NUNO
JÚDICE
Biografia
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Poesias Eternas
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O seu canto despe o
horizonte; e
a deusa inicial revela os
seios matinais
que nenhum olhar ousou, e
cujos bicos
se humedecem do estranho
leite das palavras
esquecidas. Digo: o amor,
a vida, a morte repetida
nos teus braços de ouro
e sal; e uma nuvem
de vento e de sombras
atravessa o céu
da estrofe. Não deixes
que a sua imagem
inquiete o poema;
empurra-o para o sol, para que
a excessiva luz o queime
- no incêndio
que me impede de ver os
primeiros sinais
da primavera.
Enumeração das Sombras
Debaixo dos meus pés, os
mortos confundem-se
com a terra. As pedras
metem-se por entre os ossos,
a humidade corrompe os
tecidos que os envolvem,
apressa a decomposição
dos metais. Esses mortos
ainda falam. No entanto,
não os ouço, quando
passo por cima deles, e
prefiro distrair-me com as aves
que cantam, com o vento
que faz saltar as folhas
do outono. Os meus pés
podem, então,
pisá-los; e os meus
passos abafam o seu choro, que
também se fonfunde com o
murmúrio do vento. Mas
o que ouço, sempre, é
esta voz que sai do silêncio
dos mortos. Tenho-a
dentro de mim; tento agarrá-la
com os dedos do poema,
fixá-la no verso para que
não volte a
incomodar-me; e ela foge, mete-se
pelos buracos da terra,
esconde-se com as raízes
mais fundas. No entanto,
não sei
quem são estes mortos.
Limito-me a pisá-los, quando
atravesso os adros, os
terreiros, os baldios
de onde fugiram os
rebanhos. Como
um pastor de sombras,
levo atrás de mim todas
as suas vozes - ou,
apenas, a voz única que as minhas
mãos moldam numa paciência
de artesão. Já não sei quem
me encomendou este
trabalho. Um dia, a mulher
de olhos roxos pediu-me
que não a esquecesse; e
desde então colecciono
vozes, procuro a memória
do seu seio no barro do
inverno, evito pisar
a terra, à noite, quando
a sua imagem me aparece
por entre o halo da névoa.
Teoria Geral do Conhecimento, Quetzal
In "Jornal de Letras Artes e Ideias" nº 744 de 7 a
20 de Abril de 1999
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.