A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

RUI KNOPFLI

Biografia

 

Moçambique Moçambique

Rui Knopfli deixou a sua marca na escrita em língua portuguesa, e na vida literária moçambicana.
O seu último livro, "O monhé das cobras", é como que uma despedida. Dos lugares, pessoas, recordações.
 

 

 

Poesias Eternas

 

Aeroporto

Mangas Verdes com Sal

Miradouro

Naturalidade

 

 

 

 

 

 

    AEROPORTO

    É o fatídico mês de Março, estou
    no piso superior a contemplar o vazio.
    Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
    e olha-me, obliquamente, nos olhos:
    Não voltas mais? Digo-lhe só que não.
   
    Não voltarei, mas ficarei sempre,
    algures em pequenos sinais ilegíveis,
    a salvo de todas as futurologias indiscretas,
    preservado apenas na exclusividade da memória
    privada. Não quero lembrar-me de nada,
   
    só me importa esquecer e esquecer
    o impossível de esquecer. Nunca
    se esquece, tudo se lembra ocultamente.
    Desmantela-se a estátua do Almirante,
    peça a peça, o quilómetro cem durando
   
    orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
    Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
    o sono do bronze na morte obscura das estátuas
    inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
    apenas no preca'rio registo das palavras.

 

"Mangas verdes com sal

    Mangas verdes com sal
    sabor longínquo, sabor acre
    da infância a canivete repartida
    no largo semicírculo da amizade.

    Sabor lento, alegria reconstituída
    no instante desprevenido,
    na maré-baixa,
    no minuto da suprema humilhação.

    Sabor insinuante que retorna devagar
    ao palato amargo,
    à boca ardida,
    à crista do tempo,
    ao meio da vida."
 

 


MIRADOURO
    Entre a rampa e o caracol da barreira,
    o picadeiro ideal para o exibicionismo
    laurentino, ao fim da tarde, passeio raso,
    sobranceiro à baía e à Catembe.
    Enquanto a malta ia e vinha, até ser Marrocos.
   
    Pavoneavam-se as meninas e nós,
    idem, flexionando peito e músculo,
    miradas discretas em redor. Rotina
    diária, sempre cumprida sem atropelos.
    Mesmo com a ruidosa chegada do Cagalhim,
   
    a cavalo na sua desconjuntada carrinha Ford,
    a tossir e a resfolegar, cansada das correrias
    da véspera. Presumido herói, o Cagalhim
    era só o bobo daquela festa. Caçador furtivo
    e nocturno, sua maior aventura -
    rezava a lenda - fora a de ter enfrentado,
    sob o holofote, um cocone que, falhado o tiro,
    o terá colhido, arrancando-lhe da cara os óculos.
    De borco, espezinhado, dizem que o Cagalhim,
    faca em punho, o teria capado. Pior ainda,
   
    que vexado, o boi-cavalo, envergando os óculos
    do caçarreta, até hoje percorre os matos
    em busca dos testículos perdidos. Entretanto,
    no Miradouro, para gáudio do pessoal,
    o Cagalhim exibe, com alarido, os que não tem.
 



    "Naturalidade

    Europeu, me dizem.
    Eivam-me de literatura e doutrina
    europeias
    e europeu me chamam.

    Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum
    pensamento europeu.
    É provaável... Não. É certo,
    mas africano sou.
    Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
    desta luz e deste quebranto.
    Trago no sangue uma amplidão
    de coordenadas geográficas e mar Índico.
    Rosas não me dizem nada,
    caso-me mais à agrura das micaias
    e ao silêncio longo e roxo das tardes
    com gritos de aves estranhas.

    Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
    Mas dentro de mim há savanas de aridez
    e planuras sem fim
    com longos rios langues e sinuosos,
    uma fita de fumo vertical,
    um negro e uma viola estalando."

 

Rui Knopfli escreveu no seu livro "O país dos outros", 1959


 

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