A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

JOÃO DE DEUS 

Biografia

1830-1896

Portugal Portugal

João de Deus nasceu em São Bartolomeu de Messines, no Algarve, em 1830 e faleceu em 1896.

A maioria dos seus poemas encontra-se na colectânea Campo de Flores.

Distinguiu-se também por ser o autor da CARTILHA MATERNAL, um novo método pedagógico para a aprendizagem da leitura que ainda hoje é utilizado nos Jardins. 

Após ter terminado o curso de Direito na Universidade de Coimbra, em 1859, levou uma vida um pouco complicada e difícil em termos económicos e monetários que duraria até à publicação, em 1869, da sua primeira obra Flores do Campo e à sua eleição para deputado.

 

Em 1876, publicou a obra que o imortalizaria A Cartilha Maternal e que se tornou o método para aprender a ler nas escolas portuguesas, tornando-o famoso como pedagogo.

 

A Vida é considerada por muitos a obra-prima de João de Deus.

 

Foi director do jornal O Bejense, entre 1862 e 1864 e colaborou em diversos jornais regionais.

 

 

Obra:

Ficção
Flores do Campo, 1869
Ramo de Flores, 1869
 


Dicionário Prosódico de Portugal e Brasil, 1870
Cartilha Maternal, 1876
Folhas Soltas, 1876
Despedidas de Verão, 1880
Campo de Flores, 1893
 

 

Poesias Eternas

Avarento

Boas Noites

A Cigarra e a Formiga

Crucifixo

Dia de Anos

Estrela

Gramática Rudimentar

Hymno de Amor

Minha mãe

Miséria

Perdão

Soneto

 Com excepção do Soneto, os poemas foram retirados do CAMPO DE FLORES,,, IMPRENSA NACIONAL, LISBOA, 1896, 2ª EDIÇÃO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Avarento

 

Puxando um avarento de um pataco

para pagar a tampa de um buraco

que tinha já nas abas do casaco,

levanta os olhos, vê o céu opaco,

revira-os fulo e dá com um macaco

defronte, numa loja de tabaco,

que lhe fazia muito mal ao caco!

 

Diz ele então

na força da paixão:

- Há casaco melhor que aquela pele?

Trocava o meu casaco por aquele...

e até a mim... por ele.

 

Tinha razão

quanto a mim.

Quem não tem coração,

quem não tem alma de satisfazer

as niquices da civilização

homem não deve ser:

seja saguim,

que escusa tanga, escusa langotim.

 

Vá para os matos;

já não sofre tratos

a calçar as botas, a comprar sapatos.

Viva nas tocas como os nossos ratos

e coma cocos, que são mais baratos!

topo

 

 

 

 

Estrela

 

Estrela que me nasceste

quando a vista mal te alcança

nessa abóbada celeste,

onde a nossa alma descansa

a sua última esperança...

Estrela que me nasceste

quando a vista mal te alcança!

 

Antes nascesses mais cedo,

estrela da madrugada,

e não já noite cerrada...

Que até no céu mete medo

ver essa estrela isolada...

Antes nascesses mais cedo.

estrela da madrugada!

topo

 

 

 

 

Minha Mãe

 

Quando a minha alma estende o olhar ansioso

por esse mundo a que inda não pertenço,

das vagas ondas desse mar imenso

destaca-se-me um vulto mais formoso.

 

É minha santa mãe, berço mimoso

donde na minha infância andei suspenso;

é minha santa mãe, que vejo, e penso

verei sempre, se Deus é piedoso.

 

Como línguas de fogo que se atraem,

àvidamente os braços despedimos

um para o outro, mas os braços caem...

 

porque é então que olhamos e medimos

a imensa distãncia donde saem

os ais da saudade que sentimos!

topo

 

 

 

 

Soneto

 

Foi-se-me pouco a pouco amortecendo,

a luz que nesta vida me guiava,

olhos fitos na qual até contava

ir os degraus do túmulo descendo.

 

Em se ela anuviando, em a não vendo,

já se me a luz de tudo anuviava,

despontava ela apenas, despontava

logo em minha alma a luz que ia perdendo.

 

Alma gémea da minha, e ingénua e pura

como os anjos do céu (se o não sonharam...),

quis mostrar-me que o bem bem pouco dura.

 

Não sei se me voou, se ma levaram.

Nem saiba eu nunca a minha desventura

contar aos que inda em vida não choraram.

 

SONETOS PORTUGUESES, LELLO & IRMÃOS - EDITORES, 1995, P.30

topo

 

Dia de Anos

 

Com que então caiu na asneira

De fazer na quinta-feira

Vinte e seis anos! Que tolo!

Ainda se os desfizesse...

Mas fazê-los não parece

De quem tem muito miolo!

 

Não sei quem foi que me disse

Que fez a mesma tolice

Aqui o ano passado...

Agora o que vem, aposto,

Como lhe tomou o gosto,

Que faz o mesmo? Coitado!

 

Não faça tal: porque os anos

Que nos trazem? Desenganos

Que fazem a gente velho:

Faça outra coisa: que em suma

Não fazer coisa nenhuma,

Também lhe não aconselho.

 

Mas anos, não caia nessa!

Olhe que a gente começa

Às vezes por brincadeira,

Mas depois se se habitua,

Já não tem vontade sua,

E fá-los queira ou não queira!

topo

 

 

 

 

Perdão

 

Seria o beijo

Que te pedi,

Dize, a razão

(outra não vejo)

Por que perdi

Tanta afeição?

Fiz mal, confesso;

Mas esse excesso,

Se o cometi,

Foi por paixão,

Sim, por amor

De quem?... de ti!

 

Tu pensas, flor

Que a mulher basta

Que seja casta,

Unicamente?

Não basta tal:

Cumpre ser boa,

Ser indulgente.

Fiz-te algum mal?

Pois bem: perdoa!

 

É tão suave

Ao coração

Mesmo o perdão

De ofensa grave!

Se o alcançasse,

 

Se o conseguisse,

Quisera então

Beijar-te a mão,

Beijar-te a face...

Beijar? que disse!

(Que indiscrição...)

Perdão! perdão!

topo

 

 

 

 

A Cigarra e a Formiga

 

Como a cigarra o seu gosto

É levar a temporada

De Junho, Julho e Agosto

Numa cantiga pegada,

De Inverno também se come,

E então rapa frio e fome!

 

Um Inverno a infeliz

Chega-se à formiga e diz:

- Venho pedir-lhe o favor

De me emprestar mantimento,

Matar-me a necessidade;

 

Que em chegando a novidade,

Até faço um juramento,

Pago-lhe seja o que for.

 

Mas pergunta-lhe a formiga:

"Pois que fez durante o Estio?"

- Eu, cantar ao desafio.

"Ah cantar? Pois, minha amiga,

Quem leva o Estio a cantar,

Leva o Inverno a dançar!"

topo

 

 

 

 

Boas Noites

 

Estava uma lavadeira

a lavar numa ribeira

Quando chega um caçador:

- Boas tardes, lavadeira!

- Boas tardes, caçador!

- Sumiu-se a perdigueira

Ali naquela ladeira;

Não me fazeis o favor

De me dizer se a brejeira

Passou aqui a ribeira?

- Olhai que, dessa maneira,

Até um dia, senhor,

Perdereis a caçadeira,

Que ainda é perda maior.

- Que importa, lavadeira!

Aqui na minha algibeira

Trago dobrado valor...

Assim eu fora senhor

De levar a vida inteira

Só a ver o meu amor

Lavar roupa na ribeira!

- Talvez que fosse melhor...

Ver coser a costureira!

Vir de ladeira em ladeira

Apanhar esta canseira,

E tudo só por amor

De ver uma lavadeira

Lavar roupa na ribeira...

É escusado, senhor!

- Boas noites... lavadeira!

- Boas noites... caçador!

topo

 

 

 

Crucifixo

 

"Minha mãe, quem é aquelle

Pregado n'aquella cruz?

- Aquelle, filho é Jesus...

É a santa imagem d'elle!

 

"E quem é Jesus? - É Deus!

"E quem é Deus? - Quem nos cria,

Quem nos manda a luz do dia

E fez a terra e os céos;

 

E veiu ensinar à gente

Que todos somos irmãos,

E devemos dar as mãos

Uns aos outros irmamente:

 

Todo Amor, todo bondade!

"E morreu? - Para mostrar

Que a gente pela Verdade

Se deve deixar matar.

topo

 

 

 

Miséria

(A Silva Pinto)

 

 Era já noite cerrada,

Diz o filho: "Oh minha mãe,

Debaixo d'aquella arcada

Passava-se a noite bem!"

 

A cega, que todo o dia

Tinha levado a anadar,

A taes palavras do guia

Sentiu-se reanimar.

 

Mas saltam dois cães de gado,

Que eram como dois leões:

Tinha-os à porta o morgado

Para o guardar dos ladrões.

 

Tornam os pobres à estrada,

E aonde haviam de ir dar?

Ao palácio da tapada

Onde el-rei ia caçar.

 

À ceguinha meia morta

Torna o filho: "Oh minha mãe,

Ali no vão de uma porta

Passava-se a noite bem!"

 

- Se os cães deixarem... (diz ella,

A triste n'um riso amargo),

Com effeito a sentinela:

- "Quem vem lá?... Passe de largo!"

 

Então ceguinha e filhinho,

Vendo a sua esperança vã,

Deitaram-se no caminho

Até romper a manhã!...

topo

 

 

 

Grammatica Rudimentar

 

Aquelle Manuel do Rego

É rapaz de tanto tino

Que em lirio põe sempre y grego,

E em lyra põe i latino!

 

E como a gente diz ceia

Escreve sempre ceiar;

Assim como de passeia

Tira o verbo passeiar!

 

Nunca diz senão peior

Não só por ser mais bonito,

Mas porque achou num auctor

Que deriva de sanskrito.

 

Escreve razão com s,

E escreve Brasil com z:

Assim elle nos quizesse

Dizer a razão porquê!

 

Também como diz - eu soube

Julga que eu poude é correcto:

Temo que a morte nos roube

Rapazinho tão discreto!

 

É um gramático o Rego!

É um purista o finorio...

Se Camões fallava grego,

E o Vieira latinorio!

topo

 

 

 

 

Hymno de Amor

 

 

Andava um dia

Em pequenino

Nos arredores

De Nazareth,

Em companhia

De San José,

O bom-Jesus,

O Deus-Menino.

Eis senão quando

Vê num silvado

Andar piando

Arripiado

E esvoaçando

Um rouxinol,

Que uma serpente

De olhar de luz

Resplandecente

Como a do sol,

E penetrante

Como diamante,

Tinha attrahido,

Tinha encantado.

 

Jesus, doído

Do desgraçado

Do passarinho,

Sae do caminho,

Corre apressado,

Quebra o encanto,

Foge a serpente,

E de repente

O pobrezinho,

Salvo e contente,

Rompe n'um canto

Tão requebrado,

Ou antes pranto

Tão soluçado,

Tão repassado

De gratidão,

De uma alegria,

Uma expansão,

Uma cadencia,

Que commovia

O coração!

 

Jesus caminha

No seu passeio,

E a avesinha

Continuando

No seu gorgeio

Em quanto o via;

De vez em quando

Lá lhe passava

À dianteira

E mal poisava,

Não afrouxava

Nem repetia,

Que redobrava

De melodia!

 

Assim foi indo

E foi seguindo

De tal maneira,

Que noite e dia

N'uma palmeira,

Que havia perto

D'onde morava

Nosso Senhor

Em pequenino,

(Era já certo)

Ella lá estava

A pobre ave

Cantando o hymno

Terno e suave

Do seu amor

Ao Salvador!

topo

 

 

 

 

 

 

 

 

 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

1