ANTÓNIO
GEDEÃO
Biografia 1906-1997 António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, nasceu em Lisboa em 1906 e faleceu na mesma cidade em 1997. Foi professor de Ciências Físico-Químicas, no ensino secundário (especialmente no Liceu Pedro Nunes) e metodólogo da mesma disciplina. Escreveu diversos livros; de salientar Poesias Completas.
|
Poesias Eternas |
Hei-de
morrer inocente
exactamente
como
nasci.
Sem
nunca ter descoberto
o
que há de falso ou de certo
no
que vi.
Entre
mim e a Evidência
paira
uma névoa cinzenta.
Uma
forma de inocência,
que
apoquenta.
Mais
que apoquenta:
enregela
como
um gume
vertical.
E
uma espécie de ciúme
de
não poder ver igual.
MOVIMENTO
PERPÉTUO, LÍRICAS
PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 149
Chega à boca da cena, e diz: |
Venho
da terra assombrada,
do
ventre da minha mãe;
não
pretendo roubar nada
nem
fazer mal a ninguém.
Só
quero o que me é devido
por
me trazerem aqui,
que
eu nem sequer fui ouvido
no
acto de que nasci.
Trago
boca para comer
e
olhos para desejar.
Com
licença, quero passar,
tenho
pressa de viver.
Com
licença! Com licença!
Que
a vida é água a correr.
Venho
do fundo do tempo;
não
tenho tempo a perder.
Minha
barca aparelhada
solta
o pano rumo ao norte;
meu
desejo é passaporte
para
a fronteira fechada.
Não
há ventos que não prestem
nem
marés que não convenham,
nem
forças que me molestem,
correntes
que me detenham.
Quero
eu e a Natureza,
que
a Natureza sou eu,
e
as forças da Natureza
nunca
ninguém as venceu.
Com
licença! Com licença!
Que
a barca se faz ao mar.
Não
há poder que me vença.
Mesmo
morto hei-de passar.
Com
licença! Com licença!
Com
rumo à estrela polar.
TERRA
DO MUNDO, LÍRICAS
PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 150
Se
não fosse esta certeza
que
nem sei de onde me vem,
não
comia, nem bebia,
nem
falava com ninguém.
Acocorava-me
a um canto,
no
mais escuro que houvesse,
punha
os joelhos à boca
e
viesse o que viesse.
Não
fossem os olhos grandes
do
ingénuo adolescente,
a
chuva das penas brancas
a
cair impertinente,
aquele
incógnito rosto,
pintado
em tons de aguarela,
que
sonha no frio encosto
da
vidraça da janela,
não
fosse a imensa piedade
dos
homens que não cresceram,
que
ouviram, viram, ouviram,
viram,
e não perceberam,
essas
máscaras selectas,
antologia
do espanto,
flores
sem caule, flutuando
no
pranto do desencanto,
se
não fosse a fome e a sede
dessa
humanindade exangue,
roía
as unhas e os dedos
até
os fazer em sangue.
TERRA
DO MUNDO, LÍRICAS
PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 156
Eles
não sabem que o sonho
é
uma constante da vida
tão
concreta e definida
como
outra coisa qualquer,
como
esta pedra cinzenta
em
que me sento e descanso,
como
este ribeiro manso,
em
serenos sobressaltos,
como
estes pinheiros altos,
que
em verde oiro se agitam,
como
estas aves que gritam
em
bebedeiras de azul.
Eles
não sabem que o sonho
é
vinho, é espuma, é fermento,
bichinho
alacre e sedento,
de
focinho pontiagudo,
que
força através de tudo
num
perpétuo movimento.
Eles
não sabem que o sonho
é
tela, é cor, é pincel,
base,
fuste, capitel,
arco
em ogiva, vitral,
pináculo
de catedral,
contraponto,
sinfonia,
máscara
grega, magia,
que
é retorta de alquimista,
mapa
do mundo distante,
rosa
dos ventos, Infante,
caravela
quinhentista,
que
é cabo da Boa Esperança,
ouro,
canela, marfim,
florete
de espadachim,
bastidor,
paço de dança,
Colombina
e Arlequim,
passarola
voadora,
pára-raios,
locomotiva,
barco
de proa festiva,
alto-forno,
geradora,
cisão
de átomo, radar,
ultra-som,
televisão,
desembarque
em foguetão
na
superfície lunar.
Eles
não sabem, nem sonham,
que
o sonho comanda a vida.
Que
sempre que um homem sonha
o
mundo pula e avança
como
bola colorida
entre
as mãos de uma criança.
POESIAS
COMPLETAS
Encontrei
uma preta
que
estava a chorar,
pedi-lhe
uma lágrima
para
a analisar.
Recolhi
a lágrima
com
todo o cuidado
num
tubo de ensaio
bem
esterilizado.
Olhei-a
de um lado,
do
outro e de frente:
tinha
um ar de gota
muito
transparente.
Mandei
vir os ácidos,
as
bases e os sais,
as
drogas usadas
em
casos que tais.
Ensaiei
a frio,
experimentei
ao lume,
de
todas as vezes
deu-me
o que é costume:
nem
sinais de negro,
nem
vestígios de ódio.
Água
(quase tudo)
e
cloreto de sódio.
Eu
queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e
também a Bondade,
e
a Sinceridade,
e
tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.
Então
poderia dizer-vos:
"Meus
amados irmãos,
falo-vos
do coração",
ou
então:
"com
o coração nas mãos".
Mas
o meu coração é como o dos compêndios
Tem
duas válvulas (a tricúspida e a mitral)
e
os seus compartimentos (duas autículas e dois ventrículos).
O
sangue a circular contrai-os e distende-os
segundo
a obrigação das leis dos movimentos.
Por
vezes acontece
ver-se
um homem, sem querer, com os lábios apertados,
e
uma lâmina baça e agreste, que endurece
a
luz dos olhos em bisel cortados.
Parece
então que o coração estremece.
Mas
não.
Sabe-se,
e muito bem, com fundamento prático,
que
esse vento que sopra e que ateia os incêndios,
é
coisa do simpático.
Vem
tudo nos compêndios.
Então,
meninos!
Vamos
à lição!
Em
quantas partes se divide o coração?
Este é o poema do
amor.
O poema que o poeta
propositadamente escreveu
só para falar de
amor,
de amor,
de amor,
de amor,
para repetir muitas
vezes amor,
amor,
amor,
amor.
Para que um dia,
quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que
o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela,
tantos eu,
conclua que a palavra
que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.
Este é o poema do
amor.
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.