A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

ANTÓNIO GEDEÃO

Biografia

1906-1997

Portugal Portugal 

António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, nasceu em Lisboa em 1906 e faleceu na mesma cidade em 1997. Foi professor de Ciências Físico-Químicas, no ensino secundário (especialmente no Liceu Pedro Nunes) e metodólogo da mesma disciplina. Escreveu diversos livros; de salientar Poesias Completas.

Licenciado em Ciências Físico-Químicas pela Universidade do Porto, foi professor do ensino secundário, cientista, investigador, autor de livros escolares, historiador, escritor, poeta e dramaturgo.

A sua primeira obra data de 1956 e intitula-se Movimento Perpétuo. Teatro do Mundo, Máquina de Fogo, Linhas de Força são alguns outros títulos das obras de António Gedeão. A sua poesia encontra-se compilada em Poesias Completas.

Rómulo de Carvalho foi condecorado, aquando do seu nonagésimo aniversário, com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago de Espada.

 

 

Obra:

Ficção
História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1761-1772), 1959
Apontamentos sobre Martinho de Mendonça de Pina e Proença (1693-1743), 1963
 

Teatro
RTX 78/24, 1963
 

Poesia
Movimento Perpétuo , 1956
Teatro do Mundo , 1958
Máquina de Fogo , 1961
Poema para Galileu, 1964
Linhas de Força , 1967
Poesias Completas , 1968
Poemas Póstumos , 1983
 


Sentimento Científico em Bocage, 1965
Poltrona e Outras Novelas, 1973
Relações Diplomáticas entre Portugal e a rússia no séc. XVIII, 1981
 

 

Poesias Eternas

Forma de Inocência

Fala do Homem Nascido

Dez Réis de Esperança

Pedra Filosofal

Poema do Coração

Lágrima de preta

Este é o Poema do Amor

 

 

 

 

   

 

Forma de Inocência

 

Hei-de morrer inocente

exactamente

como nasci.

Sem nunca ter descoberto

o que há de falso ou de certo

no que vi.

 

Entre mim e a Evidência

paira uma névoa cinzenta.

Uma forma de inocência,

que apoquenta.

 

Mais que apoquenta:

enregela

como um gume

vertical.

E uma espécie de ciúme

de não poder ver igual.

 

MOVIMENTO PERPÉTUO, LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 149

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Fala do Homem Nascido

Chega à boca da cena, e diz:

 

Venho da terra assombrada,

do ventre da minha mãe;

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido

por me trazerem aqui,

que eu nem sequer fui ouvido

no acto de que nasci.

 

Trago boca para comer

e olhos para desejar.

Com licença, quero passar,

tenho pressa de viver.

Com licença! Com licença!

Que a vida é água a correr.

Venho do fundo do tempo;

não tenho tempo a perder.

 

Minha barca aparelhada

solta o pano rumo ao norte;

meu desejo é passaporte

para a fronteira fechada.

Não há ventos que não prestem

nem marés que não convenham,

nem forças que me molestem,

correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,

que a Natureza sou eu,

e as forças da Natureza

nunca ninguém as venceu.

 

Com licença! Com licença!

Que a barca se faz ao mar.

Não há poder que me vença.

Mesmo morto hei-de passar.

Com licença! Com licença!

Com rumo à estrela polar.

 

TERRA DO MUNDO, LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 150

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Dez Réis de Esperança

 

Se não fosse esta certeza

que nem sei de onde me vem,

não comia, nem bebia,

nem falava com ninguém.

Acocorava-me a um canto,

no mais escuro que houvesse,

punha os joelhos à boca

e viesse o que viesse.

Não fossem os olhos grandes

do ingénuo adolescente,

a chuva das penas brancas

a cair impertinente,

aquele incógnito rosto,

pintado em tons de aguarela,

que sonha no frio encosto

da vidraça da janela,

não fosse a imensa piedade

dos homens que não cresceram,

que ouviram, viram, ouviram,

viram, e não perceberam,

essas máscaras selectas,

antologia do espanto,

flores sem caule, flutuando

no pranto do desencanto,

se não fosse a fome e a sede

dessa humanindade exangue,

roía as unhas e os dedos

até os fazer em sangue.

 

TERRA DO MUNDO, LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 156

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Pedra Filosofal

 

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso,

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos,

que em verde oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

 

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho alacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que força através de tudo

num perpétuo movimento.

 

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa dos ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, paço de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão de átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

 

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.

 

POESIAS COMPLETAS

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Lágrima de preta

 

Encontrei uma preta

que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.

 

Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado.

 

Olhei-a de um lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.

 

Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.

 

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:

 

nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

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Poema do Coração

 

Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,

e também a Bondade,

e a Sinceridade,

e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.

Então poderia dizer-vos:

"Meus amados irmãos,

falo-vos do coração",

ou então:

"com o coração nas mãos".

 

Mas o meu coração é como o dos compêndios

Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)

e os seus compartimentos (duas autículas e dois ventrículos).

O sangue a circular contrai-os e distende-os

segundo a obrigação das leis dos movimentos.

 

Por vezes acontece

ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados,

e uma lâmina baça e agreste, que endurece

a luz dos olhos em bisel cortados.

Parece então que o coração estremece.

Mas não.

Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,

que esse vento que sopra e que ateia os incêndios,

é coisa do simpático.

Vem tudo nos compêndios.

 

Então, meninos!

Vamos à lição!

Em quantas partes se divide o coração?

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Este é o Poema do Amor

 

Este é o poema do amor.

 

O poema que o poeta propositadamente escreveu

só para falar de amor,

de amor,

de amor,

de amor,

para repetir muitas vezes amor,

amor,

amor,

amor.

Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico

contar as palavras que o poeta escreveu,

tantos que,

tantos se,

tantos lhe,

tantos tu,

tantos ela,

tantos eu,

conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu

foi amor,

amor,

amor.

 

Este é o poema do amor.

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