A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

GUERRA JUNQUEIRO

Biografia

1850-1923

Portugal Portugal

Abílio Manuel de Guerra Junqueiro nasceu em Freixo de Espada à Cinta, em 1850 e faleceu em 1923, em Lisboa.

Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito de Coimbra desenvolveu actividade profissional na política, tendo ocupado diversos cargos políticos em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente secretário geral do governo civil, deputado, ministro de Portugal na Suíça

Guerra Junqueiro foi poeta, panfletário e possuía uma capacidade de discurso excepcional.

A sua primeira obra, é uma série de poemas intitulada Duas Páginas dos Catorze Anos. Os seus discursos políticos foram reunidos, após a sua morte, em Horas de Combate e publicados em 1924.

Guerra Junqueiro é considerado, por muitos, como um dos maiores poetas portugueses de sempre.

 

Obra:

Ficção
Prosas Dispersas, 1921
Horas de Combate, 1924
 

Poesia
Duas Páginas dos Catorze Anos, 1864
Mysticae Nuptiae, 1866
Vozes sem Eco, 1867
Baptismo de Amor, 1868
A Morte de D. João, 1874
A Velhice do Padre Eterno, 1875
A Musa em Férias, 1879
Finis Patriae, 1880
Os Simples, 1892
Pátria, 1896
Oração ao Pão, 1903
Oração à Luz, 1904
Poesias Dispersas, 1920
 

 

 

Poesias Eternas

 A Moleirinha

Oração ao Pão

Regresso ao Lar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Regresso ao Lar

 

Ai, há quantos anos que eu parti chorando

Deste meu saudoso, carinhoso lar!...

Foi há vinte?... Há trinta? Nem eu sei já quando!...

Minha velha ama, que me estás fitando,

Canta-me cantigas para me lembrar!

 

Dei a Volta ao mundo, dei a volta à Vida...

Só achei enganos, decepções, pesar...

Oh! A ingénua alma tão desiludida!...

Minha velha ama, com a voz dorida,

Canta-me cantigas de me adormentar!...

 

Trago d'amargura o coração desfeito...

Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!

Nunca eu saira do meu ninho estreito!...

Minha velha ama que me deste o peito,

Canta-me cantigas para me embalar!

 

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho

Pedrarias d'astros, gemas de luar...

Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...

Minha velha ama, sou um pobrezinho...

Canta-me cantigas de fazer chorar!

 

Como antigamente, no regaço amado,

(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!

Ai, o teu menino como está mudado!

Minha velha ama, como está mudado!

Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

 

Canta-me cantigas, manso, muito manso...

Tristes, muito tristes, como à noite o mar...

Canta-me cantigas para ver se alcanço

Que a minh'alma tenha paz, descanso,

Quanto a Morte, em breve, me vier buscar!...

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 A Moleirinha

 

Pela estrada plana, toque, toque, toque

Guia o jumentinho uma velhinha errante

Como vão ligeiros, ambos a reboque,

Antes que anoiteça, toque, toque, toque

A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

 

Toque, toque, a velha vai para o moinho,

Tem oitenta anos, bem bonito rol!...

E contudo alegre como um passarinho,

Toque, toque, e fresca como o branco linho,

De manhã nas relvas a corar ao sol.

 

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,

O jerico ruço duma linda cor;

Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,

Tange-o, toque, toque, moleirinha branca

Com o galho verde duma giesta em flor.

 

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,

Toque, toque, toque, que recordação!

Minha avõ ceguinha se me representa...

Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,

Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

 

Toque, toque, toque, lindo burriquito,

Para as minhas filhas quem mo dera a mim!

Nada mais gracioso, nada mais bonito!

Quando a virgem pura foi para o Egipto,

Com certeza ia num burrico assim.

 

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!

Nascem as estrelas, vivas, em cardume...

Toque, toque, toque, e quando o galo canta,

Logo a moleirinha, toque, se levanta,

Pra vestir os netos, pra acender o lume...

 

Toque, toque, toque, como se espaneja,

Lindo o jumentinho pela estrada chã!

Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,

Dá-me até vontade de o levar à igreja,

Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!

 

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,

Toda, toda branca, vai numa frescata...

Foi enfarinhada, sorridente amiga,

Pela mó da azenha com farinha triga,

Pelos anjos loiros com luar de prata!

 

Toque, toque, como o burriquito avança!

Que prazer d'outrora para os olhos meus!

Minha avó contou-me quando fui criança,

Que era assim tal qual a jumentinha mansa

Que adorou nas palhas o menino Deus...

 

Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,

Moleirinha branca, branca de luar!...

Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,

Como estremunhados querubins divinos,

Os olhitos meigos para a ver passar...

 

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,

Entre os milhões d'astros o luar sem véu,

O burrico pensa: Quanto milho loiro!

Quem será que mói estas farinhas d'oiro

Com a mó de jaspe que anda além no Céu!

 

OS SIMPLES

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Oração ao pão

 

Com quantos grãos de trigo um pão se fez?

Dez mil talvez?

 

Dez mil almas, dez mil calvários e agonias,

Todos os dias,

Para insuflar alentos n'alma impura

Duma só criatura!

 

Homem, levanta a Deus o coração,

Ao ver o pão.

 

Ei-lo em cima da mesa do teu lar;

Olha a mesa: um altar!

 

Ei-lo, o vigor dos braços teus,

O pão de Deus!

 

Ei-lo, o sangue e a alegria,

Que teu peito robora e teu crânio alumia!

 

Ei-lo a fraternidade,

Ei-lo, a piedade,

Ei-lo, a humildade,

 

Ei-lo a concórdia, a bem-aventurança,

A paz em Deus, tranquila e mansa!

 

Comer é comungar. Ajoelha, orando,

Em frente desse pão, ou duro ou brando.

 

Antes que o mordas, tigre carniceiro,

Ergue-o na luz, beija-o primeiro!

 

Depois devora! O pão é corpo e alma

Em corpo e alma

O comerás,

Tigre voraz.

 

São dez milalmas brancas, cor de Lua,

Transmigrando divinas para a tua!

 

Guerra Junqueiro, "Vibrações Líricas", Lello & Irmão editores, Porto, 1950

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