

mas sempre ressuscitada!

 

Eu que aportei

com os porões inundados,

as torres desmoronadas,

os mastros e os lemes quebrados

– mas aportei!

 

E não espereis de mim a paz...

Aviso à navegação

Não espereis de mim a paz!

 

Que quanto mais me afundo

maior é a minha ânsia de salvar-me!

Que quanto mais um golpe me decepa

maior é a minha força de luar!

 

Não espereis de mim a paz!

 

Que na guerra

só conheço dois destinos

ou vencer – ai dos vencidos! -

ou morrer sob os escombros

da luta que alevantei!

 

– (Foi jeito que me ficou,

não me sei desinteressar

do jogo que me jogar.)

 

Não espereis de mim a paz,

aviso à navegação!

 

Não espereis de mim a paz

que vos não sei perdoar!

 

 

AVISO À NAVEGAÇÃO

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Manhã de Abril

 

Olho o céu nas poças da rua

que a chuva de ontem deixou,

como pássaros verdes as primeiras folhas

empoleiram-se nos ramos enegrecidos a do inverno

e o sol entorna sobre o casario miserável

uma chuva de falso oiro.

Que raiva me dá...

Foi hoje a enterrar aquela miúda loura

que via brincar na rua

com as tranças apertadas nos laços vermelhos

- morressem antes os velhos

que da vida nada esperam,

já sem amor, já sem esperança,

roídos de chagas e da lepra dos dias.

que não morresse ninguém, valá!

mas ela...

levaram-lhe flores os outros meninos da rua,

iam contentes como para uma festa,

e a mãe atrás do caixão chorando,

e as folhas verdes

e as flores nos canteiros e nas janelas

como se florir fosse uma coisa natural e inevitável

e o velho mendigo cego estendendo a mão,

e a gente educada tirando o chapéu por hábito...

 

 

 

Que raiva me dá a Primavera sobre a dor do Mundo!

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Cantar de Amigo

 

 Eu e tu: milhões!…

 

 

Entre nós - perto ou longe!

- entre nós rios e mares

montanhas e cordilheiras…

 

 

Eu e tu perdidos

nesta distância sem fim do desconhecido.

 

                                                                      

Eu e tu unidos

para além das cordilheiras

por sobre mares de diferença

na comunhão de nossos destinos confundidos

- a minha e a tua vida

correndo para a confluência

num mesmo Norte.

 

 

Eu e tu amassados

nesta angútia que é de nós,

minha e tua,

e mais do que de nós…

 

 

Eu e tu

carne do mesmo corpo

amor do mesmo amor

sangue do mesmo sacrificio!

 

 

Eu e tu

elos da mesma cadeia

grãos da mesma seara

pedras da mesma muralha!

 

 

Eu e tu, que não sei quem és.

Que não sabes quem sou:

 

 

- Eu e tu: Amigo! Milhões…

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 Caridade

 

 As senhoras da sociedade

deram um baile a rigor

para vestir a pobreza

e a pobreza horas a fio

cortou, coseu, enfeitou

os vestidos deslumbrantes

que a caridade exibiu.

 

 

 Depois das contas bem feitas

bem tiradas as despesas

arranjou um namorado

a mais nova das Fonsecas;

esteve bem a viscondessa,

veio o nome e o retrato

da comissão nos jornais,

e o Doutor, o Menezes,

o senhor desembargador,

estiveram muito engraçados,

dançaram o tiro-liro

já meio-tombados...

 

 

 Parece que ainda sobrou

algum dinheiro para chita

para vestir a pobreza

numa festa comovente

com discursos de homenagem

e uma missa...

a que assistiu toda a gente.

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 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

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