GUERRA
JUNQUEIRO
Biografia 1850-1923
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Poesias Eternas
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Ai,
há quantos anos que eu parti chorando
Deste
meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi
há vinte?... Há trinta? Nem eu sei já quando!...
Minha
velha ama, que me estás fitando,
Canta-me
cantigas para me lembrar!
Dei
a Volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só
achei enganos, decepções, pesar...
Oh!
A ingénua alma tão desiludida!...
Minha
velha ama, com a voz dorida,
Canta-me
cantigas de me adormentar!...
Trago
d'amargura o coração desfeito...
Vê
que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca
eu saira do meu ninho estreito!...
Minha
velha ama que me deste o peito,
Canta-me
cantigas para me embalar!
Pôs-me
Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias
d'astros, gemas de luar...
Tudo
me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha
velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me
cantigas de fazer chorar!
Como
antigamente, no regaço amado,
(Venho
morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai,
o teu menino como está mudado!
Minha
velha ama, como está mudado!
Canta-lhe
cantigas de dormir, sonhar!...
Canta-me
cantigas, manso, muito manso...
Tristes,
muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me
cantigas para ver se alcanço
Que
a minh'alma tenha paz, descanso,
Quanto
a Morte, em breve, me vier buscar!...
Pela
estrada plana, toque, toque, toque
Guia
o jumentinho uma velhinha errante
Como
vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes
que anoiteça, toque, toque, toque
A
velhinha atrás, o jumentinho adiante!...
Toque,
toque, a velha vai para o moinho,
Tem
oitenta anos, bem bonito rol!...
E
contudo alegre como um passarinho,
Toque,
toque, e fresca como o branco linho,
De
manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai
sem cabeçada, em liberdade franca,
O
jerico ruço duma linda cor;
Nunca
foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o,
toque, toque, moleirinha branca
Com
o galho verde duma giesta em flor.
Vendo
esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque,
toque, toque, que recordação!
Minha
avõ ceguinha se me representa...
Tinha
eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem
me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...
Toque,
toque, toque, lindo burriquito,
Para
as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada
mais gracioso, nada mais bonito!
Quando
a virgem pura foi para o Egipto,
Com
certeza ia num burrico assim.
Toque,
toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem
as estrelas, vivas, em cardume...
Toque,
toque, toque, e quando o galo canta,
Logo
a moleirinha, toque, se levanta,
Pra
vestir os netos, pra acender o lume...
Toque,
toque, toque, como se espaneja,
Lindo
o jumentinho pela estrada chã!
Tão
ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me
até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe
a alma, prà fazer cristã!
Toque,
toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda,
toda branca, vai numa frescata...
Foi
enfarinhada, sorridente amiga,
Pela
mó da azenha com farinha triga,
Pelos
anjos loiros com luar de prata!
Toque,
toque, como o burriquito avança!
Que
prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha
avó contou-me quando fui criança,
Que
era assim tal qual a jumentinha mansa
Que
adorou nas palhas o menino Deus...
Toque,
toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha
branca, branca de luar!...
Toque,
toque, e os astros abrem diamantinos,
Como
estremunhados querubins divinos,
Os
olhitos meigos para a ver passar...
Toque,
toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre
os milhões d'astros o luar sem véu,
O
burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem
será que mói estas farinhas d'oiro
Com
a mó de jaspe que anda além no Céu!
OS
SIMPLES
Com quantos grãos de
trigo um pão se fez?
Dez mil talvez?
Dez mil almas, dez mil
calvários e agonias,
Todos os dias,
Para insuflar alentos
n'alma impura
Duma só criatura!
Homem, levanta a Deus
o coração,
Ao ver o pão.
Ei-lo em cima da mesa
do teu lar;
Olha a mesa: um altar!
Ei-lo, o vigor dos braços
teus,
O pão de Deus!
Ei-lo, o sangue e a
alegria,
Que teu peito robora e
teu crânio alumia!
Ei-lo a fraternidade,
Ei-lo, a piedade,
Ei-lo, a humildade,
Ei-lo a concórdia, a
bem-aventurança,
A paz em Deus,
tranquila e mansa!
Comer é comungar.
Ajoelha, orando,
Em frente desse pão,
ou duro ou brando.
Antes que o mordas,
tigre carniceiro,
Ergue-o na luz,
beija-o primeiro!
Depois devora! O pão
é corpo e alma
Em corpo e alma
O comerás,
Tigre voraz.
São dez milalmas
brancas, cor de Lua,
Transmigrando divinas
para a tua!
Guerra
Junqueiro, "Vibrações Líricas", Lello & Irmão editores, Porto,
1950
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.