ANTÓNIO BOTTO
Biografia 1897-1959 António Botto nasceu em 1897 e faleceu em 1959 no Brasil para onde se tinha exilado.
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Poesias Eternas |
Cinco réis de gente
Vai sempre na frente
Dos outros que vão
Cedo para a Escola;
Corpinho delgado,
O olhar mariola,
- Belos os cabelos,
Quantos caracóis!
Mas as mangas rotas
Nos dois cotovelos
São de andar no chão
Atrás dos novelos!
Nos olhos dois sóis
Que alumiam tudo!
A mãe, tecedeira,
Perdeu o marido,
Mas vive encantada
Para o seu miúdo!
É noite: na escuridão
As nuvens parecem fumo
E não deixam ver a Vénus,
Linda estrela da manhã!
Vai rebentar um chuveiro
Porque a ventania pucha
Uma grande tempestade:
Gaivotas em terra, fujo -
E fico ao pé de um guindaste;
Mas, nisto, uma divina claridade
- É o dia que rompe e a luz do Sol
Já numa tira ou faxa cor de rosa
Com misturas de azul e um verde claro
Que eu nunca tinha visto pelos céus!,
A chuva suspendeu, não houve nada
Senão a maravilha sem par
De uma linda madrugada!
Fiquei, sòzinho, a fixar
Os astrod que se abraçaram
Na luz de um silêncio quente
E em que se ouvia somente
No meu coração cheio de amor,
Mas sempre pronto para amar,
O riso inúmero das ondas
Na infinita vastidão do mar!
Depois da faina, o navio -
Já lá vai pelo mar fora!
A faina foi dura e a carga
Foi tanta que o alcatrate
Quase que ficou rez-vez;
Tinham que olhar com cuidado
Aonde se punha os pés!
Mas tudo se fez e em bem!
O peor foi a noite perdida
Sempre a mexer e a trabalhar
Para o navio largar
Ao romper da madrugada!
Noite fria de Novembro
Em que as estrelas tristes lá no céu
Pareciam distantes e perdidas
De tudo a que elas dão amparo e guia!
Parecia que a noite era infinita
Que não deixava
Nascer o dia!
Ninguém dormiu. O camarada,
O arrais, o moço - e ao porão,
Uma contra-mestre aloirado,
Tipo nórdico a fumar,
Continuamente, cachimbo,
Ia dizendo a uns dois
Que arrumassem com cuidado
A carga que ia descendo...
O barulho dos guindastes
Raspava na pele impulsos
Que davam tosse e mau-estar
E como de um gigante que dormisse
Ouvia-se a respiração do mar!
Mas com a luz do Sol, oiro e alegria!
Passam, agora, lentos e lavados
- Só a vela de estaia vai erguida!
Os barcos com os mastros levantados
A caminho das docas onde ficam
À espera de outras sáfaras iguais!
Uma mulher dá de mamar ao filho
Ali sentada a um canto sobre o cais!
Se os meus olhos te incomodam
Quando estou na tua frente
Desde já posso arrancá-los
Para te amar cegamente.
Seja o que for, não me importa,
Mas sei que não é por mim
Que os teus nervos adoecem
E andam sem governo, e assim...
Outra vida, não a minha,
Outro abraço e outro beijo
Te perturba e te desvaira
- Não mintas!, porque eu bem vejo!
Mas, continua, vai indo
Sim, vai até te cansares!,
Para ver o que tu contas
Se algum dia me voltares!
Não te incomodes comigo.
Nas lágrimas também há
Satisfação e conforto;
Nem tudo o que alguém nos mata
Fica perdidou ou é morto.
O coração ressuscita
Muita coisa que julgámos
Esquecida para sempre
Nas sombras da realidade;
O coração tem uma vida
Que pode tudo no mundo,
Chama-se apenas: Saudade!
Com ela é que eu vou vencendo
Este grande desalento
Que apaga os gritos da carne
Em falas do pensamento!
Agarro-me às sensações
Que foram o dia de ontem
- Felicidade sem névoa
Dos nossos dias felizes!
E fico a chorar de raiva
Por não ver bem a mentira
Que há nos silêncios marcados
De tudo quanto me dizes!
Acabou-se. E tu desculpa.
Falei, agora, e não digo
Nunca mais uma palavra
Acerca do nosso amor.
Fica por lá se quiseres
Até mudares ou seres
Numa nova reacção,
Límpida, pura, fremente,
Outra tortura presente
Na minha humilde paixão!
Outro céu, outro destino,
Ou outra condenação!
Campino do Ribatejo!
Figura que nasce e morre
Nos campos da beira-mar!
Tão portuguesa e tão bela
Na sua simplicidade
Que até na sua pobreza
Nunca sabe mendigar!
Entre cavalos e toiros
Na lezíria assoalhada
A sua figura esbelta
Tem um encanto infinito:
Barrete verde; o colete
Encarnado sobre a neve
Da camisa de algodão;
Jaleca bem recortada,
Meia branca, os albardões,
As esporas, o calção
Azul cobalto justinho
E a cinta escarlate quente
Da cor do sangue ou do vinho.
Além, naquele valado,
As papoilas e o junquilho
Fazem trofeu, há mais luz!
Um harmónio no fadango
Vibra e salta no compasso
Magoadamente agitado!
Anda no ar o farrapo
Dolente de uma cantiga
Mordida pelo ciúme!
E o fandango vai dançado!
Ninguém se mexe. Só ele,
Bamboleado, rirail
Desempenado, perfeito,
- E as pernas? Como ele as dobra?
E aquela curva do peito?
Trás um cravo na orelha,
E dança, dança, - o harmónio
Vai-lhe graduando o alento,
A luz perturba, - mulheres
Ficaram mudas a olhá-lo!
A garotada assobia
Acentuando o mitovo
Musical, mas, a preceito;
E o Sol, apesar do dia
Nascer fosco e marralheiro,
Parece lume! - O fandango
Com a graça de um campino
É Portugal verdadeiro!
Ódio e Amor, Edições Ática, 1947
Deixem-no andar
No tristíssimo segredo
Que o meu coração
Tem guardado avaramente!...
Quem ele é? - Não perguntem.
É um sonho, uma ilusão,
- Não é ninguém! Não é gente.
E teimam em perguntar
Quem é que assim me domina
Com tamanha realidade?
Não é ninguém! É um sonho
Que anda a ficar em saudade!
Em Ciúme
As Canções de António Botto, Livraria Bertrand, 1956, p.147
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