A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

NUNO JÚDICE

Biografia

 

Poesias Eternas

 O Artesão da Sombra

Voz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Voz

 

O seu canto despe o horizonte; e

a deusa inicial revela os seios matinais

que nenhum olhar ousou, e cujos bicos

se humedecem do estranho leite das palavras

esquecidas. Digo: o amor, a vida, a morte repetida

nos teus braços de ouro e sal; e uma nuvem

de vento e de sombras atravessa o céu

da estrofe. Não deixes que a sua imagem

inquiete o poema; empurra-o para o sol, para que

a excessiva luz o queime - no incêndio

que me impede de ver os primeiros sinais

da primavera.

 

 

Enumeração das Sombras

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O Artesão da Sombra

 

Debaixo dos meus pés, os mortos confundem-se

com a terra. As pedras metem-se por entre os ossos,

a humidade corrompe os tecidos que os envolvem,

apressa a decomposição dos metais. Esses mortos

ainda falam. No entanto, não os ouço, quando

passo por cima deles, e prefiro distrair-me com as aves

que cantam, com o vento que faz saltar as folhas

do outono. Os meus pés podem, então,

pisá-los; e os meus passos abafam o seu choro, que

também se fonfunde com o murmúrio do vento. Mas

o que ouço, sempre, é esta voz que sai do silêncio

dos mortos. Tenho-a dentro de mim; tento agarrá-la

com os dedos do poema, fixá-la no verso para que

não volte a incomodar-me; e ela foge, mete-se

pelos buracos da terra, esconde-se com as raízes

mais fundas. No entanto, não sei

quem são estes mortos. Limito-me a pisá-los, quando

atravesso os adros, os terreiros, os baldios

de onde fugiram os rebanhos. Como

um pastor de sombras, levo atrás de mim todas

as suas vozes - ou, apenas, a voz única que as minhas

mãos moldam numa paciência de artesão. Já não sei quem

me encomendou este trabalho. Um dia, a mulher

de olhos roxos pediu-me que não a esquecesse; e

desde então colecciono vozes, procuro a memória

do seu seio no barro do inverno, evito pisar

a terra, à noite, quando a sua imagem me aparece

por entre o halo da névoa.

 

Teoria Geral do Conhecimento, Quetzal

In "Jornal de Letras Artes e Ideias" nº 744 de 7 a 20 de Abril de 1999

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