ANTÓNIO RAMOS ROSA
Biografia 1924 |
Poesias Eternas |
Errantes
as palavras, as janelas,
respiração
à flor do mar no côncavo da arca,
ombro
imenso que não encerra, todo o espaço
como
um só corpo onde o vento começa.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 13
Escrever
agora é dispersar os reflexos,
abrir
as portas de pedra e repousar no ar.
Ajoelhado
junto de um barco ou de uma jarra,
um
deus respira e é um puro vazio.
Para
além dos signos e no início deles
um
sorriso, um fulgor das coisas confiantes.
E
nos muros e nos dedos, uma areia
que
das nuvens descesse e na distância
a
forma de uma braço amante, o sonho do outro.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 18
Será
este o ponto de partida, obscuridade incerta
e
sobre o fundo sombrio da morte? A esperança
nascerá
deste branco vazio e desta mão de cinza?
O
viajante entrou num barcou ou numa árvore
que
o soergue, ainda hesitante, na imensidade
de
uma sombra de astro. Ele aproxima-se
de
formas vagas, de espelhos entre pedras,
e
junto a um muro sob as estrelas
uma
figura de orvalho descalça sobre as ervas.
Tudo
flutua ainda, dentro da poeira azul
e
púrpura e tudo está esparso e reunido
como
na primeira consciência deste mundo
tão
longínquo e tão presente como se o sol foss um perfume
que
da montanha descesse sobre as palavras ditas.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 24
Eu
diria que não vejo nada e que não sei.
Algo
está suspenso. A hora repousa.
Eu
quero estar vivo como uma ferida, como um signo,
não
mais do que um rumor de coisa nua.
Neste
momento nada é confuso nem opaco.
Os
labirintos são trémulos, transparentes.
Dir-se-ia
que atravesso um jardim e toda a vida
repousa
entre as forças de cinza
e
o fulgor da chama. E adormeço
sentindo
a beleza e o tempo, o mesmo arco
iluminado.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 26
As
nuvens, não construídas, engendradas
no
repouso, não ideias mas formas
que
respiram e caminham e quase falam,
são
a fluência de um princípio que não cessa
e
tudo o que vai ser, na mais viva iminência.
Assim
um deus criaria o espaço puro
no
sopro do desejo,
avançando
no silêncio como um barco.
Assim,
não para construir, mas para abrir
através
da sombra, através da cinza,
e
para alé, das palavras, as portas indecisas
e
que brilhem os signos e as figuras
indecifráveis.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 32
Quem
escreve quer morrer, quer renascer
num
ébrio barco de calma confiança.
Quem
escreve quer dormir em ombros matinais
e
na boca das coisas ser lágrima animal
ou
o sorriso da árvore. Quem escreve
quer
ser terra sobre terra, solidão
adorada,
resplandecente, odor de morte
e
o rumor do sol, a sede da serpente,
o
sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,
o
negro meio-dia sobre os olhos.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 66
É
um sonho ou talvez só uma pausa
na
penumbra. Esta massa obscura
que
ela revolve nas águas são estrelas.
Entre
aromas e cores, um barco de calcário
prossegue
uma viagem imóvel num jardim.
Vejo
a brancura entre os astros e os ramos.
Dir-se-ia
que o ser respira e se deslumbra
e
que tudo ascende sob um sopro silencioso.
Nenhum
sentido mas os signos amam-se
e
o brilho e o rumor formam um mundo.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 67
A
palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que
estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre
uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que
projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la
sem destino no clamor da noite,
cega
e nua, mas vibrante de desejo
como
uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que
apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe
os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e
vejo uma água límpida numa concha marinha.
É
sempre um corpo amante e fugídio
que
canta num mar musical o sangue das vogais.
ACORDES, QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 68
Um
dia poderás chegar, tu que nunca chegas
porque
não és um tu
ou
porque chegas sempre em não chegares.
Subi
um dia por uma escada silenciosa
e
em torno era um pomar branco, tranquila maravilha
e
eu senti, eu vi, adivinhei
a
divindade amada, a soberana e delicada
majestade.
Que suavidade de oriente,
que
suave esplendor! Era o fulgor de um sono
límpido,
entre olhos verdes, entre mãos verdes.
E
num repouso de oiro adormecido era quase um rosto
Antiquíssimo
e inicial. Contemplava
a
quietude de um imenso enúfar
e
a fragância era quase visível como um mar entreaberto.
Era
um rio detido ou uma tersa nuca ou um braço estendido
que
descansa entre ribeiros primaveris
ou
era antes a serena felicidade
e
era uma boca da terra que não cantava que não dizia
o
silêncio ardente que no peito de espuma cintilava.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 79
Sem
direcção, sem caminho
escrevo
esta página que não tem alma dentro.
Se
conseguir chegar à substância de um muro
acenderei
a lãmpada de pedra na montanha.
E
sem apoio penetro nos interstícios fugidios
ou
enuncio as simples reiterações da terra,
as
palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.
Tentarei
construir a consistência num adágio
de
sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.
E
na substância entra a mão, o balbucio branco
de
uma língua espessa, a madeira, as abelhas,
um
organismo verde aberto sobre o mar,
as
teclas do verão, as indústrias da água.
Eu
sou agora o que a linguagem mostra
nas
suas verdes estratégias, nas suas pontes
de
música visual: o equilíbrio preenche os buracos
com
arcos, colinas e com árvores.
Um
alvor nasceu nas palavras e nos montes.
O
impronunciável é o horizonte do que é dito.
ACORDES,
QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 81
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.